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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

Ontem eu tive a sorte de reencontrar um bom e velho amigo. E, como amigo antigo é uma espécie de HD externo das nossas piores memórias, ele fez questão de me lembrar de uma história ocorrida lá em mil-quinhentos-e-verão-de-95. Faz tempo.

Eu era adolescente e tinha um grupo grande de amigos no bairro, um grupo enorme. Dentre eles, um amigo bem chegado que vamos chamar de Chiquinho. Chiquinho vivia indo com o pessoal lá em casa, todo mundo se dava bem e a galera se encontrava dia sim, dia também. Afinidade mesmo. Aí teve umas férias em que eu precisei viajar e passei um mês fora. Mal desembarquei de volta em Salvador, saí pelo quarteirão pra ver se reencontrava alguém.

Aí eu encontrei Chiquinho. Assim, vestido diferente, todo gaboso, andando com uns amigos novos. Não me contive, claro. Banquei a baixo-astral-de-Brotas e atravessei a rua gritando, fazendo festa, levantando as mãos e esperando um abraço apertado depois do exílio. Foi então que Chiquinho me avistou, levantou as sobrancelhas e disse: olá, tudo bem? Assim, GELADO. Indiferente como uma cadeira. Com uma cara de Monalisa, como se não me conhecesse. E os novos amigos dele ali, parados, me olhando.

Eu. queria. sumir.

Nem sei como não errei o caminho de volta pra casa. Não entendi nada, fiquei mal, primeiro eu queria compreender a reação de Chiquinho, depois eu queria MATAAAR Chiquinho. Aí comecei a conjecturar sobre o que poderia ter acontecido na minha ausência, sei lá, como ele cultivou novas amizades, assim, em apenas um mês? Plantou com feijão no algodãozinho? A gente se conhecia há tanto tempo, ele tinha bancado a Greta Garbo comigo e aquilo não ia sair barato. Ah, não ia não.

A verdade é que um dos aspectos mais banalizantes da vida é essa capacidade que algumas pessoas têm de nos mostrar o quanto nós somos substituíveis. E, no fundo, todo mundo é. Acho que eu até aceitaria bem se alguém me evitasse por que eu sou especial, possuo uma característica negativa e sou alvo de desafetos específicos. Mas é difícil explicar para o próprio ego que alguém só te desprezou por que conheceu uma galera mais legal jogando vídeo-game.

No dia seguinte, eu estava andando na rua e avistei o próprio no portão da casa dele. Céus, eu queria ver o capeta chupando manga de ceroula, mas não queria ver Chiquinho na minha frente. Antes que eu pudesse dar meia volta, ele veio correndo – Mirandaaaa!!! – numa demonstração de afeto tardia e despropositada que só piorou tudo – Ué, garoto, agora você me conhece??

Diante da cara de desentendido do mancebo, desatei a falar. Tenho uma memória vaga dos adjetivos que lhe emprestei, passando do A, de antipático, até o Z, de zé mané. Oh, complacentes leitores, entendam: eu estava magoada, ofendida e perigosamente munida de razão. Não tive piedade. E a cara de bobo do rapaz foi se convertendo num semblante conformado de quem sabia que a coisa havia degringolado de vez e que não adiantava se defender. Nem tentou. Ouviu tudo calado, cabeça baixa, a face do consternamento talhado em bronze e remorsos. Um réu confesso. Toda punição era pouca, castigo nenhum era demais.

Só quando eu terminei, Chiquinho levantou os olhos, abriu o portão devagar e disse:

– Agora entra aí, eu vou te apresentar o Alvinho, meu irmão gêmeo.

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A sua loja não ficava no meu caminho. Quer dizer, durante aquele primeiro mês, a verdade é que eu não tinha bem um caminho. Eu tinha um punhado de horas vagas entre o trabalho e o estudo com o qual eu não sabia exatamente o que fazer – a cidade nova, a falta de amizades estabelecidas, família ou assuntos a resolver tornavam-se fatais ao fim de trinta dias – por quê um mês é tempo suficiente para você deixar de se sentir como um turista e tempo insuficiente para você passar a se sentir como qualquer outra coisa. Entrei numa rua ao acaso onde havia um bar vazio, um estacionamento e a sua loja. Nesta ordem de importância.

Era inverno. E eu me lembro disso por causa da praça do outro lado da rua: os pinheiros iluminados, os casais patinando no gelo e aqueles grupos de crianças em corais cantando nos tablados, tudo atraente o suficiente para me levar intuitivamente para o lado de lá da calçada, mas eu continuei indo em frente, onde havia a sua vitrine. Era a vitrine de uma loja minúscula. Chapéus antigos, peças de brechó, artigos para colecionadores e uma infinidade de esquisitices que me transportaram para uma dimensão interessantíssima. Eu abri a porta devagar. E ali, dentro de um colete dourado e um par de sapatos roxos, eu descobri que você era uma velhinha.

Não sei quanto tempo durou aquela visita entre cabides de fantasias orientais, pôsters de desenhos animados, postais  em preto e branco e vinis que você colocou para tocar e estavam impecáveis. A conversa fluía tão animada que levei algum tempo para perceber que você não falava português, nem eu falava chinês. E toda a comunicação acontecia entre apontar de objetos, risadinhas e interjeições aleatórias, você me mostrando uma miniatura de roda-gigante – ohhhh! – depois, um dragão fosforescente – uauuu! – e uma série de produtos improváveis que pareciam o cenário de uma ficção. Às vezes, quando eu queria saber para que servia determinado objeto, você erguia os ombros com a expressão impagável de “eu não tenho a menor idéia!”, tinha um acesso de riso e era preciso ligar para os filhos em casa, descrever a peça e perguntar o que se fazia com aquilo. Sempre acenando com os olhos puxados e com um sorriso largo de quem gosta sinceramente das coisas, até de uma estranha que entrou pela porta da loja e nem parecia querer comprar nada. Antes que eu fosse embora, você acenou algo como “volte sempre”. E eu voltei.

Várias vezes. E você me recebia com exclamações de palavras incompreensíveis, abria caixas e apontava as novidades, rindo o tempo todo. E eu me sentia menos deslocada no mundo. Meses depois, no dia em que eu fui me despedir avisando que ia embora para longe, muito longe, você fez uma pausa, foi até os fundos e me trouxe um latinha pequena, contendo algo que parecia ser chocolate. E fez uns gestos com a mão que interpretei como “isso é bom!”. E eu acreditei. Viajei com o embrulho, guardei aqui comigo e o tempo passou. E agora, tão distante, às vezes eu me tranco no quarto, abro sorrateiramente a latinha de metal e, mesmo sem ter idéia do que estou mastigando, guardo esse gosto na boca toda vez em que tudo dá errado. Cada vez em que o acaso falha, cada vez em que as pessoas se desencontram por razões idiotas e definha um pouco mais a minha crença na humanidade. Cada vez em que eu deixo de supor que o universo conspire mesmo ao meu favor, eu lembro que a sua loja nem ficava no meu caminho. Nem os seus sapatinhos roxos, nem as rodas-gigantes, nem os dragões fosforescentes, nem o conto infantil de onde você certamente saiu. E eu me sinto melhor.

Achei que você gostaria de saber, Mrs. Wei.

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Diáspora

Do you like me, do you like me standing there?
Do you notice, do you know?
Do you see me, do you see me?
(The Cranberries / Ode to my Family)

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Eu nasci duas vezes. A primeira, numa cidade litorânea da América do Sul com um costume curioso de sincretismo – o que talvez tenha me desabilitado a racionalizar de maneira objetiva os acontecimentos diários, mas que me ensinou qualquer coisa importante sobre interseções. Sobre o fato de todo grupo, idéia, acontecimento ter um ponto em comum com outro acontecimento, uma boderline, um momento em que se tocam e são iguais. Na minha família, somos quase sempre muito parecidos. E eu acho curioso encontrar tão longe, na sua certidão de nascimento, o meu sobrenome.

Sabe, eu nunca fui tímida. Nunca tive vocação para a alegria contida, para as boas maneiras, para conjunções adversativas depois dos elogios. Eu acredito em abismos, em faltas de ar, em saudades dilaceradas, em pessoas que vibram por dentro e ardem, ardem, ardem em vontades explosivas, em gente que fala olhando nos olhos, em quem nasce de novo, em quem recomeça. Não aceito palavras que não sejam a fratura exposta da verdade ou que me venham com meios termos, com eufemismos de qualquer coisa. Creio em destinos, em sinais, em sangue vermelho correndo nas veias e sou um legado fiel da minha genealogia em traços, maneiras e fé: sou dramática, difícil, impulsiva e quase tudo que eu faço me deixa exausta, por que eu quero muito. Eu nunca quis pouco. Você também não.

E hoje, talvez por quê é o dia de ir embora, talvez por que todo fim de estrada costume ser a esquina para uma outra, depois de quase três décadas de desinteresse pelo assunto, eu me pego pensando em minha ascendência já falecida, avós a muito perdidos, primos em décimo grau ou, no caso de uma família engendrada como a minha, nos encontros e desencontros de genes da mesma raiz ao longo do tempo até aqui, agora, em mim, em você. Por que meios? Não há nada nos livros. Canta, ó Poeta, a mutação recessiva deste cromossomo gêmeo do meu. Canta o florecimento há cinco séculos nas pedras destes três continentes, enquanto as ondas batiam e as vinhas cresciam nas serras do Porto. Canta a sua passagem por dez gerações, acumulando-se invisível na herança mais inconsciente de todos que cresceram à beira do Atlântico, todos os que assistiram ao envio deste legado de sangue em embarcações, em promessas distantes de reencontro, como uma cópia da mesma semente indo sobre o mar até a América e caindo, em meio às chuvas tropicais intermináveis, no solo fértil do útero latino da minha primeira bisavó.

Perdoe-me se, às vezes, eu fico um tanto épica. Isso também é de família.

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Não importa qual é a sua dor. Dor de dente, dor de consciência, dor de cotovelo, se você também passou a semana sofreeeeendo por algum motivo e não entende por que o mundo não se solidariza com o seu matírio, seus problemas se acabaram:

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FAÇA UM DRAMA

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1 – Diga que não aguenta mais e que vai morreeeeeeeeeeer. É o marketing do apocalipse, o mais eficaz do nosso tempo: para chamar a atenção sobre alguma coisa, o negócio é dizer que essa coisa vai ser exterminada. Muito antes do aquecimento global virar moda, Veneza já ganhava milhões de turistas assim – desde que nasci, dizem que Veneza vai afundar, implodir, se acabar, se escafeder, sumir do mapa, puf. Todo dia abro o jornal e o resto do mundo inteiro está se acabando. Menos Veneza.

2 – Nunca tenha uma enfermidade média. Daquelas que não matam, mas também não te deixam ser feliz. Se não sangra, não é grave. Dê um jeito de fazer sangrar.

3 – Quando alguém, mecanicamente, perguntar – Como vai você? – faça uma pausa fúnebre, baixe os olhos e responda – Soube não?

4 – Use hipérboles. Se você não garantir que agonizou crucificado de tristeza chorando litros do Nilo na escumalha da sarjeta, ninguém vai ter uma dimensão do seu sofrimento.

5 –Não deixe ninguém te convencer de que o seu problema não é tão grave assim: não é grave para eles por que não é o problema deles! Se alguém te negar algo ou não te der importância ou não compreender o fato de que você é frágil e sofre e merece todas as framboesas de ouro do mun-do, reaja! Sente e chore. Essa é a nossa resposta natural diante da vida.

6 – Pesque de bomba. A sua dor é sincera e merece platéia. Redes sociais seriam entediantes se a gente só publicasse foto de viagem.

7 – Não adianta querer mostrar às pessoas o quanto você é especial. Especiais são as crianças da APAE. Melhor incorporar o insano, louco, perturbado que, se não tiver suas necessidades atendidas, coisas terríveis podem lhe acontecer.

8 – Se for o caso, suma. Não atenda, não responda, não tecle, não sei, não vi, não fui. Se você for um cara popular, bastam alguns dias. Mas se você for apenas um rapaz latinoamericano, pode bancar o Belchior abduzido.

9 – Se os seus amigos não se solidarizarem com o seu calvário, apele para os inimigos. Por exemplo, este ano, a cidade de Valença, no norte de Portugal, queria muito que o governo nacional liberasse uma verba pública para a saúde. Fez protesto, pediu, bradou e nada. Depois de ser solenemente ignorada, toda a população resolveu decorar suas janelas com bandeiras da… Espanha. A verba foi liberada em 24 horas.

10 – Se você sabe o que quer, você terá o que quer. Se ainda não conquistou, é por que não fez drama o suficiente. Caso haja resistência do intelocutor, recomece o processo e volte ao item 1: diga que vai morreeeeeeeer. Sucumbir, empacotar, se acabaaaaar inteiro no fogo das trevas varrendo o chão do inferno para sempreeeeee.

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Êxito certo. Garanto.

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Hoje eu sonhei com o tempo em que eu trabalhava na agência. Faz tempo. Naquela época, eu tinha uma mesa, uma cadeira, um computador, um salário fixo no fim do mês e anúncios, muitos anúncios para fazer. No começo, eu nem entendia nada daquilo, era menor de idade, eu só queria dinheiro pra ir à praia, gostava de ver meus títulos publicados no jornal, queria diversão. E era divertido.

Depois de sete anos de redação, o ruído do elevador do escritório me causava náusea. Eu odiava tudo aquilo. A porta abrindo, as pessoas entrando, apertando o nono andar e falando de seus carros e vinhos e barcos, por que ninguém fala dos próprios fracassos no elevador da firma. Os mídias com seus crachás no bolso, os produtores com suas piadas fáceis, as moças de atendimento com aquelas calças de terninho esmagando bundas altamente profissionais. E eu. Até o nono andar. Uma eternidade.

Depois, entrar no setor e ligar o computador. E deixar lá, ligado, avisando que eu cheguei, por quê computador ligado é o novo cartão de ponto das empresas. Fazer a social, falar do último Cannes, do último lançamento da Mac, dizer que aquele anúncio do concorrente ficou uma bosta. Comparecer à reunião. Mesa de fórmica. Telão na recepção passando show do Asa de Águia, empresários com crises de meia-idade flertando secretárias com crises financeiras. Sono, sono. E eu pensando: um dia, eu vou embora daqui. Hora do almoço, grupinhos de terno debaixo do sol decidindo o melhor restaurante de comida a quilo: “podem se servir que, hoje, quem paga é o Fernandes”, “nada disso, quem paga é o Almeida”. Aniversariante do mês, champanhe nacional em copo plástico, fatia de bolo no guardanapo. A gente se encontra na premiação, ok? Cambalear no salto alto em cima do tablado, agradecer no microfone ao patrocinador e estender o troféu ao lado do cliente. Bêbado. Trofeuzinho na mesa, tapinha nas costas, meu Deus, um dia eu largo essa merda.

Às vezes, mudar de agência. Três vezes. Quatro. E me sentir no mesmo lugar. Sempre a única mulher do setor de criação, dez homens, onze cadeiras. No começo eles te excluem. Depois, te espionam. Depois, te adotam, te abraçam o tempo todo e te chamam de brother. Briga de sócios na sala do lado, briga de colegas pela vaga do estacionamento, comentário maldoso, hora extra, cafezinho em garrafa térmica, eu gastando toda a minha criatividade-idealista-universitária em anúncios de sabonete. De seguro dentário, de carro esportivo. Frustração. Bocejo. Solidão. Aumento o volume no: in a sky full of people, only some want to fly, is not that crazy, crasy, crasy?, levanto da cadeira, afasto as persianas da janela e olho o mundo atrás da vidraça, céus, eu quero fazer outra coisa. Mas como?

Aí, um dia, acontece. Não assim, de repente, mas acontece. E eu me vejo em outro lugar, fazendo outra coisa, sem o ruído do elevador do escritório. Sem o escritório. Sem mesa de fórmica, sem crachá, sem garrafa térmica. Fazendo muitas outras coisas que, mesmo mais toscas e simples e mal remuneradas, me matam de fome, mas não me matam de tédio. E descubro que elas são duras. Mesmo. Por que entregar jornal na chuva é duro. Por que trabalhar de madrugada é duro. Por que ficar oito horas por dia em pé num balcão é duro, é desumano, é um absurdo. E eu nem imaginava o quanto. Daí, quando chego em casa, eu tiro os sapatos emporcalhados e me jogo no colchão, eu nem penso nisso. Eu durmo pesado, exausta, quase sempre. Mas, hoje, eu sonhei. E sonhei com essas coisas. Com esse tempo. Com a época em que eu tinha uma mesa, uma cadeira, um computador. De quando eu tinha um salário fixo no final do mês. Reuniões, festinha, premiação, tapinha nas costas. Estatuetas ao lado do desktop. Bolo de aniversário no guardanapo, anúncio meu publicado no jornal, essas coisas. De todo o conforto e segurança e rotina ajustada que eu tinha na época em que eu trabalhava para a agência.

E acordei assustada.

– Calma, calma. Foi só um pesadelo.

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Funny Girl

E aí eu vi a fotografia e fiquei lembrando daquele episódio de Glee onde a protagonista está assistindo a um ensaio musical e reconhece, na cantora que está no palco, a sua mãe biológica. A canção é Fanny Girl, numa versão parecida com a de 1968. A garota se emociona e, depois da apresentação, vai até à criatura e diz: olha, eu sou sua filha. Juro que eu pensei que, nessa hora, teríamos uma daquelas cenas típicas de drama e lágrimas e abraços, mas não correu assim. Termina com a mãe voltando para o camarim desorientada e falando para o instrutor:

– Aquela garota é a minha filha!
– Nossa, 20 anos depois da adoção, você encontrou a sua filha novamente! Que fantástico!
– Não é fantástico. Aquela é uma mulher adulta, eu não sei nada sobre ela.
– E o que você queria?
– Eu queria o meu bebê de volta!!!

Conclusão cruel.

E acho que também é meio cruel estar pensando nisso agora – quanto tempo faz? – mas acho que todo reencontro nos apresenta uma pessoa nova. Ou vinte anos depois ou vinte dias depois. E a verdade é que a gente não quer uma pessoa nova. A gente é teimoso, casmurro e chato feito o velho Drummond, saudoso da sua terra, não da cidade que está no mapa, mas de uma outra, que só existia na lembrança dele: “O que resta dessa velha Itabira? Um espelho que não reflete mais o dono”. Não importa se a cidade está mais bonita. Não importa se ela está mais moderna, mais rica e mais interessante. Ele não se reconhece. E Narciso acha feio o que não é espelho.

Há vezes em que dá certo, como alguém que encontra um relógio antigo na gaveta e vê que ele ainda marca a hora sincronizado com o do nosso pulso. Um belo dia você revê alguêm e conversa e reconhece. E o coração se acalma. E cada um conta um pouco da sua vida e das pessoas novas e você acha engraçado quando o outro diz “mas, sei lá, eles eram meio sem assunto” e o outro ri quando você fala “pois é, eles não entederam nada”, por que sabe que ele entende. Que vocês se entendem. E que, por isso, estão menos sozinhos no mundo.

Ainda que essa não seja a regra, já que todo reencontro é uma roleta, sempre nos apresenta uma pessoa modificada e acaba sendo, em certa medida, um desencontro. Tem sempre uma peça do jogo que sobra, que não encaixa mais. Que pode ser uma peça banal e dispensável, ou pode ser a cereja do bolo, e talvez isso explique esse frio na barriga cada vez que reencontro alguém que quero bem, por que rever é sempre tatear um caminho de volta pra casa, ou a gente se acha ou se perde de vez. E, às vezes, eu penso isso. Que reencontrar gente que lhe sorri e lhe reconhece e lhe abre os braços e lhe diz sim mesmo no meio de tanta partida e chegada e ausência e saudade de lugares e pessoas que podem nem existir mais, ou não existir mais do jeito que a gente sabia, talvez seja a única certeza possível nessa fase tão confusa de tanta gente indo embora. Sabe, o jogo nunca vai completar. Mas quem tem que ficar, fica.

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Mal entro na loja e derrubo uma caixa no chão. Não sei por que faço isso. Não sei por que entro nesses lugares cheios de objetos merecidamente mais caros do que a minha vida. Minha colega queria comprar um perfume e agora estava eu lá, com cara de susto. Nada se quebrou. O funcionário se aproxima, coloca a caixa de volta na vitrine e não diz nada. Sorrio sem graça. Ele não sorri. Saio de fininho constrangida e disfarço ajudando ela a decidir entre um Kenzo e um Chanel fazendo uso dos meus infalíveis critérios de compras – o preço e a cor da embalagem – já que não entendo nada de perfumes. O funcionário continua olhando. Desconfiado.

O problema é que vendedor sabe tudo. Eu mesma já trabalhei em balcão e qualquer vendedor sabe em segundos tudo sobre o cliente: quem entrou pra comprar, quem entrou só para olhar, quem compra ali toda semana, quem economizou o mês inteiro para levar aquele objeto, quem nunca vai comprar nada daquela loja e só está ali pra acompanhar a amiga perfumada. Ele já sabia. E observava de longe só pra testar o desembaraço da pobre estudante brasileira-não-praticante naquele oásis de requinte e etiqueta, é claro. Ainda tento me desviar da vigilância ostensiva e o meu braço esbarra. E derruba. Um sachê de sais de banho. No meio do meu desespero, o rapaz aproxima-se muito formal: as senhoras precisam de ajuda?

Minha amiga pede duas unidades de Chanel em embalagem para presente enquanto eu, humilhada, sorrio. Num pedido de desculpas discreto, sincero, sorrio muito, sorrio demais. O funcionário ignora. Vamos lá, amigo, sorria de volta. Não faça eu me sentir mais insignificante do que esses frascos de vidro que você vende. Sorria e já não haverá maldades no mundo, nem desigualdades, nem pobres nem ricos, seremos todos iguais entre litros de perfumes caríssimos. Nada. O desgraçado não sorri. Antes de virar de costas, me olha sério e diz: com licença, vou preparar as embalagens.

Suponho que “preparar as embalagens” seja o código para “fique quieta, sua maluca”. Passo os próximos cinco minutos estática, a dez palmos de qualquer prateleira ou objeto quebrável, esperando a hora de ir embora. Calada e absolutamente ciente da minha inadequação ao ambiente, pedindo desculpas por existir. É claro que uma loja daquelas não era lugar pra mim. O pedido é entregue, pago, acompanho minha amiga até a porta e, enquanto ela chama um taxi, o rapaz se dirige a mim. Meu coração gela. Pronto, ele vai cobrar algum prejuízo, meu Deus. Nossa Senhora dos Desastrados, socorro. Sorrio em pânico, em desespero, céus, por que eu tinha de entrar nessa maldita loja?? Ele não sorri, só estende um papel com um número de telefone anotado e fala muito, muito sério – eu também gostei muito da senhora.

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“Por que a vida nos livros é muito mais interessante que a vida real”, lembro de ter respondido ingenuamente para uma professora que me perguntou por quê eu gostava de ler. Essa frase certamente não era minha, eu devia ter visto em qualquer lugar e tirei prontamente do bolso na ocasião em que ganhei uma medalhinha de aluna que mais consumiu livros da biblioteca durante o ano letivo. Era um desses concursos que envolvia todas as turmas do colégio. Detalhe: eu estava na quinta série. 

Em outras palavras, eu diria hoje que os livros nos prendem por que a nossa vida não nos prende. Ontem mesmo li na Internet um trecho da obra de Proust em que ele explica que é muito natural que os livros sejam mais instigantes que as experiências reais, mesmo que os romances narrem episódios semelhantes aos que vivenciamos em nossa rotina. A diferença está em 1) na vida cotidiana, não temos acesso aos pensamentos e anseios das pessoas à nossa volta. Somos obrigados a deduzi-los através de gestos, palavras, pistas inexatas que nos dão uma participação reduzida em suas emoções, enquanto, nos romances, essas tormentas interiores estão quase sempre explícitas para o leitor de dentro pra fora. Mesmo que o personagem do livro seja uma pessoa comum, possível de encontrar no seu dia-a-dia, seu contato com ela será mais visceral por que você pode ler os seus pensamentos. E pelo motivo 2) nos livros, mesmo que as histórias de vida sejam  semelhantes às nossas, elas parecem mais intensas por que estão resumidas. Segundo o próprio Proust, a Literatura “desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam reveladas pois a lentidão com que se processam nos impede de as perceber (…) porque na realidade o coração se  transforma do mesmo modo que se produzem certos fenômenos da natureza, isto é, com tamanho vagar que, embora possamos ver cada um de seus diferentes estados sucessivos, por outro lado escapa-nos a própria sensação da mudança”.

Ou seja: a nossa vida é superficial e lenta demais para ser emocionante. Fato que me lembrou também a ótima Susan Sarandon, no filme Dança Comigo? (2004), quando o detetive pergunta a ela por quê as pessoas se casam. E ela responde: “as pessoas não se casam por amor. Elas poderiam se amar e não necessariamente se casarem. As pessoas se casam por que precisam de uma testemunha para suas vidas, por que somos insignificantes no contexto da humanidade e, se o mundo não notar em você durante a sua existência, haverá uma pessoa que vai notar. Alguém para testemunhar todos os seus dias”.

Pode não ser a definição mais romântica e apaixonada sobre o casamento, mas não deixa de fazer sentido. Principalmente se você extender este princípio a todas as suas relações ou a todas as suas conversas banais. Como quando você está com alguém (esposa, parente, amigo) e a pessoa vai contar um episódio qualquer do passado em que você participou. Geralmente, para contextualizar melhor o interlocutor, a pessoa vai fazer um apanhado rápido do momento histórico que vocês viviam naquela época – narrar características, cenários, personagens – para contar o caso em si. Vai fazer uma enumeração distraída de fatos relevantes, acontecimentos tristes e alegres (que levaram anos pra acontecer) em poucas palavras. E, quem resume uma história, aumenta a sua densidade. Esse, provavelmente, vai ser o momento em que a sua vida mais se aproxima da Literatura. Quando ela é resumida e contada por um narrador íntimo envolvido.

Talvez por isso que eu acredite tanto que as pessoas precisem ter relações estáveis umas com as outras. Por que a rotatividade de contatos interpessoais é a forma mais fácil de dispersar capítulos inteiros da sua história, que nunca voltarão pra você em forma de depoimentos, casos, relatos de anos mais tarde.  Preservar relações de amizade, estreitar laços de família, testemunhar e reunir testemunhas talvez seja a nossa única chance de fugir do anonimato e da trivialidade, de não mergulhar na sucessão morna dos dias, porque, cada dia nosso, se analisado de maneira isolada, é quase sempre banal. Dias são peças de um jogo que só fazem sentido em conjunto. Peças que estão dispersas entre parentes e amigos – se você os perder de vista, nunca vai ter uma história de vida que valha um romance.

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Por fatores que suponho diversos (talvez por eu ser quase sempre a única pessoa em perfeitas condições psicomotoras até o fim da noite e/ou a única que veio de carro e/ou a única que cultiva uma paciência oriental frente aos seres mais ignóbeis da Terra) minha relativamente agitada vida social noturna sempre incluiu a missão de levar minhas amigas ébrias para casa. Fato que me pós-graduou em comportamento etílico feminino de uma maneira que me faz pensar com muuuuita curiosidade em quem estaria me substituindo nesta função durante a minha ausência no circuito boêmio soteropolitano. Certamente, há alguém. Alguém que, como vocês dizem, está garantindo um lugar no céu com piscina, varanda e vista para o mar.

Meninas, seja lá quem for a pessoa, colaborem. Não obriguem a moça a dormir na poltrona da boite só por que vocês querem ficar lá até às sete da manhã, não façam ela procurar objetos que vocês não perderam, não desmaiem na mesa do bar. Ou seja, não façam o que já faziam comigo. Só por solidariedade eu vou publicar aqui um passo-a-passo de como evitar problemas familiares/sociais/clínicos/policiais durante a madrugada e facilitar a vida da pessoa. Tanta experiência insólita tinha que me valer de alguma coisa.

Imagino que vocês têm se comportado mal, como de costume. Portanto, o post de hoje será um manual de sobrevivência noturna para não enloquecer a sua amiga sóbria:

1 – Não se envolva em brigas e, se necessário, negue qualquer coisa. Acusações? Negue. Elogios? Negue. Negue tudo. Negue sempre. Não fui eu, não vi, não sei, eu não disse nada disso, eu nem estava lá, seu maluco!
 
2 – Quando a sua amiga encerrar a sua conta e te encaminhar pra fora da festa, evite ficar gritando que está sendo SEQUESTRADA/ROUBADA/ABDUZIDA por que, meu beeeem, isso são só vozes da sua mente. Essa boa alma só está querendo te levar pra casa.

3 – Não ofereça o seu número de telefone a estranhos e, principalmente, não ofereça O NÚMERO DE TELEFONE DA SUA AMIGA a estranhos. Por que, no dia seguinte, vocês estarão recebendo mais ligações que o Criança Esperança de um monte de gente fina, elegante e sincera que você, é claro, não lembra mais quem são.

4 – Não converse com objetos.

5 – O DJ não merece um beijo na boca só por que tocou ABBA.

6 – Não invente de ir buscar nada no estacionamento. Você se perderá outra vez num mar de carros onde você ficará dando voltas e voltas até ligar chorando para sua amiga dizendo que está abandonada na calçada junto com o UNICÓRNIO DE CAVERNA DO DRAGÃO presa no universo paralelo para sempre.

7 – Aliás, se possível, também evite o hábito de cair em prantos no meio da pista de dança. Não deixe a sua amiga desesperada, achando que alguma coisa grave te aconteceu, que te roubaram, te agrediram, te deram um fora enquanto você, simplesmente, senta e chora. Ou deita e chora. Ou, dependendo do nível etílico, cai no chão e chora.

8 – Também não dê uma de acrobata dançando em cima da mesa, subindo no palco ou se pendurando nas pessoas justamente quando suas noções de equilíbrio mal se seguram sobre o salto alto. E, caso você caia, não faça escândalo dizendo que bateu com a testa e vai morreeeeer. Você não vai morrer. Só vai ficar com um hematoma horroroso.

9 – Quando vocês estiverem voltando pra casa, não diga ao taxista que vai comprar um presente para ele, que vai rezar por ele, que vai casar com ele e, principalmente, não vomite no carro dele. Lembre-se que, provavelmente, você não é rica, não é religiosa e não é solteira.

10 –  Caso vocês estejam de carro, não obrigue a sua amiga a desviar do trajeto para passar na casa do seu ex. É fato que o rapaz não vai te receber as cinco da manhã, não vai devolver aquela foto (que você mesma deu de presente) e você vai se arrepender de ter bancado a Doida do Chip na porta da casa dele – JOGA O MEU RETRATOOO! O RETRATO É MEU, VOCÊ PEGOU O QUE É MEEEEEU! ABRE ESSA PORTA, VOCÊ PEGOU O QUE É MEEEEEU, OU ENTREGA PRA SUA MÃE, AQUELA P…

Se você seguir todas as orientações e, mesmo assim, algo der errado, conte com a cumplicidade da sua amiga e responda a todas as acusações voltando ao item 1. Não fui eu, eu não beijei ninguém, eu nem estava lá, não tem hematoma nenhum aqui, seu maluco!

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– Passa a pipoca?
– Hum?
– Me passa a pipoca. E acorda, é feio ficar dormindo no meio do filme.
– Hum.
– Não tá gostando?
– Não.
– Por quê?
– Achei esse filme muito doido.
– Como assim?
– Esse filme não tem nada a ver com a história original.
– Não?
– Nada. Eu li o romance, li vários clássicos infantis, mas esse filme não tem nada em comum com o livro. Se eu tivesse filhos, não traria pra assistir histórias adaptadas, elas devem fazer uma confusão danada na cabeça do povo, por isso que a meninada de hoje em dia é meio doida.
– Verdade.
– Esses diretores de cinema sempre deformam a história pra fazer o roteiro, um absurdo. Por exemplo, esse castelo aí não existe no romance e estão faltando personagens super importantes, como o Leão e o Homem de Lata. Gosto do Tim Burton, mas acho que nesse filme ele viajou demais.
– Homem de Lata?
– É.
– Peraí, o Homem de Lata não é do Mágico de Oz?
– Não.
– É sim, é do Mágico de Oz.
– Que seja, mas quem vai contar as histórias infantis às minhas crianças sou eu, tudo igual ao original, gente, desde quando o príncipe tem cabelo laranja? Cadê o grilo que não aparece? Hein? Sério, esses diretores de cinema usam drogas.
– Que grilo?
– O que dá conselhos.
– O Grilo Falante é do Pinóquio! Esse conto nem tem príncipe nenhum, o de cabelo laranja é o Chapeleiro Maluco e quem usa drogas é você!!!
– Hum. Você está defendendo o Tim Burton. Devolve a pipoca.
– …
– …
– Coitados.
– Dos diretores?
– Não. Dos seus filhos.

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