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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

 
“Toca meu ombro, olha nos meus olhos,
como nas canções de rádio.
Depois me diz – vamos embora para um lugar limpo.
Deixe tudo como está. Feche as portas, não pague as contas
nem conte a ninguém.” 
(Caio F. / Anotações sobre um Amor Urbano)

 

 Agora toca Nando Reis, toca Hermanos, toca Bethânia e qualquer coisa que toque neste maldito rádio só me mata mais devagar, mas deixa, me deixa sangrar um pouco mais repetindo, ai, onde eu estava com a cabeça? Eu nem sei quanto tempo faz. Esse futuro-do-pretérito ainda gira na minha sala com o que poderia ter sido, com as palavras lindas que não foram ditas, com tanto amor desperdiçado, você nem conhece esta história, mas te ver remar contra a maré do óbvio me ajuda a não sentir vergonha de mim, vergonha por insistir no erro de ainda trazer o peito aberto, pensando bem, a gente teima por ingenuidade ou é ingênuo por teimosia? Os inocentes do Leblon não sabem de você. Nem vão saber.

Giro o botão do volume como quem gira o do gás, hoje eu vou afundar até o fim com o meu navio, hoje eu não quero escapar disso que é tão inevitável para quem escolheu a intensidade e você sabe do que eu falo, esta intensidade absoluta e nítida de sangue denso, braços castos, você que se guarda como num conto e era uma vez num castelo distante onde a gente talvez se perguntasse sobre esse gelo nas mãos e a história mudasse de rumo tão naturalmente quanto isso de se olhar e se entender e ser inteiro numa conversa que nunca precisou de uma vírgula para acontecer, olha, não deixe que isso se perca mesmo que sua honestidade seja um dom que o mundo não merece, mesmo que o sonho não aconteça, é certo que a redenção vai vir com o Renato voltando do céu com um coro de anjos anunciando que vem chegando a primavera e o nosso futuro recomeça ou com os pianos de Noturno ou com o Alceu que já escuta os teus sinais ou com qualquer canção que faça tremer os lustres das sacristias e tome de arroubo as pessoas da sua rua tão estrangeiras ao seu modo de ser. Não, não precisa entender. Aumenta o rádio, me dê a mão, eu vou pagar a minha promessa de não deixar dor nenhuma pela metade, é o meu troféu, é o que restou: uma ou duas fotografias e a trilha sonora para uma década, os anos dourados que eu não vivi regidos pela filarmônica do improvável, como o refrão de um bolero, como cinema sem movimento. Você me pergunta pela minha paixão e eu não sei em que hora dizer, deixo assim ficar subentendido. A freqüência mais devotada ao sofrimento não vale este meu silêncio, não vale as ruas que ladrilhei para você passar, olha, este rádio ainda me mata. Apesar de tudo há um encantamento enorme nestes meus olhos rebeldes contra todos os males do mundo. Apesar de tudo. É uma noite longa para uma vida curta. Sim. Mas você pode ter certeza de que o seu telefone irá tocar.

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Antigas

Perdi o bonde da esperança.
Volto pálido pra casa.
(Drummond / Soneto da Perdida Esperança)

Não vá lá não, maninha, nem vá. Tira esse brilho dos olhos, aquieta teus pés. Guarda tua maquiagem na gaveta que hoje a noite é triste, que amanhã será mais, olha, eu preciso te dizer: do lado de lá do portão não há nada. Nos enganaram com histórias antigas, as nuvens são de chumbo, ninguém vai salvar ninguém do dragão. Nem de si mesmo. Larga essa tv, presta atenção, você não sabe de nada, esse fogo ilumina mas não aquece, é néon barato, pirotecnia besta, a luz no fim do túnel é só um trem no sentido contrário. Se o telefone tocar, não atenda. Se o correio bater, ignore. Se a tristeza invadir, ponha a mesa para três. Tantos livros na estante e felicidade ainda é palavra sem tradução, olha, abraçe a sua loucura antes que ela te escape, nossa causa perdida não está mais perdida do que nós, maninha, a gente não tem para onde ir, fica, vai lá não.

Desliga esse rádio e reza baixinho pelo nosso futuro que pulou da janela, o dia vai nascer daqui a pouco, espera, deixa ficar essa dor de noite escura. Inevitável. Como os impostos. A gente perdeu o bonde da esperança e só nos resta este chão de estação suja, vem, senta aqui, mas não fica assim, não chora. Coloca teu pijama, esquenta um chá para nós. Se guarda disso tudo, por que teu peito é frágil e o mundo dói demais. Tenta esquecer, por favor, tenta esquecer. Mas não chora assim, maninha, não precisa. Que eu já chorei um mar por mim e por você.

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Continuar

Deus há de escutar. Por que a vida que a gente leva, essa vidinha aqui, deve valer a as cicatrizes que deixa, apesar do cansaço, da mentira, do meu coração fatiado sobre a mesa, por que há a oportunidade de revanche de toda uma biografia, o éden prometido e chegado antes da hora, meu Deus, qual o preço do meu pedido? Eu quero tanto. No meu olhar de terra arrasada essa esperança insistente: de que, um dia, eu possa ser avó. Que Deus me conceda uma família com a dádiva dos netos – esses cristais que coroam a vida de uma mulher para sempre, esta promessa do milagre adiado que é tudo o que eu preciso para continuar.

Que venha a primavera do meu DNA espalhando-se em sapatinhos minúsculos, em cheiro de talco e brinquedos pelo chão, por que eles chegarão quase de repente, não demoram a invadir o lar que já é deles e serão donos de cada centímetro de mim. Enquanto meus filhos – terei-os também – ocuparem-se com os bons modos e a educação dos pequeninos, eu terei espaço para o incorrigível, por que ser avó é a experiência única do bem-querer sem exigências, gratuito, a minha vocação para a queda-livre, o meu destino para a avalanche irresponsável do amor incondicional. É claro que eu nasci para isso, podem ir trabalhar tranqüilos. Podem cuidar de suas vidas. Me deixem em paz com as crianças.

Delas serão as cantigas mais lindas, os caprichos mais banais e eu já posso ver Freud se retorcendo no túmulo, Piaget tendo convulsões, danem-se todos os estudiosos da pedagogia, por que meus infantes vão desenhar todas as paredes da casa e nem o teto será o limite. Os heróis de todos os contos terão seus nomes, nenhum lugar será longe demais e eu contarei a eles as histórias fantásticas do meu tempo – as que eu não lembrar, invento. Se eu souber fazer bolo, farei bolo, se eu souber fazer pipa, farei pipa, se eu não souber fazer nada, melhor, nos restará a curiosidade sobre a mesa da sala infestada e nós aprendendo juntos um mundo inédito, viscoso, complexo, ovos, trigo, manteiga, papel e esse fermento da alma que infla-se em questões impensáveis – eu também não sei como o pintinho respira dentro do ovo, querida, boa pergunta. As mãozinhas sujas tatuadas em mim e a surpresa infantil diante do esperado. Não batam na porta, não telefonem. Me deixem em paz com as crianças.

Elas virão – em cada bebê me chega um postal do futuro, em cada parque um tapete se estende e, apesar dos males de agora, eu devo, eu quero, eu posso continuar. Devo colar meus cacos outra vez e me guardar com mais cuidado na cristaleira mais alta, estarei pronta para esta valsa com a minha descendência como Evita estava pronta para a Argentina, como Elizabeth estava pronta para a Inglaterra. Neles, a minha nação. Enquanto o planeta gira sem rumo, florestas incendeiam e icebergs derretem, eu planto um jardim frondoso num pedaço do meu mundo e guardo cada pássaro com as duas mãos. Sobrevivo por que, um dia, Deus me dará a bênção dos netos. A bênção do envelhecimento maravilhado, da infância revisitada, da alegria prometida. A herança do amor para os que ficarão. Até o fim dos tempos. Amém.

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Baby, baby

– 2º Lugar no Concurso de Crônicas FDJ 2007.2 
– Texto selecionado para o roteiro da peça ‘Crônicas in Cena’, encenada em 2008

 

Eu tinha muito medo do fundo do poço. Medo de mergulhar na depressão profunda dos escritores amargurados, dos poetas niilistas, dos suicidas do romantismo. No íntimo, todo mundo sabe que a sanidade humana é bonde que vai e pode não voltar nunca mais, todo mundo tem medo dessa maré vermelha que, quando se aproxima, lota as salas de terapia, yoga, esoterismo, de qualquer coisa que possa salvar as pessoas de si mesmas. Salvar-nos do último degrau do subsolo. Eu tinha tanto medo. Mas não pude escapar.

O fundo do poço é só uma etapa. Isso de agora eu nem sei o que é. Depois de você, toda essa cidade maldita também se parece com o seu mosaico de fotografia mal colada, cartão-postal remendado: prédio, rua, carro, gente, tudo amontoado e feio. Tenho feito tanto esforço para não enlouquecer. Para não por mais uma vez o fogo sobre Roma, a peste sobre a Colômbia, o mar sobre a Indonésia, para não destruir tudo como se nada nunca houvesse existido. Tragédia nenhuma seria muito. Sangue nenhum seria demais.

É que, na miséria, todo mundo se parece. Chorando escondido no chão do banheiro somos todos iguais, baby, precários, bicho assustado que nasceu sozinho, vai morrer sozinho e, no intervalo entre uma coisa e outra, agarra-se à mão de outro por puro desespero. Não seja idiota, você também está só, toma a minha mão, há tão pouco tempo para nós.  Mesmo te odiando um pouco está tudo bem e eu acordo e tomo banho e escovo os dentes e tudo continua, acredite, eu não estou perdida, não mais do que ontem ou anteontem ou durante todos estes dias que têm se amontoado sobre as minhas costas.

A verdade é que, depois de apostar todas as minhas fichas, eu apostei os meus olhos, os meus pés, o meu coração, tudo. Eu tinha tanta certeza de que, quando estivéssemos aqui, você me abraçaria em silêncio, colocaria a mão sobre minha testa, me devolveria a fé, essa fé que é tudo o que eu preciso para me converter num ser humano iluminado. Talvez eu descobrisse essas coisas antigas de esperança e inocência que, eu sei, ainda restaram em algum lugar aqui dentro, e eu seria feliz te escutando dizer que este meu inferno não foi em vão.

Mas nada. Você aparece e fica me olhando com esses olhos mudos, com essas mãos no bolso, com essa cara de quem assiste a um filme russo sem legenda, ah, você não entende nada mesmo, baby. E nem adianta eu tentar explicar que foi por você que eu queimei meus navios e agora estou presa nessa ilha com a água até o pescoço ou te dizer que pensar com raiva que posso esbarrar com você em qualquer esquina a qualquer hora é a motivação que tem me arrancado da cama todos os dias. Amor é pretexto para falta de inteligência, eu não vou tentar explicar nada.

E fico aqui, acorrentada sobre o trilho do trem, cética com meus fones de ouvido em volume suficiente para me manter surda do mundo, escrevendo com força sobre o papel como escreveria sobre o mármore de uma lápide. Pra dizer o que? Que eu tive uma alma inteira pra dar. Que me arrancaram uma metade e o vácuo que ficou pode subtrair a outra. Pra você saber que eu te amei tanto, mas tanto, que sempre eu disser isso no tempo pretérito será uma farsa. É que isso não passa, ou é ou nunca foi. Não há próximo degrau, baby. A morte e o amor – eles não têm etapas.

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Afins

Não por acaso. O gosto por um mesmo filme, um ideal em comum. A mesma capa de caderno futurista ou o desejo gêmeo de viajar para conhecer aquela terra distante que quase ninguém ouviu falar, sim, duas ou três conversas e sabe-se. Entende-se. Sem querer, a gente descobre a afinidade.

A afinidade é um laço discreto, silencioso. É estar longe e seguir pensando parecido a respeito dos fatos do mundo que impressionam, comovem ou mobilizam, é ferver ao mesmo grau. É não ter que explicar uma idéia, justificar uma atitude, é aceitar antes de compreender as razões do outro – por que a razão é quase sempre supérflua mesmo ou por que, como traduziu Quintana, quem não compreende um olhar não vai compreender uma longa explicação.

Uma resposta adivinhada antes da pergunta e você se transfigura num ser humano compreendido, uma frase dita ao mesmo tempo e pronto: se está menos sozinho no mundo. A incompreensão é o exílio das minorias – só que todas as pessoas fazem parte da minoria em algum aspecto. Até que aparece alguém que não estranha a sua mania de roer as unhas, que usa a mesma boina listrada, que também é fã daquele ótimo saxofonista pop do sul do Paquistão. E a alma se acalma. Num planeta estrangeiro e ininteligível, você encontrou um ser humano como você, falando exatamente o seu idioma e com um sotaque igualzinho. O que pode ser mais acolhedor?

Só que falar de afinidade é também quebrar o pacto da afinidade, por que ela é silenciosa mesmo, mora nas entrelinhas. Por que a gente quase nunca diz a essas pessoas o quanto foi bom encontrá-las, o quanto o nosso mundo se fez menos árido e desértico depois da chegada delas. Com cuidado, a gente disfarça o nosso medo íntimo de que este encontro raro não resista à rotina atribulada, às impossibilidades da distância ou à chegada de outras amizades. Nos bastamos em agradecer baixinho a Deus por essa delicadeza do destino, essa sorte, essa dádiva que a gente vive junto mas não fala, talvez por que não saiba, talvez por que não precise. Entende?

Sim, você entende.

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Clarice

A verdade é que a gente sempre esperou os grandes males. Estávamos prontos para os homens-bomba, para os idealistas torturados, para os famintos desfigurados, para os roqueiros quebrando guitarras nos festivais. No fundo, a gente sabia dos ecologistas apocalípticos, dos religiosos fanáticos, dos românticos suicidas, considerávamos as possibilidades mais drásticas, solenes, grandiosas, por que, acredite, a gente nunca esperou pouco da nossa própria história. Mas ninguém estava pronto pra você, Clarice. Para essa dor miúda de língua mordida, de sapato apertado, para essa irracionalidade besta de cachorro que late para os carros da rua. Para essa leve febre que não passa, essa vontade de voltar, de não ter crescido, ninguém, ninguém estava pronto.

Depois de você, mudou tudo. E isso de existir tornou-se tarefa perigosa, irresponsabilidade, pelo menos para nós, que, se não me falha a memória, morreremos. Só você vai ficar. Você que não tinha profissão, que não era escritora, nem jornalista, nem colunista, nem historiadora, nem nada, você que só escrevia por sina – e sina não tira carteira de trabalho. Você que veio de longe, de uma pesada ancestralidade. Seus rascunhos resumiam as virtudes secretas de muitas mulheres – e o deslumbramento explícito de todos os homens do mundo. Cada um de nós sangrou na sua frente, você não vê?

Mas a verdade, Clarice, é que a gente vivia bem sem você. Éramos tranqüilos com nossas almas desavisadas, nossas senhoras eram doces e sensatas até Ana levá-las àquele jardim pestilento. E tudo se perdeu. Até Loreley entrar no mar em fúria ou Joana fugir de casa sem medo e a menina ruiva, você sabe o que você fez? São Paulo nunca se recuperou de Macabéa. Felicidade Clandestina não foi um conto, foi um vírus.

Você não deveria ter vindo. Que ficasse lá na Ucrânia, não foi lá que você nasceu? Que escrevesse suas insanidades naquela língua outra, tão fria, difícil, para que nunca nos dominasse com a nossa própria gramática. Deveríamos ter fechado os portos, alterado as rotas, descarrilhado trens, derrubado aviões, interditado ruas, expulsado imigrantes, recusado embaixadores, queimado bibliotecas, fechado as janelas e as portas de casa, tapado os olhos e os ouvidos contra a sua chegada. Mas ninguém imaginou, ninguém suspeitou. Era só um bebê, e, depois, era só uma mulher. Entende? O problema é justamente esse, Clarice, exatamente esse. Por que, depois de você, nunca mais uma mulher foi uma mulher.

À Clarice Lispector

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1º lugar no Concurso de Crônicas F2J

Algumas verdades me encantam mais que outras. Aqui, lendo uma pilha de revistas de recepção de consultório médico – que devem estar aqui desde a formatura do senil doutor em questão – encontrei-me diante dos escritos de ninguém menos que Luís Fernando Veríssimo. Sim, não é de hoje que esse homem das letras publica-se por aí. Entre notícias, descobertas e previsões econômicas feitas a cinco ou dez anos atrás, pergunto-me quais daquelas matérias realmente fez diferença na vida das pessoas. Sem querer, folheio outra crônica dele. Outro parêntese lúdico, desta vez entre a divulgação do Plano Real e de uma guerra no Oriente Médio. Meu Deus, aquele texto era uma ilha, um oásis.

Não falo de apologia à alienação. Falo de leveza. Falo da roupagem trágica que damos aos fatos – sejam eles de ordem pública ou privada. E desse oxigênio que nos salva quando o caos parece submergir o mundo. Das horas sufocantes que se arrastam quando as pessoas são intransigentes, os computadores não fazem <i>backup<i> automático e os <i>shoppings<i> não têm vagas de estacionamento. Dos dias em que você gostaria de não estar lá. Destas horas em que você se dá conta de que a terra está girando o tempo todo e isso te causa náuseas. É preciso respirar fundo, ter paciência. Se tolerar a fumaça de cigarro do cidadão ao lado for mesmo impossível, você pode reservar um túmulo na ala dos não-fumantes. Ou pode tirar o crachá de chato e assumir outro papel – por puro instinto de sobrevivência.

“Muitas vezes o que nos salva não é nem mesmo o amor. É o humor”, revela Veríssimo, encabeçando o time dos que, já que não podem tornar o fardo mais leve, o tornam colorido. E eu, no limite da exaustão, aguardando que um médico gástrico cure todos os males causados pelo stress dos meus dias, encontro um bálsamo bem aqui, na sala de espera. Encontro alguém pra me lembrar de não levar a vida tão a sério, já que o número de pessoas presentes no meu velório vai depender muito mais da meteorologia do dia fatídico do que dos meus êxitos ou fracassos sobre a terra.

E aí a gente se depara com um texto desses e ri um pouco de si mesmo. E se recosta na cadeira, folga o nó da gravata e segue um pouco mais leve. Um pouco mais brando. Até que o próximo sinal de trânsito se feche. Até que o amor decepcione ou caia catchup na camisa para que a gente volte ao nosso flagelo costumeiro. Outra vez.

Por que, Veríssimo? Por que prescrever a alegria das coisas simples quando a maioria opta voluntariamente pelo pessimismo? Se a gente prefere lotar os consultórios e acreditar que a fórmula do bem-estar está mesmo nas farmácias, por que ainda falar de bom-humor e esperança?

Os anos passam e você insiste em suas crônicas. Em seus convites ao bom humor. Talvez porque já inventaram remédio pra tudo, menos pra teimosia.
Nem para nossa, nem para sua.

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Tudo que não nos mata nos torna mais fortes. Quase sempre é assim. Mas há também o que nos mate aos poucos, lentamente, feito ferrugem consumindo os dedos das estátuas. A gente sabe que está morrendo um pouco mais e se conforma. E se entrega. Abandona-se como num banho de chuva envenenada, deixando-se encharcar por todos os poros, pressentindo o mal infiltrando-se no corpo inteiro. Para, um dia, deixá-lo escapar assim, de repente, pelo canto dos olhos.

A gente morre um pouco quando viaja calado, olhando a paisagem, completamente distante. Ou no caminho solitário para o trabalho. Ou no silêncio da TV desligada. Toda vez em que corpo e alma não ocupam o mesmo lugar a gente morre um pouco – por saudade.

Se lembrança é uma fotografia que guardamos num álbum empoeirado, saudade é uma 3×4 que carregamos no bolso da camisa todos os dias. Faz as horas e os espaços maiores, intermináveis. Deixa-nos vazios, feito um pátio de escola durante as férias de verão. Saudade é quando não encontramos em nosso próprio vocabulário palavras maiores que o silêncio. E, por isso, mantemos o silêncio.

Ela está no desamparo que nos abate quando temos tempo livre e não sabemos o que fazer com o fim de tarde ocioso. Está na chuva fazendo desenhos estranhos no vidro da janela. Na tecla repeat do seu aparelho de som. No saguão dos aeroportos. Na sua caixa de e-mails cheia de mensagens inúteis. Na solidão costumeira do seu dia-a-dia, em qualquer espaço vazio dentro da sua alma – a saudade vai estar lá.

Nestes momentos, sem querer, você vai se pegar imaginando a sua vida se você não tivesse tomado o rumo que tomou. E vai se perguntar como foi parar no lugar onde está. E vai fazer de conta que não se importa em colecionar sonhos desfeitos, que não se perfuma todos os dias para este encontro com o passado. Que, às vezes, não se sente de pé, estendendo um presente enfeitado entre as mãos sem ter a que entregá-lo, por que o amor ficou, mas a pessoa amada não.

Depois, em alguns momentos, você irá se pressionar a decidir se continua sofrendo, se esquece tudo pra tentar ser feliz ou se compra uma bicicleta. E acabará sofrendo um pouco mais, por causa da dúvida. Sem opção, vai tocar a vida pra frente. Sim, você construirá novos sonhos, fará planos, até se sentir seguro e confiante. Para, um dia, ouvir certa música tocar novamente. E estremecer. E descobrir que não passou.

Saudade é uma promessa que não dá mais pra cumprir. É o inferno de quem não aprendeu a esquecer. É esta vontade louca de morar dentro daquela fotografia, é não saber se somos lembrados e, mesmo assim, não conseguir acomodar a lembrança do outro dentro do baú. Saudade é morrer um pouco a semana inteira e, no final, não saber se vivemos sete dias ou o mesmo dia sete vezes. É morrer vagarosamente, e, ainda assim, permanecer sólido. E grande, como as estátuas. Por que morrer de saudade também é uma forma de morrer por amor.

Pensando bem, aquilo que nos mata também pode nos tornar mais fortes.

 

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