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Posts Tagged ‘objetividade’

Uma vez, perguntaram ao Beethoven por que ele compunha: “Por que só os músicos utilizam de todas as liberdades que podem”. Perguntaram ao Spielberg por que ele fazia filmes: “Para responder às perguntas dos meus filhos”. Fiquei imaginando se alguém me perguntassem por que eu me tornei redatora (não sei por que alguém faria isso, não sou ninguém relevante na fila do pão) mas eu pensaria numa resposta bem inteligente e mentirosa. Por que a verdade é meio psicopata: por que gente confusa me dá aflição.

Parte do meu trabalho consiste em reescrever textos (técnicos ou jurídicos ou acadêmicos ou chatos) para uma linguagem descomplicada. Você já imaginou quantos dramas nessa vida seriam evitados graças a este humilde ofício, caro leitor? Quanta mensagem não é entendida – ou é direcionada para o público errado ou passa despercebida quando era para estar em neon gritante sobre o Empire State – de forma que me dá gastura só de pensar em todo esse ruído – pego o cidadão pelo braço e sacudo: olha, vem cá, senta aqui, me diz o que você quer, eu escrevo pra você.

Costumo sofrer especificamente em filmes em que os personagens não conseguem se comunicar.

Não aguento com ET, coitado. Tendo que esticar aquele dedo enorme para o céu mil vezes – ET, telefone, minha casa – e os humanos concluindo que ele tinha um dedo fenomenal. Eu já teria mandado explodir o planeta só de raiva. Tenho aflição em todas as cenas de Casablanca, peço para morrer com a carta que ele lê debaixo da chuva – uma carta de desculpas que não explica nada e só faz o cara ter vontade de chutar aquela macumba. O Paciente Inglês sem conseguir chamar uma ambulância em árabe. Forrest Gump contando sua historinha para ninguém. Taxi Driver falando sozinho. Em A Idade da Inocência, os dois gaguejando para contar a verdade um para o outro e empatando a existência de todo mundo até a gente querer levantar da poltrona, pegar ambos pelo colarinho e encher de bolacha.

Ou seja, não é vocação. É maluquice mesmo.

Mas, se alguém perguntasse (ninguém vai perguntar), eu daria uma resposta aleatória só por quê desconfio que, no fundo, as pessoas não querem simplificar tanto as coisas. Por mais esquizofrênico que isso pareça, ninguém quer transformar suas cartas em bula de remédio. O povo adora os roteiros confusos por que dão margem ao subtexto e talvez objetivar seja uma antítese da vida real. Se o mundo tivesse manual de instruções, confesse, você também não leria.

Gente confusa me dá aflição – e talvez isso inclua todo o pântano verde musgo da humanidade. Acho que, se alguém me perguntasse por que escolhi este ofício, eu seria irritantemente evasiva só para dar o troco. Diria, inclusive, que aquela era uma boa pergunta. Balançaria a cabeça afirmativamente. Sorriria para uma câmera imaginária, olhar perdido. E aguardaria pelas interpretações mais desbaratadas.

ET_marianamiranda

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