Uma das coisas que mais bestifica e impressiona esta ignorante que vos fala é o conhecimento dos meus amigos e parentes sobre todas as coisas. Todas. Não só no sentido acadêmico, mas também no empírico e banal, o fato é que todas as pessoas com quem convivo sabem mais do que eu, costumam ter mais experiências do que eu, ler mais do que eu, viajar mais, falar mais idiomas, praticar mais esportes e ter mais histórias pra contar do que eu. Incrível isso. Daí, por que mudança de ano é tempo de cultivar as vocações, eu resolvi investigar qual é a minha.
Não há muita opção. Por exemplo, eu gosto de cinema, mas meu conhecimento cinematográfico é parco, de quem escolhe o filme pelo preço da pipoca e sai da sessão duas ou três vezes para atender o telefone. Adoro informática mas, diante de qualquer problema no computador, basto-me a abrir a torre, olhar para as placas e acenar negativamente com cara de ventilador – gesto que, até hoje, nunca conectou nada à coisa nenhuma. Escrevo mal e porcamente, apedrejo a gramática todos os dias e considero o uso correto da crase um mistério insondável. Fotografo lenta como um daguerreótipo e incorro em enquadramentos poucos ortodoxos graças à minha miopia – sim, eu sou míope e não consigo enxergar isso. Tenho pouca habilidade com crianças, ainda menos com os adultos, nenhum refino para a escolha de vinhos e, mesmo os pratos mais simples do cardápio mais básico do restaurante mais tosco, eu nunca vi nem comi, eu só ouço falar. Gabo-me de dirigir bem, mas é mentira: fui reprovada três vezes no teste de habilitação e autuada em quase todas as infrações disponíveis (velocidade, contra-mão, estacionamento proibido, sinal vermelho, carteira vencida e velocidade de novo), o fim de cada troca de pneus parece um pós-guerra e sempre, em qualquer situação, os meus motores morrem junto com seus 59830 cavalos (se os números não são estes, nenhuma importância). Comento o noticiário com o aprofundamento histórico-político de um samba-enredo: gosto de falar sobre Lula, sobre economia e sobre coerência política no Brasil, ainda que não consiga encaixar as palavras Lula e coerência num mesmo período. Não sei de música, não leio partituras, não toco violão, não toco piano, não bato palmas enquanto canto parabéns, entendo pouco de composições, sei que Beethoven era surdo, Bach era órfão, Morzart era louco, Chopin era turbeculoso – e eu não vou nada bem. Sou uma cristã confusa: nunca sei se quem fugiu do Egito foi Davi ou Moiséis ou Zacarias ou Malaquias, se Abel era agricultor e Caim era pastor ou virce-versa ou nenhum dos dois era nada disso e disperso-me nas leituras procurando por vestígios de onde Judas perdeu as botas, dos escravos de Jó que jogavam caxangá e de outros fatos e personagens que, para minha surpresa, nunca constaram nas Escrituras. Todos os meus conhecidos exibem alguma medalha ou troféu esportivo, só eu não pratico nada, não jogo basquete, nem golfe, nem ping-pong e só entendo como futebol aquilo que preenche o último quadro do jornal quando não há mais nada importante a ser noticiado: fiquemos agora com as notícias do campo, Galvão.
Daí a pessoa pensa, poxa, ela não é talentosa, mas ao menos é esforçada – nem tanto. Sei que poderia e deveria ser uma boa aluna, mas sempre invento uma desculpa pra trocar a faculdade pelo bar – é que eu ando cansada, ando ocupada, ando estranha, ando deprê, não ando por que me atropelaram – e, quando apareço em classe, sou facilmente distraível: uma mosca no ombro do professor é o suficiente para este gênio da raça passar a tarde divagando e sair da aula sem saber da missa um terço. E ainda há os passeios. Todos que viajam comigo são capazes de discorrer durante horas sobre cada monumento, praça, avenida, pedra no meio do caminho com uma intimidade de velhos conhecidos enquanto eu olho a tudo com a mesma cara embasbacada de quem descobriu a póvora purpurinada: não entendo de mapas, rotas, não sei a distância de Salvador para o Rio de Janeiro e sou capaz de me surpreender mil vezes com as mesmas paisagens graças à mesma amnésia que me faz rir várias vezes das mesmas piadas. Também sobre o mundo financeiro meu conhecimento é parco. Costumo aplicar meu salário na bolsa, mas a minha nunca me rendeu nada além de chicletes, clips e os meus próprios documentos. Suponho que as baixas do dólar, do euro e da libra não estejam vinculadas às leis da gravidade, mas não posso dizer que sei o motivo e estou certa de que esta confusão numérica compromete a minha vida financeira – mas não falemos de dinheiro, por que não se fala de corda em casa de enforcado. Aí a pessoa, por benevolência e boa vontade, pode pensar, poxa, ela não tem conhecimento formal mas deve saber tudo sobre amenidades – piorou. No campo da moda, nunca desvendei o que faz um acessório A não combinar com acessório B, a menos que este venha seguido do acessório C e por que raios a ordem dos fatores pode alterar o produto. Sempre durmo durante as novelas e não entendo de celebridades, sei que uma atriz tal casou com o apresentador de TV, que a modelo casou com o jogador de futebol e que o cantor casou com a dançarina, mas se alguém misturar os elementos e oferecer-me uma nova combinação, irei aceitar pacificamente como se não houvesse opção anterior. Sobre programas de auditório, a minha única curiosidade é: por que as pessoas vão pra lá se poderiam assistir a tudo pela televisão? Não sei de maquiagem, nem de decoração, nem de costura, nem de nenhuma dessas atividades que tenham como princípio básico o bom gosto por quê, como a gente sabe, gosto é que nem braço: tem gente que nasce sem. Mas me sinto próxima das ciências, considero o mundo da biologia fascinante, adoro os vegetais (palmito), os animais (bife) e os minerais (ouro). Empatizo também com a medicina alternativa, com a sociedade alternativa e com os blocos alternativos, sou adepta de diversas filosofias e simpatizo com muitas atividades, mas entendo pouco sobre elas. Conheço muito pouco sobre muita coisa. E não sei qual a minha vocação.
Daí, depois de tantas hipóteses levantadas, opções descartadas e talentos inexistentes, eu nunca chego à conclusão nenhuma, além do óbvio: que eu não sei nada de nada sobre coisa alguma. E que, talvez por isso mesmo, a única atividade que pode restar à vida de uma pessoa desinformada de todos os fatos seja justamente essa: falar sobre eles. Por quê? Por que é mais fácil. Destino de peixe que nasceu dentro d’água é não reconhecer a água, ninguém se pergunta sobre o que sempre existiu. Só o iniciante possui um olhar desacostumado, perguntas desconcertantes, cara de turista deslumbrado na rua onde os outros sempre moraram, mania de falar do óbvio como se não fosse óbvio – às vezes, não é mesmo. Quem compôs a Quinta Sinfonia foi um surdo, quem escreveu Sampa foi um baiano, só alguém inadaptado chegaria à sua mais completa tradução. Só o novato segura o banal com as duas mãos. E, dentro da ostra, vê a pérola.
É isso. Suponho que a desinformação também possa ser um dom. Às vezes eu acho que a única coisa útil que eu posso fazer da minha ignorância é contar histórias.
[…] This post was mentioned on Twitter by Nathy Moa. Nathy Moa said: Minha cara! https://marianamiranda.wordpress.com/2010/02/03/ignorancia/ […]
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Adorei Mariana!! E concordo, com Niege. Modesta vc…
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Nossssa, incrível como me identifiquei com esse texto!! Me sinto um verdadeiro alien perto de alguns conhecidos meus… São pessoas tão informadas, que lembram de tuuuudo que viram, ouviram e leram. Eu sempre fico com aquela cara de e-agora-o-que-eu-vou-falar-depois…. Dá até vergonha!!
Mas vc é demais! Parabéns! Teu blog é parada obrigatória, OBRIGATÓRIA!!
PS: E eu q tenho habilitação há 5 anos e ainda NÃO sei dirigir, vc pelo menos já foi multada… ¬¬
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Perfeito!
Qd optou por jornalismo escolheu uma baita profissão generalista…n tem maravilha melhor do q perguntar o tempo todo, conhecer de td um pouco, investigar detalhes cruciais e contar histórias?? Achando pouco…vc primeiramente investiu na arte (fotografia/publicidade).
Discordou completamente sobre seus “parcos” conhecimentos sobre vários assuntos. Vc escreve divinamente bem, é uma boa condutora (atesto q jamais peguei uma carona contigo q eu tenha sofrido qlq arranhão..rsrsrs), economista de primeira (afff qm derá vc tão aplicada qt vc) – qm mais conseguiria rodar meio mundo com poucos recursos??? Anotando tdddddddd?? Quero criar um cardeninho igual!!!
Fotografia é com vc mesma…qm mais tirar ft p o governo da Bahia??rsrsrsrs
Vc tb sabe td qd assunto é amizade e lealdade.
Pessoinha modesta demais. Qt mais genial é o ser mais humilde ele é.
Amei esse texto. Inscreve em concursos de crônicas!!!
Bjs!
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