– 2º Lugar no Concurso de Crônicas FDJ 2007.2
– Texto selecionado para o roteiro da peça ‘Crônicas in Cena’, encenada em 2008
Eu tinha muito medo do fundo do poço. Medo de mergulhar na depressão profunda dos escritores amargurados, dos poetas niilistas, dos suicidas do romantismo. No íntimo, todo mundo sabe que a sanidade humana é bonde que vai e pode não voltar nunca mais, todo mundo tem medo dessa maré vermelha que, quando se aproxima, lota as salas de terapia, yoga, esoterismo, de qualquer coisa que possa salvar as pessoas de si mesmas. Salvar-nos do último degrau do subsolo. Eu tinha tanto medo. Mas não pude escapar.
O fundo do poço é só uma etapa. Isso de agora eu nem sei o que é. Depois de você, toda essa cidade maldita também se parece com o seu mosaico de fotografia mal colada, cartão-postal remendado: prédio, rua, carro, gente, tudo amontoado e feio. Tenho feito tanto esforço para não enlouquecer. Para não por mais uma vez o fogo sobre Roma, a peste sobre a Colômbia, o mar sobre a Indonésia, para não destruir tudo como se nada nunca houvesse existido. Tragédia nenhuma seria muito. Sangue nenhum seria demais.
É que, na miséria, todo mundo se parece. Chorando escondido no chão do banheiro somos todos iguais, baby, precários, bicho assustado que nasceu sozinho, vai morrer sozinho e, no intervalo entre uma coisa e outra, agarra-se à mão de outro por puro desespero. Não seja idiota, você também está só, toma a minha mão, há tão pouco tempo para nós. Mesmo te odiando um pouco está tudo bem e eu acordo e tomo banho e escovo os dentes e tudo continua, acredite, eu não estou perdida, não mais do que ontem ou anteontem ou durante todos estes dias que têm se amontoado sobre as minhas costas.
A verdade é que, depois de apostar todas as minhas fichas, eu apostei os meus olhos, os meus pés, o meu coração, tudo. Eu tinha tanta certeza de que, quando estivéssemos aqui, você me abraçaria em silêncio, colocaria a mão sobre minha testa, me devolveria a fé, essa fé que é tudo o que eu preciso para me converter num ser humano iluminado. Talvez eu descobrisse essas coisas antigas de esperança e inocência que, eu sei, ainda restaram em algum lugar aqui dentro, e eu seria feliz te escutando dizer que este meu inferno não foi em vão.
Mas nada. Você aparece e fica me olhando com esses olhos mudos, com essas mãos no bolso, com essa cara de quem assiste a um filme russo sem legenda, ah, você não entende nada mesmo, baby. E nem adianta eu tentar explicar que foi por você que eu queimei meus navios e agora estou presa nessa ilha com a água até o pescoço ou te dizer que pensar com raiva que posso esbarrar com você em qualquer esquina a qualquer hora é a motivação que tem me arrancado da cama todos os dias. Amor é pretexto para falta de inteligência, eu não vou tentar explicar nada.
E fico aqui, acorrentada sobre o trilho do trem, cética com meus fones de ouvido em volume suficiente para me manter surda do mundo, escrevendo com força sobre o papel como escreveria sobre o mármore de uma lápide. Pra dizer o que? Que eu tive uma alma inteira pra dar. Que me arrancaram uma metade e o vácuo que ficou pode subtrair a outra. Pra você saber que eu te amei tanto, mas tanto, que sempre eu disser isso no tempo pretérito será uma farsa. É que isso não passa, ou é ou nunca foi. Não há próximo degrau, baby. A morte e o amor – eles não têm etapas.
Lindíssimo. Uma pancada.
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Apenas uma palavra: Incrível!
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Muitoooo booomm!
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Menina, vim aqui porque a Cacau disse que tínhamos textos com estilos parecidos.
Sei não, viu? Acho que ela foi muito generosa comigo!
Gostei demais e voltarei sempre.
Bjs!
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Você se superou nesse texto. Depois de lê-lo, só há duas coisas a perguntar: Me dá um autógrafo? Podemos conhecer seu camarim?
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