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Agosto de insônia nos hospitais

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“Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.”

(Caio Fernando Abreu / Além do Ponto)

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“Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.

Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva.”

(Bertolt Brecht / Para Ler de Manhã e à Noite, no livro Poemas 1913 – 1956, pág. 143)

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“Liberdade também era isso, não voltar. O amor existia em todas as direções. Ela pressentia isso. Que o amor estava para lá de qualquer direção.”

(pág. 23)

“Os livros são objetos cardíacos. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. (…) Era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tanto tempo. A morte não importa muito para os livros.”

(págs. 58 e 59)

“Uma menina do colégio perguntava-me sempre se queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda noturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.”

(pág. 59)

“Puseram sobre o parapeito da janela principal uma fotografia da igreja nos tempos antigos. Quando alguém pensasse no que ia lá fora, veria a igreja na sua melhor multidão e pensaria que estava ali tudo. Tudo ali, como se, através das pessoas, todos os lugares do mundo estivessem juntos.”

(pág. 76)

“Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ver as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.”

(pág. 85)

(Valter Hugo Mãe / Contos de Cães e Maus Lobos, 2019)

  

Neste livro, houve um conto que me tocou profundamente. Vou contar de cabeça, não sei se correto. Fala de um casal de idosos que mora numa pequena aldeia e que é amigo de um outro casal de idosos há muitos anos. Os primeiros moram numa casa na fronteira da cidade, ao pé da montanha, à beira de um precipício. O segundo casal mora no alto, no centro da cidade. Um dia, os que moram embaixo propõem que a festa de fim de ano fosse feita na casa deles. O casal do alto não aceita bem a ideia e acaba havendo um desentendimento na noite de Natal. No dia seguinte, o casal de baixo sobe até a cidade para cumprimentar o casal amigo e desfazer aquela briga desimportante. Mas são ignorados pelos dois, que fingem estar ocupados. Decepcionados, os dois velhinhos descem a ladeira e voltam para casa pensativos. Sentados na varanda, ficam olhando o despenhadeiro. E, de repente, sentem o chão se mover como num terremoto. Como se a cidade aumentasse de altura atrás deles e acentuasse o declive da ladeira, inclinando a casa para o precipício. Eles se assustam. Seguram-se um no outro e abraçam o cachorro. E o conto acaba.

Achei comovente. Imagino que qualquer pessoa que, em algum momento da vida, tenha habitado a fronteira das relações, entende a delicadeza desta metáfora. Foi a coisa mais singela que eu li este ano.

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Décimo segundo dia da quarentena. Ontem ficamos sem energia – sem internet, sem rádio, sem celular – e, hoje, deve faltar água. Mais um dia assim e vão me encontrar conversando com uma bola de vôlei. Tenho feito registros só para marcar este episódio histórico, mas, hoje, esse negócio de escrever sobre os bastidores de uma tragédia pública me pareceu meio macabro, tipo Diário de Anne Frank ou O Paciente Inglês. Dessas narrativas despretensiosas que as pessoas fazem quando acham que tudo vai ficar bem, quando ainda não entenderam que aquele cenário confuso diante delas é apenas. o fim. da linha.

A comida está acabando. Não estoquei nada – empatia social, mores – e não sabia que o mercado levaria sete dias para fazer a entrega, então o jantar de hoje foi gelatina com aveia. As crianças gostaram. Tenho mantido a casa entretida mesmo dentro da calamidade, um perfeito roteiro de A Vida é Bela. Quando fui procurar na dispensa algo para o café de manhã, entre potes de chá, orégano e mais gelatina, encontrei algo que me fez lembrar o ano de 2010. Meu Deus, que fase.

(Caro leitor, se você também viveu alguma coisa bizarra há 10 anos atrás, abrace seu Buda: esse é um ciclo que vai se fechar agora. Diria Bukowski: você só cai de um mesmo cavalo uma vez por década).

Voltemos a 2010. Devo lembrar que, naquela fase do período cretáceo, possuíamos poucas redes sociais, os celulares dispunham de fotos com baixíssima resolução e nenhuma internet móvel. Época horrível. Eu estava vivendo momentos de altos e baixos financeiros que, quando altos, tocavam as nuvens, quando baixos, mergulhavam no magma da Terra. Atribuo esta turbulência monetária ao fato de ter uma personalidade otimista – irresponsavelmente otimista – somada à certa ingenuidade juvenil. Até então, eu desconhecia esse abismo cognitivo que existe entre pessoas com menos de 30 anos e as que possuem mais de 30, esse portal que só se revela depois que você atravessa para o lado de cá e te faz rever os filmes da sua adolescência apenas para descobrir que os pais do mocinho estavam com razão o tempo todo. Eu era muito ingênua. Essa iluminação ainda não havia chegado a mim. Só lembro de, em junho de 2010, estar bem feliz vestida de vermelho na Champs-Elysees, jantando numa esplanada à luz de velas. Em julho, de ter levado um calote memorável. Em agosto, de estar vendendo os meus móveis na feira para pagar o aluguel.

Final trágico para uma bancarrota épica, sim?

na verdade, não. Era só o começo.

Infelizmente, os móveis não valiam tanto e, no fim do verão, fomos despejados. Pensei em desistir de tudo, mas eu estava obstinada por um projeto pessoal importante, era a chance da minha vida. Consegui alugar um porão num prédio histórico caindo aos pedaços, um depósito subterrâneo sem janelas, uma única lâmpada. Eu não sabia como seria o inverno ali. Ter vendido o tapete foi uma decisão errada, por que o piso foi ficando mais gelado a cada dia. A lareira não funcionava, muito mofo. As chuvas foram chegando, as infiltrações inundavam tudo e não dava mais para dormir no chão. Mas eu ainda estava otimista. Irresponsavelmente otimista. Eu achava que ia passar.

Não passou.

Meses depois, fomos despejados de lá também e embarcamos para a África – pela terceira vez – porém a África estava em guerra – de novo – e isso representou problemas ainda piores, mas o episódio que eu quero narrar foi um pouco antes. Foi naquele dia. O momento exato em que eu entendi que não dava mais para ser otimista. Aquilo não ia passar.

Era uma dessas tardes tristíssimas em que eu estava chegando do trabalho. Eu me perguntava o que ia acontecer com a gente naquele inverno. Me curvei para entrar no porão, tranquei a porta, tirei o casaco, acendi o fogareiro e fui ver o que restava na dispensa. Eu administrava as compras e percebi que havia algo errado. Os biscoitos tinham acabado, mas ainda havia arroz e sardinha. Enumerei os itens de novo e me dei conta do que estava acontecendo:

Meu namorado estava, há semanas, ALMOÇANDO BISCOITO DE COCO para que eu tivesse o que comer.

GENTE.

MEU MUNDO CAIU.

Eu estava causando problemas a outra pessoa. Eu fiquei paralisada com essa informação.

Eu não havia percebido antes. Entre todas as aquelas privações, por algum motivo, essa mudou tudo. Por que eu percebi que a culpa era minha. Do meu projeto de vida, da minha obsessão, do meu otimismo. Não falei nada sobre o assunto. Mas este dia marcou uma série de mudanças: eu entendi que precisava fazer algo, que aquela fase ruim não ia, magicamente, passar.

E devo dizer que nunca mais na vida eu comi biscoito de coco. Tomei horror. Arroz com sardinha também passou a me causar aflição. Enfim.

Depois de uma labuta colossal, finalmente, os meus planos deram certo. E tudo se ajeitou. Hoje, seria elegante concluir que todos estes episódios mudaram completamente a minha maneira de ser e que eu me tornei uma pessoa madura e ponderada, que não alimenta quaisquer projetos aventureiros irresponsáveis – mas a quem estamos tentando enganar, não é mesmo??? EU NÃO ME IMPORTO. Provavelmente ainda passarei por perrengues incríveis nesta vida, mas aprendi que não posso arrastar ninguém comigo para o fundo do poço. Meu coraçãozinho é bem Saint-Exupéry: a gente é responsável pelo que cativa.

Final feliz, vejam só. E dez verões e invernos sucederam-se no calendário gregoriano.

Em março deste ano, quando começou a quarentena, eu fui uma cidadã exemplar. Mantive uma calma celestial desde o início, ajudei a todos. Vai parecer louco o que eu vou dizer, mas, ao menos, foi apaziguador estar diante de uma crise que não fui eu quem criou. E não sou eu quem precisa administrar, conduzir, solucionar. Estamos vivendo uma pandemia, é um problema mundial. A dispensa está vazia de novo, mas é um alívio saber que a culpa não é minha.

Então, hoje à noite, em episódio não relacionado, fui resgatar uns alimentos no armário e encontrei algo surpreendente. BISCOITO DE COCO. Socorro! Ninguém sabe de onde veio. Concluí que ele foi trazido pelo Bukowski em pessoa, que levantou da cova catando os próprios pedaços e dirigiu-se pessoalmente à minha cozinha só para me lembrar que uma década já se passou. Que está começando outra. E que eu não posso deixar aquele cavalo me derrubar de novo.

Por absoluta falta de opção, o café de amanhã será esse mesmo, biscoito de coco. No almoço, teremos um cardápio sofisticado composto por salsichas em cubos acompanhadas de milho em lata. No mais, seguirei tocando violino no convés do Titanic, escrevendo diários sobre um futuro melhor. Vendendo otimismo nesta quarentena.

Isso vai passar. É claro que vai.

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Ela era uma babá nos anos 50. Nas horas vagas, Vivian Maier saía para fotografar as ruas. Acho o trabalho dela lindo e sofisticado, mas gosto especialmente do fato dela ser a precursora das selfies.

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O trabalho de Vivian me fez notar que as pessoas não registram suas vidas. Fazem fotos de viagens, de festas, de excessões. Este ano, passei a me fotografar nos lugares da minha vida real: no banco, no mercado, no espelho de segurança do estacionamento. Sem o propósito estético das selfies atuais, sem filtro. Também sem o talento nem a Rolleiflex da Vivian. Nem sei o que fazer com essas imagens. Ela também não sabia o que fazer com as dela e deixou tudo num baú trancadíssimo num sótão aleatório de Nova York.

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Pois é, Vivian, acho que esse blog é o meu baú. Mas ele segue aberto. Aqui, num sótão aleatório da internet.

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“Da ilha mesmo, o que ficou foram os desenhos variados de pedras portuguesas nas calçadas, o mar distante batendo nas rochas vulcânicas, os amigos poetas, os turistas alemães e ingleses vestidos de safari procurando alguma coisa que nunca vão encontrar, o teleférico que passa sobre a cidade e sobe até lá no alto das montanhas, tão altas que até neve têm. O que veio da ilha, além de algumas frutas exóticas, de umas garrafas de vinho e de um bom livro de Valério Romão, foi a certeza de que o primeiro encontro com nossos filhos não acontece neste mundo, no dia em que eles nascem, mas milhões de anos atrás, além de todas as estrelas, em algum lugar do infinito.”

(Edgar Duvivier / Carnet de Voyage)

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“- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?

– Depende – responde o português.

– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?

– Sim.

– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.

O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda dos sentidos.

– Me receite um remédio para eu desmaiar.

O português rir-se. Também a ele apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.

– Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.

Riem-se. Rir juntos é melhor do que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.”

(Mia Couto / Venenos de Deus, Remédios do Diabo)

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