Então, a solução foi alugar um apartamento em Paris. O roteiro da viagem de estudo para Gaza tinha sido cancelado por causa da guerra, a gente já estava na França e precisava esperar até o dia de voltar para o Brasil. Nos classificados, havia um imóvel por um preço razoável na Champs-Élysées, alto, com vista para a Torre Eifel – ao menos, era assim no anúncio – mas tratava-se da casa de máquinas do elevador de um prédio caindo aos pedaços, de onde dava pra ver a Torre pelo basculante do banheiro. Cinco metros quadrados, sem aquecedor, sem janela, no sétimo andar de escada, dessas escadas de incêndio externas, de madeira, faltando degraus.
Enfim.
No térreo do prédio, tinha o bar do Antony, um cara que veio de Madagascar. O cardápio incluía um único sabor de pizza e dois tipos de bebidas, sendo uma delas água mineral. Vivia lotado. Era apertado o suficiente para que ouvíssemos as conversas de todas as mesas, a ponto de parecer que todos falavam sobre o mesmo assunto – e, de certa forma, falavam mesmo – era um bar de imigrantes que contavam sobre seus países. Refeição econômica, aquecedor, ficamos por lá.
De madrugada, voltávamos para o apartamento, subindo as escadas na chuva, vendo lá de cima uma Paris nublada – a gente foi parar lá para desviar de uma guerra e acabou conhecendo tanta gente que também estava lá, fugindo de outras guerras – e ficávamos conversando no quarto minúsculo, com uma lanterna acesa, lendo duas ou três páginas do Cortázar. No texto, ele dizia que havia um único ente de convergência internacional, mais do que a ONU ou a Cruz Vermelha, como “uma nuvem sem fronteiras que reconcilia mexicanos e noruegueses e russos e espanhóis”. O livro amanhecia aberto numa página qualquer e era necessário retomar a leitura voltando ao capítulo anterior, de forma que tudo era lido de novo e de novo como se o romance se esquivasse de chegar ao final.
Todo dia, voltávamos ao bar do Antony para ouvir outras histórias sobre um lugar, um povo, um mundo que alguém deixou para trás – e, apesar de não se falar nisso de forma clara, era como se Paris fosse uma sina irremediável, uma cilada de mosquitos à volta de uma lâmpada poderosa, a Cidade da Luz. Ninguém se encaixava perfeitamente ali, mas ninguém caberia mais dentro da sua cidade natal, então viviam nesta área cinzenta, os bairros étnicos. Ainda que houvesse o desfile de burcas, togas, turbantes e batinas diante das mesmas vitrines, seria ingênuo falar em integração, era uma tolerância higiênica. No fim do dia, todos voltavam para seus bairros devidamente segregados.
Ninguém naquela bodega tinha nada em comum – nem religião, nem time, nem partido – e, na falta de afinidades supérfluas, falavam sobre temas mais humanos. Antony servia outra rodada explicando que só um compatriota poderia compreender outro por que cada pessoa era a soma das ruas por onde andou, das esquisitices da cultura onde cresceu e que nenhum ideal ecumênico ou afinidade política aproximaria mais duas pessoas do que terem sido embaladas pela mesma canção infantil. Eu contei sobre a observação de uma amiga, em que a palavra para designar morada em português, em espanhol, em italiano e em romeno era sempre a mesma – casa! – mas, em francês, o código era outro – maison – e concluímos que os imigrantes de Paris dividiam a mesma maison, nunca a mesma casa. Alguém citou Babel, do Guillermo Arriaga. E brindamos à solidão de estarmos longe de casa.
É curioso pensar que, dias depois, perto dali, 12 pessoas morreriam no episódio que ficou conhecido como O Massacre de Charlie Hebdo. O crime de motivação político-religiosa foi o ato terrorista mais noticiado do ano. A verdade é que não adiantava ter mudado o roteiro, ter tentado desviar da guerra, os atalhos sempre fazem a volta, as coisas que a gente procura também estão procurando por nós. Mesmo que, no bar do Antony, parecesse haver uma ilha de integração possível. As noites eram alegres. Gaza parecia distante.
Nas leituras noturnas, Cortázar dizia que laços interculturais “eram contatos de galhos e folhas que se entrecruzam e se acariciam de árvore para árvore, enquanto os troncos erguem, desdenhosos, as suas paralelas inconciliáveis”. No quartinho, às vezes, chovia lá fora como se o mundo fosse se acabar novamente em água. Sentávamos na cama, lanterna acesa. Imagina que é o dilúvio. Imagina que é uma arca. Se o mundo começasse de novo, quem você levaria aqui dentro? Dois de cada etnia e duas pombinhas brancas. Se o mundo começar de novo, a gente faz um país: um único sabor de pizza, uma única canção infantil. E tudo seria diferente se o mundo começasse de novo? Ele já começou tantas vezes, melhor a gente ir dormir. Amanhã a gente decide sobre o futuro da humanidade. Ou a gente começa a remar. Ou a gente amanhece em Paris.
Poxa, você escreve bem demais. Tenho saudade de seu rosto sorrindo e vim matá-la (a saudade, claro) um pouquinho aqui com a sua literatura,
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