Depois que choveu a cidade inteira era meio lama, meio esgoto, meio água e eu pensando numa maneira de perguntar e sem saber como, não por que me faltassem palavras, mas por que, às vezes, a gente carrega as perguntas sem despejá-las por que não está disposto, pronto, preparado, desesperado o suficiente pra querer saber as respostas. Ou por que já sabe as respostas. Ou por que as respostas não interessam. Nesta tarde chuvosa foi que me bateu essa irresponsabilidade, essa vontade de jogar com a última ficha, uma dessas coisas que a pessoa faz quando acha que não tem mais nada a perder. Mesmo que tenha. Depois que o assunto acabou e a gente ia seguindo sem dizer nada, eu parei de andar de repente, numa pausa calculada, meio cruel, meio dramática: perguntei. Silêncio. Dava pra cada um ouvir o sangue circulando no próprio corpo, a água correndo no meio-fio, outro temporal se aproximando. Um respirar fundo antes de responder: não. Um tranquilo não. Um seguro não. Um não simples e seco que não deixaria lugar a nenhuma outra pergunta depois dele, só um eco duro que se debatia em todos os muros até se despedaçar no final da rua. Não. Só isso. E, se eu seguisse o fluxo irresponsável que havia me levado até ali, estaria agora bradando ofensas, insultos, palavrões, disfarçando decepção com agressividade, mas eu nem fiz nada disso. Nem disse nada. Agora eu era só dois olhos que baixaram até o chão e não levantaram mais de lá.
Depois? Depois não soube mais notícias. Por que fugi, sumi, mergulhei fundo num emaranhado de dias tumultuados, muitos lugares novos com cheiros de incenso e perfume e cigarro, trazendo pilhas de livros nos bondes lotados, no trânsito, na rua, falando sobre arte e política e literatura e parando em qualquer bar, em qualquer esquina, eu sou mais forte, eu sou mais eu, eu não preciso de ninguém, cruzando as estações e vendo pessoas, placas, vitrines, um cego cantando na escadaria uma música conhecida: há uma luz no túnel dos desesperados, há um cais no porto pra quem precisa chegar. E eu olhando para aquilo, para o cego falando de luz no fim do túnel, meu Deus, como pode? Não pode. Desmorono. E penso em tudo o que houve, ainda que eu não entenda exatamente o que houve – imaginação, maluquice, carência, ilusão platônica? – seja o que for, aquilo existiu. Era real e eu pude tocá-lo por um momento, mesmo que, depois, tenha se desfeito em pó, mas você sabe quando tocou algo: conhece o cheiro, o tato. Mesmo que não exista mais. Ou que exista apenas neste instante, quando você se pega outra vez desse jeito, em outro dia de chuva que também termina assim, contigo no último degrau, ao lado de um homem que não lhe enxerga, sentindo a tarde cair entre poças de lama, água, esgoto, quando os olhos não desgrudam mais do chão, quando chega a noite e você pode chorar.
Lindo lindo lindo!!!
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