E agora Inês é morta.
Naquele momento em que eu tomava fôlego para dizer exatamente o contrário. Num contexto que nada tinha a ver com a sorte Inês de Castro nos jardins de Coimbra, essa expressão que eu também costumava ouvir no Brasil, ainda que a maioria dos brasileiros não tenha ideia de quem seria Inês e por qual motivo veio a falecer. Às vezes, ouvindo o modo de falar daqui, reparo nas frases que eu repetia sem ter ideia do significado.
Inês é morta.
Em Portugal, não se diz que alguém está morto, porque não se trata de uma situação temporária. Inês está juíza, está fumante, está corintiana e está católica por que ela pode, um dia, deixar de ser. Mas Inês é mãe, é filha, é negra e é alta para sempre. Está esposa de alguém, é viúva de alguém. Está amiga, é irmã. Está jovem, é velha. Está viva, é morta.
Eu não quero ficar.
Naquela fase em que o lugar começa a parecer seu. E já há um vagão preferido no metrô e planos para as férias com a família: não vai mais haver férias. Sem mais idas e vindas. Em inglês, o verbo to be não faz distinção entre ser e estar e eu nem imagino um mundo onde não haja diferença entre estar sozinho e ser sozinho, entre estar bêbado e ser bêbado. Só quem foi alfabetizado em português poderia entender, desde a primeira infância, que o lobo é mau e está com fome.
“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”
Pareceu repentino. Ideias vão se amontoando pela casa, te arrastando para a rua, te puxando pelo braço e, quando você se dá conta, está na porta do aeroporto. Tirando os fins de semana, quantos dias faltam? Se eu fizer uma escala no México, são quantos dólares a mais? É preciso encerrar a conta no banco e na telefonia? Mas as portas do metrô abrem-se e aquele labirinto de gente e a claridade da rua fazem tudo parecer irreal. Subo Alfama levando o leite e o pão.
Faltam 20 dias e a escala no México custa 500 dólares.
A sua foto no passaporte me lembra um verso de Drummond: também já fui brasileiro, moreno como vocês. A foto do meu passaporte parece o cartaz de um cabaré no Alecrim: Valéria vai levar-te à miséria. Fiquei esperando no salão da embaixada, todas as estátuas olhavam para mim. Eu não precisei dizer nada. Depois de um silêncio devastador, você perguntou se eu estava fazendo a escolha certa. E quem neste mundo sabe se está fazendo a escolha certa??
“Se, em certa altura, tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita. Se, em certo momento, tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim. Se, em certa conversa, tivesse dito as frases que, só agora, no meio-sono, elaboro – se tudo isso tivesse sido assim, seria outro hoje e talvez o universo inteiro fosse insensivelmente levado a ser outro também”.
Em 1755, Lisboa passou por um terremoto. Que provocou um tsunami, que causou um incêndio, que contaminou a água e culminou na peste. O trágico não vem a conta-gotas, diria Guimarães Rosa. Hoje, olhando para essas ruas impecavelmente restauradas, penso que a gente se recupera de qualquer coisa. Ou não se recupera de nada e segue aquela lógica do Fitzgerald: um homem não se recupera de tais estremecimentos – ele se torna uma pessoa diferente e, eventualmente, a nova pessoa encontra coisas novas para se preocupar.
O problema de morar numa cidade indubitavelmente bonita é que você nunca sabe se realmente gosta do local ou se ele apenas te conecta com seus arquétipos de perfeição. É uma gaiola dourada. Meus dias de merda no último inverno pareciam cenários do Pinterest. Uma vez, no muro de um país do norte, havia um grafite: coisas extraordinárias estão sempre acontecendo em outro lugar. A sentença parecia deslocada por que estava escrita numa paisagem fabulosa, num país de primeiro mundo, como alguém poderia desejar estar em outro lugar? Vejo que, em qualquer cenário, a frase cabe tranquilamente.
Foucault diz que Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação. O coitado não precisava saber de tanto. As frases mais difíceis que ouvi na vida tinham conjunções adversativas de moer o espírito e, no final das contas, nem eram necessárias. Decisões ruins já falam por si, mas uma frase errada num momento crítico só fixa legenda à tragédia, nos dá material para mastigar neuroses pelo resto da vida. Recuei para não pronunciar nenhuma idiotice. Talvez, um dia, eu saiba exatamente o que deveria ter dito no salão da embaixada. Dispomos de uma gramática com mais de 400 mil palavras e, até hoje, eu não consigo pensar em nenhuma que não quebrasse o coração de alguém.
“Quer morrer no mar, mas o mar secou.
Quer ir para Minas, Minas não há mais.”
Quando cheguei, eu nunca tinha ouvido falar de Sintra. Fui conhecer com duas colegas também novatas. O desembarque do trem foi um arrebatamento eufórico: as casas, as lojas, tudo parecia incrível, corremos por aquela praça a tarde inteira. No dia seguinte, nos explicaram que a gente não havia chegado à Sintra, aquela era a praça do desembarque, uma área de serviços, a cidade ficava mais à frente. Adorando o engano, respondi rindo: queridos, parem, a gente não precisava saber disso!
“Vou passar a noite em Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência
Sempre, sempre, sempre
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma.
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida.”
Não sou boa em abrir o jogo. Arregalo os olhos, aceno sinais, mas não consigo dizer ao outro que o chapéu dele está pegando fogo. Em francês, não é possível construir uma frase sem que o sujeito esteja exposto: je, tu, il. Mas, em português, dá pra escrever uma enciclopédia usando apenas o sujeito oculto: descobri tarde, tentou muito, quebramos a cara. Quem? Eu, ele, nós. O interlocutor compreende.
Ou assim a gente supõe.
Em árabe, há mais de 100 palavras para designar camelo. Em inglês, o substantivo mais repetido é tempo. Em português, a palavra mais falada é coisa, que pode ser usada para definir camelo, tempo, dinossauro, asteróide ou qualquer outro substantivo do nosso idioma. A nossa palavra mais importante não tem significado próprio, ela sinaliza algo que já estaria evidente no contexto.
Ou assim a gente supõe.
Num dos nossos primeiros passeios, eu tirei uma foto sua na Regaleira. Você tinha 25 anos. Todos os anos em que voltei, refiz a foto no mesmo lugar. Vi aparecerem os seus primeiros óculos, os primeiros fios brancos, as primeiras preocupações. Sempre um perfil fugidio, dessas belezas que vão mudando com a paisagem, num fluxo imprevisível de dilúvio, calor, granizo, primavera. Ajusto o foco, de novo. Dessas metamorfoses que a gente não sabe aonde vão dar e quer estar ali para ver.
Quando ainda cursava Antropologia, me falou sobre o conceito de não-lugar, de Marc Augé. Espaços que não são um destino em si, mas um local de trânsito: um corredor, um elevador, uma rodoviária, uma sala de espera. Ninguém diz que está saindo de casa para ir ao viaduto, eles são um preâmbulo, um hiato. Como esta ponte onde estamos passando agora? Sim. E por quê você quis pesquisar sobre isso? Não sei. Na Guerra Fria, quando a União Soviética e os americanos resolveram travar uma guerra, não o fizeram em suas casas, mas no Vietnã, na Alemanha, no Afeganistão. Acho que países inteiros já foram considerados um não-lugar. E penso que todo mundo já foi um hiato na vida de alguém.
“Quando estão juntos, satisfaz-se em fitá-la, em ouvi-la, em observar-lhe as pupilas e o movimento dos lábios a um metro de distância dos seus olhos. Enquanto fala com ele, Mariana pertence-lhe.”
Hugo Mãe conta num romance que conheceu o Esteves num asilo, aquele que é citado por Fernando Pessoa no poema Tabacaria: é o Esteves sem metafísica. Esteves seria um rapaz de entregas que trabalhava na rua onde o poeta costumava fumar e, anos depois, ele teria ficado orgulhoso de ter sido citado, ainda que de maneira irônica: sem metafísica? Que inverdade! Achei o caso engraçado. Parei um minuto para pesquisar se era mesmo real este encontro no asilo e o que teria acontecido depois, mas algo me deteve. A história era ótima. Tão portuguesa. Carregar esta dúvida seria um privilégio.
“Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais”
Encantos deste inverno: uma película de gelo sobre a janela de manhã. O sótão alugado, a experiência de viver dentro de um telhado. Todos os reencontros, mesmo os inesperados e constrangedores. Hambúrguer com cerveja no café da manhã. A biblioteca da universidade.
Tristezas deste inverno: saudades da família. Uma noite de chuva dentro do transporte público sublinhando o desconforto burguês de não possuir um carro. Xenofobia nas lojas, nos bares, no trânsito. O aquecedor que vazava gás e fazia sonhar com o Terceiro Reich. Uma frase do filme de Curtis Hanson: Esta é a cidade dos anjos e você não tem asas.
Sento-me sobre o telhado, de madrugada. Fito o Tejo lá embaixo, como um deus que descansa no sétimo dia da criação. Acho que tenho com essa cidade uma dessas relações obsessivas que possuímos com todo mundo que já nos deu o fora. Faculdades que nos reprovaram, festas em que fomos barrados, empregos que nos dispensaram, filhos da puta em geral. Me pergunto se não voltei só pra ter a oportunidade de mandar tudo isso à merda. É possível. Sou capaz de apontar um canhão para matar um mosquito.
“But I’m a creep, I’m a weirdo.
What the hell am I doing here?
I don’t belong here”
Desculpa por não querer ficar. Desculpa por ter chegado tão longe para, no final, dizer que preciso da minha aldeia. O que a gente é e o que a gente está são coisas diferentes, então eu também entendo o seu silêncio – nós somos próximos, mas estamos distantes. Agora, da janela do táxi, a avenida da Liberdade passa tranquila, até amistosa e, mesmo o aeroporto – onde já embarquei mais de vinte vezes e nunca me pareceu um lugar fácil ou familiar – já não assusta. Todas as coisas parecem acessíveis quando a gente já não precisa mais delas.
“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”
É o fim de uma era, gajo. Aqui se acaba a nossa década de Lisboa.
É a última chamada.
E agora Inês é morta.
Que texto fantástico amiga! Consigo ouvir sua voz me contando isso!
Me vi em um episódio, quando rodou o local de desembarque pensando ser Sintra, lá fui eu da mesma forma em 2011. Até que você me disse que existiam dois castelos: Mouros é Pena, além da linda Cascata da regaleira, rsrsrsrs. Tive que ir conferir….
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Que texto lindo. Me emocionei.
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Maravilhoso, Mari!
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