Digamos que era uma sexta-feira à noite. Digamos que você foi a uma festa. Ou foi fazer supermercado, ou visitar um amigo, ou resolver algum assunto banal. Agora imagine que você está voltando para casa e descobre que construíram um enorme muro dividindo a cidade no meio. Bem no caminho para a sua casa. E que você ficou do lado errado.
Foi isso o que aconteceu com milhares de pessoas depois da construção do muro de Berlim, em 1961. Ele foi feito em uma noite. Todo de cimento pré-moldado, como um jogo de armar, subiu em poucas horas, ninguém viu. E dividiu a cidade por 28 anos. Famílias foram fragmentadas, casais separados, gente desaparecida. Alguns tentaram de tudo – túneis, balões, uma corda amarrada entre um edifício e outro. Muitos foram fuzilados. Se, por acaso, você estivesse do lado oposto, não havia como voltar.
Muro de Berlim, Muralha da China, Muro das Lamentações – eu nunca entendi direito a diferença entre uma coisa e outra, talvez você também não saiba. Para começar, o de Berlim não dividia a cidade por igual: ele tinha quatro lados e ilhava a Berlim Oriental no meio. Hoje, existe até um monumento para explicar melhor esta sensação de isolamento – numa praça, há quatro paredes altas formando um quadrado fechado, sem nada no centro. Vazio. Os turistas procuram uma entrada, não encontram, andam em volta, ficam olhando e não entendem nada. E a ideia é essa mesmo.
Hoje, o muro em si quase não existe mais. O povo fez questão de derrubar boa parte dos vestígios do exílio, apagar um passado relativamente recente (30 anos?) e construir uma cidade nova (o que, historicamente, é uma pena, seria como se os baianos demolissem o Pelourinho). De certa forma, conseguiram. A nova Berlim é grande, bela e refinada. O muro caiu, o tempo passou e a Alemanha se tornou o país mais rico da Europa. Mas não pôde evitar um curioso impasse de imagem pública – apesar dos modernos edifícios, parques e praças, a maioria dos pontos de interesse históricos da cidade foram erguidos pelo nazismo ou pela Guerra Fria. O desconforto é inevitável. Depois de tantos fuzilamentos, deve-se ou não convidar os visitantes a conhecer o muro? E o belo cemitério de judeus? E o monumento a Hitler? As câmeras de gás entram ou não nos guias? Um dilema que eles chamam de “constrangimento turístico”.
Bem, podemos dizer que os souvenirs alemães são inusitados – pedaços do muro, postais dos bombardeios, chapéus com máscaras de gás – e que, por enquanto, a maioria das agências de viagens preferem encaminhar a turba romântica de turistas do mundo para a Torre Eiffel, Veneza ou Disneylândia. Berlim é para poucos. Mesmo rica e linda, a capital ainda não sabe o que divulgar para o turismo de massa e vive uma autêntica crise de identidade que nem um dos maiores PIBs do mundo pôde resolver. As vítimas do muro ainda estão vivas. Tudo é recente e denso demais para chamarem de passado. Em vários pontos da cidade, seria impossível a um visitante mais sensível não perceber a cicatriz alemã desenhada no chão – a linha de cimento pré-moldado que eles não deixam apagar – e não se perguntar sobre tantos outros muros cotidianos – a morte, a perda, a separação. Sobre tudo o que é repentino e irreversível, inesperado e inevitável. Berlim é uma cidade desconcertante. Olhar para o chão riscado convida o visitante a olhar um pouco para os próprios passos – num passeio banal, na festa de sexta à noite, na ida ao supermercado – e induz esta desconfiança histórica a um dos nossos receios mais íntimos e humanos – o de, um dia, ser surpreendido do lado errado.
Hobsbawm, que eu considero um carinha muito esperto, diz que as maiores revoluções/mudanças são feitas com a derrubada de monumentos. Nesse caso, um muro.
Seu texto faz a gente querer ver tudo isso que diz de perto e constatar “não é que ela tinha razão”
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