Lá em casa existe um piano. Imagino que a frase pareça retirada diretamente de um livro de Jane Austen e remeta os campos de ovelhas do interior da Inglaterra vitoriana, mas o cenário nem é esse, meus caros, é apenas a minha humildíssima residência mesmo. E nem se trata daqueles pianos colossais, mas de uma versão menos épica, menor e mais tecnológica, o que não deixa de ser um trambolho. Fui contra a compra daquele objeto desproporcional, mas suponho que a minha opinião costuma soar pela casa como um rádio ligado na Voz do Brasil – todo mundo ouve, ninguém escuta – e, hoje, exatamente como eu havia previsto, o supracitado permanece esquecido no canto da sala. Passou a servir de aparador, onde colocam-se chaves, celular, um copo d’água. Foi a cômoda mais cara da história deste país. Seguiu silenciosíssimo por anos. Até agora.
Porque algo esquisito aconteceu.
Para meu susto e terror.
Ele começou a tocar sozinho.
Caro leitor, garanto estar dentro das quatro linhas da sanidade mental e não digo que tocava músicas inteiras, mas apenas duas ou três notas graves no meio da madrugada. No vazio absoluto das 3 da manhã, um estrondo de DÓÓÓÓÓ RÉÉÉÉÉÉÉÉ causando deslocamento de ar e fazendo voar os pássaros da noite. Da primeira vez, fui até a sala escura para procurar o músico engraçadinho e acabar com a palhaçada. Ninguém. O piano estava apagadíssimo no canto, com os objetos de sempre sobre ele, a janela aberta. Será que alguém entrou na casa? Ninguém. Deixei para lá e fui dormir.
Na madrugada seguinte: MIIIII FÁÁÁÁÁÁÁÁÁ cortando o silêncio dos justos. Levanto, ninguém na sala. Aí eu fui perdendo a valentia, sabe? Se, no primeiro dia, eu havia cogitado um invasor, no segundo dia eu cogitei um fantasma. Sei lá, fiquei olhando o instrumento no canto, humilhado no papel de cômoda, pianos foram feitos para ornar orquestras, não é mesmo? Para brilharem aplaudidos nos anfiteatros. Quando amanheceu, contei para a família o que estava acontecendo e eles acharam graça: é o Fantasma da Ópera!
Na noite seguinte: DÓÓÓÓÓ DÓÓÓÓÓ DÓÓÓÓÓ estremecendo o ar e gelando as minhas vértebras. Pior é que só eu acordava com o barulho, se eu sacudisse alguém no instante seguinte, a pessoa diria que não ouviu nada. Será que eu estava alucinando?
Minha terceira hipótese era a de que eu realmente estava ficando doida. Conheço tantas histórias estranhas sobre pianos. Dizem que os músicos do Titanic tocaram até o navio afundar e que os mergulhadores de hoje escutam notas de piano no fundo do mar. Na Polônia, Chopin dizia “meu piano é minha segunda alma” e, atualmente, ninguém consegue tocar, os que tentaram tiveram mudanças bruscas de temperatura e desmaios. Nunca ouvi uma única história macabra envolvendo um tamborim, uma cuíca, uma maraca. Pianos e órgãos são os instrumentos mais pesados do mundo, no sentido lato e figurado – são melancólicos, remetem ao passado. Sinônimo de sofrimento é “carregar o piano”.
Cansada e com olheiras, resolvi que ia passar a noite na sala para acabar com aquela tramoia.
– Você vai dormir no sofá para pegar o fantasma?
– …
.

.
Não dormi. Vigiei a janela e as portas. Fiquei pensando numa desculpa para vender aquele trambolho mal-assombrado, já me bastavam os problemas do mundo dos vivos, agora aqueles recitais do capiroto na minha sala. Como era esperado, na calada da noite, o piano berra: SÓÓÓÓÓÓÓÓ LÁÁÁÁÁÁÁÁ. Levanto num pulo.
Ao lado do instrumento existia uma tomada. Alguém deixava o celular carregando silenciado sobre o teclado, em modo de vibração máxima. Quando recebia uma mensagem, o aparelho vibrava tanto que deslizava sobre as teclas “tocando” o piano.
O Fantasma da Ópera era um spam noturno das Casas Bahia.
Fui dormir.
Num pequeno vilarejo à beira da floresta amazônica, havia uma lenda que todos conheciam, mas ninguém ousava falar em voz alta. Diziam que, nas noites de lua cheia, três sons distintos podiam ser ouvidos vindo das profundezas da mata: o ronco profundo de uma cuíca, o ritmo acelerado de um tamborim e o chocalhar suave de uma maraca. Juntos, esses sons criavam uma melodia hipnotizante que atraía quem a ouvia para dentro da floresta, de onde muitos nunca retornavam.
A história remonta a muitos anos atrás, quando três irmãos músicos viviam no vilarejo. Cada um deles era mestre de um instrumento: Jurupari, conhecido por sua cuíca que ecoava como o rugido da onça; Iara, que dominava o tamborim com uma energia que lembrava o fluxo dos rios; e Curupira, que sacudia a maraca com uma leveza que parecia trazer o vento à vida. Os três eram inseparáveis e sua música era a alegria do vilarejo.
Certa noite, durante uma festa na praça, um homem misterioso apareceu. Ele elogiou a música dos irmãos e ofereceu-lhes um pacto: em troca de talento eterno, eles deveriam entregar suas almas. Os irmãos, cegos pela ambição, aceitaram. Na noite seguinte, durante uma apresentação, os três desapareceram, deixando para trás apenas seus instrumentos.
Desde então, nas noites de lua cheia, os sons da cuíca, do tamborim e da maraca ecoam pela floresta. Aqueles que tentam encontrar a fonte da música relatam experiências aterrorizantes. Alguns dizem que viram sombras dançando ao redor dos instrumentos, outros afirmam que a música os fez perder o controle de seus próprios corpos, forçando-os a dançar até cair exaustos. Há rumores de que os irmãos ainda estão presos aos instrumentos, tocando eternamente para o homem misterioso.
Dizem que apenas alguém com um coração puro e uma vontade forte poderá quebrar o encanto e libertar os irmãos…
Certa noite, Zé Ruela, um turista sem ritmo, decidiu tocar os instrumentos para libertar os irmãos. Quando ele começou, o som foi tão horrível que Jurupari, Iara e Curupira apareceram imediatamente, implorando para ele parar. “Você nos libertou, mas agora temos que lidar com o trauma de ouvir você tocar!”, disse Jurupari, cobrindo os ouvidos. Zé, orgulhoso, achou que tinha salvado o dia, mas os irmãos trancaram os instrumentos num baú com um aviso: “Só tocar em caso de emergência extrema.” E Zé? Virou lenda no vilarejo como o pior músico da história.
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