Deus há de escutar. Por que a vida que a gente leva, essa vidinha aqui, deve valer a as cicatrizes que deixa, apesar do cansaço, da mentira, do meu coração fatiado sobre a mesa, por que há a oportunidade de revanche de toda uma biografia, o éden prometido e chegado antes da hora, meu Deus, qual o preço do meu pedido? Eu quero tanto. No meu olhar de terra arrasada essa esperança insistente: de que, um dia, eu possa ser avó. Que Deus me conceda uma família com a dádiva dos netos – esses cristais que coroam a vida de uma mulher para sempre, esta promessa do milagre adiado que é tudo o que eu preciso para continuar.
Que venha a primavera do meu DNA espalhando-se em sapatinhos minúsculos, em cheiro de talco e brinquedos pelo chão, por que eles chegarão quase de repente, não demoram a invadir o lar que já é deles e serão donos de cada centímetro de mim. Enquanto meus filhos – terei-os também – ocuparem-se com os bons modos e a educação dos pequeninos, eu terei espaço para o incorrigível, por que ser avó é a experiência única do bem-querer sem exigências, gratuito, a minha vocação para a queda-livre, o meu destino para a avalanche irresponsável do amor incondicional. É claro que eu nasci para isso, podem ir trabalhar tranqüilos. Podem cuidar de suas vidas. Me deixem em paz com as crianças.
Delas serão as cantigas mais lindas, os caprichos mais banais e eu já posso ver Freud se retorcendo no túmulo, Piaget tendo convulsões, danem-se todos os estudiosos da pedagogia, por que meus infantes vão desenhar todas as paredes da casa e nem o teto será o limite. Os heróis de todos os contos terão seus nomes, nenhum lugar será longe demais e eu contarei a eles as histórias fantásticas do meu tempo – as que eu não lembrar, invento. Se eu souber fazer bolo, farei bolo, se eu souber fazer pipa, farei pipa, se eu não souber fazer nada, melhor, nos restará a curiosidade sobre a mesa da sala infestada e nós aprendendo juntos um mundo inédito, viscoso, complexo, ovos, trigo, manteiga, papel e esse fermento da alma que infla-se em questões impensáveis – eu também não sei como o pintinho respira dentro do ovo, querida, boa pergunta. As mãozinhas sujas tatuadas em mim e a surpresa infantil diante do esperado. Não batam na porta, não telefonem. Me deixem em paz com as crianças.
Elas virão – em cada bebê me chega um postal do futuro, em cada parque um tapete se estende e, apesar dos males de agora, eu devo, eu quero, eu posso continuar. Devo colar meus cacos outra vez e me guardar com mais cuidado na cristaleira mais alta, estarei pronta para esta valsa com a minha descendência como Evita estava pronta para a Argentina, como Elizabeth estava pronta para a Inglaterra. Neles, a minha nação. Enquanto o planeta gira sem rumo, florestas incendeiam e icebergs derretem, eu planto um jardim frondoso num pedaço do meu mundo e guardo cada pássaro com as duas mãos. Sobrevivo por que, um dia, Deus me dará a bênção dos netos. A bênção do envelhecimento maravilhado, da infância revisitada, da alegria prometida. A herança do amor para os que ficarão. Até o fim dos tempos. Amém.
Meu Deus….quanta beleza há em suas letras! Todas elas assim: reunidas, dançando, fazendo uma festa no meu coração!!
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A convivência com Mateus está te fazendo um bem enorme!!! risos
Quem diria, hein, amiga?
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Gostei…
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