Eu estava numa banca de revistas próxima de casa, num fim de tarde ocioso, quando ouvi uma conversa inusitada. Vi o dono da banca cumprimentando um velhinho que passava do outro lado da rua, enquanto uma cliente sorriu para o revisteiro:
– Vejo que também o conhece.
– Há mais de 15 anos, minha senhora!
– E aonde será que ele está indo hoje?
– Ao cemitério. Todos os dias, no mesmo horário.
– Ah…
Ela não perguntou o porquê, nem ele prosseguiu explicando e a conversa se encerrou aí. Eu não entendi nada. Fiquei ali, olhando de longe o senhorzinho miúdo, magrinho, de bermuda e boné, andando até o fim da rua. Todo dia esse cara vai ao cemitério? Meu Deus, pra fazer o quê??
Aquele senhor devia ter uns 70 anos de idade, pensei. Não seria funcionário de lá. Talvez tivesse perdido amigos, parentes ou fosse viúvo. Mas ir ao Jardim da Saudade todos os dias era estranhíssimo. Se fosse viúvo, não estaria agora ocupado com os netos? Intuí que nenhuma pessoa que tivesse levado uma vida conjugal saudável se comportaria daquela maneira moribunda, se infiltrando entre as lápides com tanta insistência. Talvez estivesse meio caduco. Mesmo parecendo tão disposto, a gente nunca sabe. Ele foi andando, andando, até dobrar a esquina. E sumir.
Pensei. Decidi. Fui atrás do velho.
Eu sei, caro leitor, que isso deve lhe parecer ridículo – você questionará, sem dúvidas e com toda razão. Mas, quem pode negar que a curiosidade humana é capaz de bobagens inconfessáveis? Na ocasião, lá estava eu, naquele fim de tarde, seguindo o estranho vovô do cemitério. Que tipo de maluco seria aquele? Nem conseguia imaginar que tipo de culpa, dor, intenção arrastava aquela criatura para lá todo santo dia. No túmulo que ele visitasse certamente haveria uma pista. Todo obcecado tem uma história para contar. Conheço várias. Me lembrei, por exemplo, de um livro que havia lido, o “Museu da Inocência”, do Orhan Pamuk. Era a história de um turco que se apaixonava por uma prima distante e, depois que ela se casava com outro, ele passava a vida inteira colhendo vestígios da moça pela cidade – bilhetes, brincos, guardanapos – para montar um museu. Assim como o velho, o turco também repetia o mesmo gesto todos os dias. Incansável. Detalhe: o museu foi montado de verdade e o autor ganhou até o prêmio Nobel. Bem, a literatura não é muito mais absurda que a vida à nossa volta, cabe reconhecer.
Mas, voltando às ruas de Brotas: lá estava eu seguindo o nosso anônimo devotado. No caminho, essa história do turco me lembrou a de um outro romance – Dom Quixote, que também se apaixona pela prima e passa o resto da vida meio obcecado. Mentalmente, batizei o velho de “Dom Quixote de la Tumba”, morrendo de pena dele. O andar apressado, as perninhas magras dentro da bermuda, coitado do vovô. Devia ser sozinho neste mundo. Aprisionado ao passado, incapaz de fazer novos laços e de tocar a vida para frente. Conversando com uma lápide por anos a fio, pobre Dom Quixote. Fiel. Teimoso. Atormentado. Doido, doido, doido.
Assim, ele foi entrando pelo portão de ferro e eu esperei do lado de fora. Sentou num banco em frente ao imenso gramado, olhou o horizonte, os túmulos, o céu, a pista deserta. Amarrou os cadarços do tênis. Levantou. E começou a correr.
O velho ia ao cemitério para fazer cooper.
sensacional rs
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hahahaha! Meu deus, e eu fazendo elucubrações no meio da leitura… puta merda!
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