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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

Uma das coisas que mais bestifica e impressiona esta ignorante que vos fala é o conhecimento dos meus amigos e parentes sobre todas as coisas. Todas. Não só no sentido acadêmico, mas também no empírico e banal, o fato é que todas as pessoas com quem convivo sabem mais do que eu, costumam ter mais experiências do que eu, ler mais do que eu, viajar mais, falar mais idiomas, praticar mais esportes e ter mais histórias pra contar do que eu. Incrível isso. Daí, por que mudança de ano é tempo de cultivar as vocações, eu resolvi investigar qual é a minha.

Não há muita opção. Por exemplo, eu gosto de cinema, mas meu conhecimento cinematográfico é parco, de quem escolhe o filme pelo preço da pipoca e sai da sessão duas ou três vezes para atender o telefone. Adoro informática mas, diante de qualquer problema no computador, basto-me a abrir a torre, olhar para as placas e acenar negativamente com cara de ventilador – gesto que, até hoje, nunca conectou nada à coisa nenhuma. Escrevo mal e porcamente, apedrejo a gramática todos os dias e considero o uso correto da crase um mistério insondável. Fotografo lenta como um daguerreótipo e incorro em enquadramentos poucos ortodoxos graças à minha miopia – sim, eu sou míope e não consigo enxergar isso. Tenho pouca habilidade com crianças, ainda menos com os adultos, nenhum refino para a escolha de vinhos e, mesmo os pratos mais simples do cardápio mais básico do restaurante mais tosco, eu nunca vi nem comi, eu só ouço falar. Gabo-me de dirigir bem, mas é mentira: fui reprovada três vezes no teste de habilitação e autuada em quase todas as infrações disponíveis (velocidade, contra-mão, estacionamento proibido, sinal vermelho, carteira vencida e velocidade de novo), o fim de cada troca de pneus parece um pós-guerra e sempre, em qualquer situação, os meus motores morrem junto com seus 59830 cavalos (se os números não são estes, nenhuma importância). Comento o noticiário com o aprofundamento histórico-político de um samba-enredo: gosto de falar sobre Lula, sobre economia e sobre coerência política no Brasil, ainda que não consiga encaixar as palavras Lula e coerência num mesmo período. Não sei de música, não leio partituras, não toco violão, não toco piano, não bato palmas enquanto canto parabéns, entendo pouco de composições, sei que Beethoven era surdo, Bach era órfão, Morzart era louco, Chopin era turbeculoso – e eu não vou nada bem. Sou uma cristã confusa: nunca sei se quem fugiu do Egito foi Davi ou Moiséis ou Zacarias ou Malaquias, se Abel era agricultor e Caim era pastor ou virce-versa ou nenhum dos dois era nada disso e disperso-me nas leituras procurando por vestígios de onde Judas perdeu as botas, dos escravos de Jó que jogavam caxangá e de outros fatos e personagens que, para minha surpresa, nunca constaram nas Escrituras. Todos os meus conhecidos exibem alguma medalha ou troféu esportivo, só eu não pratico nada, não jogo basquete, nem golfe, nem ping-pong e só entendo como futebol aquilo que preenche o último quadro do jornal quando não há mais nada importante a ser noticiado: fiquemos agora com as notícias do campo, Galvão.

Daí a pessoa pensa, poxa, ela não é talentosa, mas ao menos é esforçada – nem tanto. Sei que poderia e deveria ser uma boa aluna, mas sempre invento uma desculpa pra trocar a faculdade pelo bar – é que eu ando cansada, ando ocupada, ando estranha, ando deprê, não ando por que me atropelaram – e, quando apareço em classe, sou facilmente distraível: uma mosca no ombro do professor é o suficiente para este gênio da raça passar a tarde divagando e sair da aula sem saber da missa um terço. E ainda há os passeios. Todos que viajam comigo são capazes de discorrer durante horas sobre cada monumento, praça, avenida, pedra no meio do caminho com uma intimidade de velhos conhecidos enquanto eu olho a tudo com a mesma cara embasbacada de quem descobriu a póvora purpurinada: não entendo de mapas, rotas, não sei a distância de Salvador para o Rio de Janeiro e sou capaz de me surpreender mil vezes com as mesmas paisagens graças à mesma amnésia que me faz rir várias vezes das mesmas piadas. Também sobre o mundo financeiro meu conhecimento é parco. Costumo aplicar meu salário na bolsa, mas a minha nunca me rendeu nada além de chicletes, clips e os meus próprios documentos. Suponho que as baixas do dólar, do euro e da libra não estejam vinculadas às leis da gravidade, mas não posso dizer que sei o motivo e estou certa de que esta confusão numérica compromete a minha vida financeira – mas não falemos de dinheiro, por que não se fala de corda em casa de enforcado. Aí a pessoa, por benevolência e boa vontade, pode pensar, poxa, ela não tem conhecimento formal mas deve saber tudo sobre amenidades – piorou. No campo da moda, nunca desvendei o que faz um acessório A não combinar com acessório B,  a menos que este venha seguido do acessório C e por que raios a ordem dos fatores pode alterar o produto. Sempre durmo durante as novelas e não entendo de celebridades, sei que uma atriz tal casou com o apresentador de TV, que a modelo casou com o jogador de futebol e que o cantor casou com a dançarina, mas se alguém misturar os elementos e oferecer-me uma nova combinação, irei aceitar pacificamente como se não houvesse opção anterior. Sobre programas de auditório, a minha única curiosidade é: por que as pessoas vão pra lá se poderiam assistir a tudo pela televisão? Não sei de maquiagem, nem de decoração, nem de costura, nem de nenhuma dessas atividades que tenham como princípio básico o bom gosto por quê, como a gente sabe, gosto é que nem braço: tem gente que nasce sem. Mas me sinto próxima das ciências, considero o mundo da biologia fascinante, adoro os vegetais (palmito), os animais (bife) e os minerais (ouro). Empatizo também com a medicina alternativa, com a sociedade alternativa e com os blocos alternativos, sou adepta de diversas filosofias e simpatizo com muitas atividades, mas entendo pouco sobre elas. Conheço muito pouco sobre muita coisa. E não sei qual a minha vocação.

Daí, depois de tantas hipóteses levantadas, opções descartadas e talentos inexistentes, eu nunca chego à conclusão nenhuma, além do óbvio: que eu não sei nada de nada sobre coisa alguma. E que, talvez por isso mesmo, a única atividade  que pode restar à vida de uma pessoa desinformada de todos os fatos seja justamente essa: falar sobre eles. Por quê? Por que é mais fácil. Destino de peixe que nasceu dentro d’água é não reconhecer a água, ninguém se pergunta sobre o que sempre existiu. Só o iniciante possui um olhar desacostumado, perguntas desconcertantes, cara de turista deslumbrado na rua onde os outros sempre moraram, mania de falar do óbvio como se não fosse óbvio – às vezes, não é mesmo. Quem compôs a Quinta Sinfonia foi um surdo, quem escreveu Sampa foi um baiano, só alguém inadaptado chegaria à sua mais completa tradução. Só o novato segura o banal com as duas mãos. E, dentro da ostra, vê a pérola.

É isso. Suponho que a desinformação também possa ser um dom. Às vezes eu acho que a única coisa útil que eu posso fazer da minha ignorância é contar histórias.

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– Bom dia, crianças. Como vocês já sabem, a mamãe de vocês vai ficar lá fora enquanto eu tiro uma foto de vocês três aqui no estúdio. Podem ficar em pé bem aí na frente. Vamos colocar uma beca pra fazer uma pose bem bonita?
– Tia, o que é beca?
– É… tipo um enfeite. Você coloca essa rosa no cabelo, o menino maior coloca o casaco e o menino menor põe esse chapéu, certo?
– Meu nome é Jonatha.
– Certo, Jonatha, você é o menor e fica com esse chapéu. Todos prontos?
– O Júnior pegou meu chapéu!!!
– Júnior, devolve o chapéu do menino menor agora!
– Meu nome é Jonatha.
– Isso, o chapéu do Jonatha.
– Mas, tia, esse chapéu é meu.
– Pode ser seu, querido, mas agora, só pra tirar a foto, você vai ficar com o casaco e emprestar o chapéu ao seu irmão, certo? Pronto, vamos lá. Cadê a menina?
– O nome dela é Rosa.
– Isso, cadê a Rosa?
– Tô aqui, tia.
– E cadê a flor que eu te dei? Aquela rosinha amarela pra colocar no cabelo?
– Eu não sei.
– Você perdeu?
– Eu não sei.
– Ah, meu Deus… gente, alguém viu a rosinha?
– Eu tô aqui.
– Não, querida, a rosa que estava no seu cabelo.
– Eu não sei.
– Meninos, vocês viram… mas o que é isso??? Larguem essa máquina agora!!
– Foi ele quem começou, tia, e pegou o meu chapéu.
– Não interesa quem começou, venha cá você, dá aqui essa máquina. Isso aqui é caro, entendido?? Não toque mais nisso. Cadê o chapéu do seu irmão?
– O chapéu é meu.
– NÃO IMPORTAAA!!!!
– Manhêêêêê!!!!
– Brincadeira, brincadeira, querido, a tia estava brincando. Olha pra mim: eu já sei que o chapéu é seu. Mas você que sempre foi um menino tão bom, tão generoso, não pode emprestar?
– Como a senhora sabe que eu sou bom se me conheceu hoje, tia?
– Sabendo! Olha, não interessa. Eu só quero que você empreste o chapéu ao seu irmão por um minuto, ok? Combinado?
– Combinado.
– Vamos lá. Cadê os outros dois? Ei, fiquem aí no meio, vamos posar para a foto, tá? Sem a rosinha mesmo, só com o chapéu e o casaco, todos prontos? Ninguém achou mesmo a rosinha?
– Eu estou aqui.
– Sim, querida, volte pra lá, fique no meio dos seus irmãos. Isso, todo mundo sorrindo. Por que você não está sorrindo?
– Ele não sorri por que perdeu os dentes de leite, tia. Só tem trave.
– Sorria, querido, está lindo assim mesmo.
– …
– Olha aqui, se você não sorrir eu vou ter que arrancar os outros dentes todos.
– Manhêêêêê!!!!
– Pronto, pra mim chega. Vocês vão ficar quietos e eu vou tirar essa foto agora, entendido??? Chega! Vamos lá, olha o passarinho!
– Que passarinho?
– Não tem passarinho nenhum, é para olhar para a câmera. Ei, você, devolve o chapéu para o menino menor agora!! AGORAAA!!!
– Mas, tia, já passou um minuto!
– NÃO IMPORTA!!!!
– Tia…
– O QUE ÉÉÉ???
– Meu nome é Jonatha.

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O trem elétrico fechou as portas um minuto antes que chegasse à estação e foi partindo sem ela – bem, paciência, não tinha mesmo pressa naquela tarde. Parou de correr, deixou que a máquina seguisse, tudo bem, pensou ofegante suando dentro do casaco, a maquiagem desmanchando sobre o rosto quente. Nos últimos dias, diante do imponderável, aceitava. E aceitar era fácil, quase divina aquela conformação plácida de quem compreende e tolera todas as coisas – ainda é cedo, ainda há sol, mentalizava sem maldizer o atraso, a distância, a inconstância do tempo num esquenta-esfria o dia inteiro, o fato de estar outra vez voltando pra casa a pé e pressentindo aquele blush barato desmanchando na cara feito tinta guache, o trem partindo, os ombros curvados, tudo bem.

– Olha só você! – era uma voz conhecida, ela virou-se – você não mudou nada! – meu Deus, não acredito! – como você está? – estou bem! – ah, quanto tempo! por onde você andou? – mas que saudade – foram atropelando cumprimentos, frases tão típicas de quem não se vê a algum tempo ou mesmo a muito tempo e não sabe exatamente o que dizer, um abraço apertado, meio desajeitado, que deixou uma das luvas de lã com o fio preso no zíper do casaco do outro – pronto, agora a gente não se desgruda mais, ah, pois é, nunca mais – risos. E, depois, um certo silêncio, o ruído de um novo trem se aproximando, a hesitação entre chamar o rapaz pra tomar alguma coisa em algum lugar ou dizer sorridente qualquer frase de fuga, vamos-marcar-qualquer-coisa-um-dia-desses-beijos-me-liga e sumir num daqueles vagões que abririam-se em minutos, um adeus da janela, adorei te encontrar, eu também, não some, se cuida, sim, o melhor era sumir no próximo vagão – quem diria você aqui, hein? – foi falando com o intuito de começar uma despedida, resolvida a não remexer naquilo, mas, num minuto, nem sabia dizer como, já estavam sentados na mesa de um café antigo, toalhas brancas, cortinas de renda, um cardápio na mão e a sensação de que já era tarde demais para escapar.

Quando o garçom trouxe as duas xícaras ele contava sobre um projeto, quase dois anos para concluir, mas concluído, um edifício de galerias desenhado por ele, primeiro trabalho de peso – meu primeiro filho já nasceu com trinta metros! Quero o teste de DNA – riram, ele orgulhoso e ingênuo, gesticulando muito e um pouco engraçado naquele casaco onde lhe sobravam ombreiras, tentando resumir os últimos anos em historietas com muitos personagens, enredo impossível de acompanhar. E aquela descontração teria durado mais tempo se, de repente, ele não perguntasse pela vida dela, no que fizera desde que deixaram de trabalhar juntos, e ela dissesse que havia mudado de ramo, que tudo havia mudado um pouco, mas que até tinha saudades do escritório, dos projetos que faziam, do grafite zero oito que ele pegou e nunca devolveu – epa, isso não é verdade, ele interviu, eu ganhei  quando você perdeu a aposta. Sim, você mesma, quem mais apostaria comigo algo tão besta quanto a origem dos Beatles? Ela baixou os olhos achando graça, nossa, isso faz tanto tempo, pois é, mas eu lembro, você lá da mesa seis gritando (e nessa hora ele gracejava com voz feminina, exagerando nos “as”) olhaaaaa, pois foi em Londres, eu aaaaposto. Os dois riram, ela negando, olha, eu não falo assim, ele insistindo, está vendo aí, você acabou de dizer olhaaa, e então ele tirou do bolso uma caneta, rabiscou num guardanapo e ela reparou que já não usava a Bic azul, original e costumeira, mas uma outra, tipo Parker, desenhou no guardanapo um esboço da mesa de trabalho deles, os adesivos no armário, os ímãs no frigobar, o brasão do Super-Homem que ela havia colado no mural de cortiça, você viu o último filme? Não, nem o último, nem nenhum, ah, não me diga que você ainda curte esses heróis de gibi, ele ironizou, ela disse que sim, que ainda gostava, que no último filme havia uma cena ótima, um piano afundando no mar, ele interrompeu dizendo que não, que não fazia sentido que ninguém desconfiasse daquele personagem com um disfarce tão bobo, só um óculos e ninguém reconhece o cara? História mais doida, foi falando implicante, só me falta agora você me dizer que também continua rasgando papéis por aí, sim, eu ainda rasgo folhas de papel em mil quadrados iguais! Picotes que, às vezes, ele catava no fim do expediente e montava um desenho qualquer sobre a mesa, um pássaro, uma casa, uma frase: salve as árvores! Huahuahua! Olha, você não mudou nada.

Nessa hora o garçom chegou com as torradas, nenhum dos dois lembrava mais das torradas, esperou que o garçom saísse e continuou: outro dia eu voltei lá no restaurante do Pina, lembra dele? Ainda tinha o disco que sempre tocava, por que o Pina era meio tosco, só tinha dois ou três discos, todo dia na hora do almoço as mesmas músicas arranhadas, “é uma índia com um colar” e a faixa sempre engasgava na mesma parte “colar, colar, colar”, você lembra? Pois é, depois até comprei um CD igual pra poder ouvir a música inteira, ele foi dizendo com ironia e ela ficou sem saber se era verdade ou não, mas não importava. Foi então que ele passou a mão na testa como quem busca algo na memória e ela comentou, ei, seu cabelo está caindo, e ele disse, é, eu sei, vinte e nove este ano, ano que vem é trinta, e passou a mão na testa outra vez e ela cantarolou “aos vinte e nove, com o retorno de Saturno” tamborilhando com a colher na borda da xícara, mas calou em seguida, os dois olhando para o bule em cima da mesa, silêncio. Até que voltaram a falar e falaram muito sobre qualquer coisa assim, vaga, e ele perguntou se um dia ela voltaria ao escritório e ela disse, não, eu acho que não, e ele abanou a cabeça com os olhos na mesa, desenhando rabiscos com a caneta Parker: nem pra apostar outra zero oito? Ela riu e acenou sem responder. Depois falou assim, lenta: nossa, olha como é tarde… já anoiteceu lá fora. E ele disse, é mesmo. Quanto tempo se passou? Eu também não sei.

Saíram do café e, em dois ou três minutos, estavam novamente na parada, aproximava-se um elétrico cheio, o chão da estação trepidava. A despedida foi rápida, adorei te encontrar, eu também, não some, se cuida e já dentro do vagão, acenando da janela, ela foi cantarolando “é uma índia com um colar, a tarde linda que não quer se pôr…” e depois foi lembrando do piano no fundo do mar e de outras cenas que quase ninguém viu, ou que ninguém reparou, e de repente, lembrando daquela cena, por um instante, pensando melhor, ela concordou e também achou que todos os personagens do filme eram mesmo uns idiotas por não perceberem que Clark Kent era o Super-Homem.

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Rosa era costureira e dona de casa, tinha 42 anos e andava de ônibus. Uma mulher comum, dessas que a gente encontra todos os dias na rua, no supermercado, na fila do banco. Rosa era negra. E, uma dia, viajando de ônibus, recusou-se a levantar do seu assento – reservado para negros – para dar lugar a um homem branco.  É que os assentos para brancos estavam ocupados. Acusada de pertubar a ordem pública, foi detida no Alabama, em 1955, voltando os holofotes da mídia para um tema delicado: a segregação racial em veículos públicos.

Era o início. Em resposta à prisão de Rosa Parks, um pastor até então desconhecido chamado Martin Luther King dirigiu protestos às autoridades, fomentando uma onda de reivindicações contra o preconceito e a discriminação. Quando o caso de Rosa Parks chegou ao Supremo Tribunal, a segregação racial em transportes públicos foi considerada inconstitucional – mas já estava desencadeada aquela que seria a maior revolução dos Direitos Civis nos Estados Unidos.

Foi neste cenário, onde os negros não podiam beber água em bebedoro de branco, onde os negros não podiam entrar em banheiro de branco que, no Havaí, nascia uma criança de nome estranho. Obama.

Não faz muito tempo. Faz menos de cinquenta anos. Uma sucessão de fatos que levanta uma questão intrigante para nós, aqui do andar de baixo: como os  Estados Unidos, uma nação reconhecidamente racista e conservadora, consegue, em tão pouco tempo, driblar o preconceito e eleger um homem negro para a presidência? Em outras palavras: com quantas Rosas Parks se faz um Barack Obama?

Desde que o IBGE publicou uma pesquisa recente que comprova que o Brasil é um país de maioria negra, o assunto não sai de pauta. É que, nos EUA, eles são apenas 13%. Durante uma entrevista em Londres, o presidente Lula disse que Obama parece um de nós: “Se você encontrar o Obama no Rio de Janeiro, você pensa que ele é carioca. Se encontra na Bahia, pensa que é baiano”, brincou. E fez o convite: “Obama precisa conhecer Salvador, a maior cidade negra fora da África. Ele vai se sentir em casa”, garantiu. Os brasileiros concordaram. Os baianos festejaram. E, mesmo sem promessas, os mais de 2 milhões de afro-descendentes de Salvador já se preparam para receber por aqui um grande líder negro. Importado.

As diferenças históricas explicam. Enquanto os EUA desgastavam-se em políticas de reparação, criação de cotas e campanhas de conscientização, tivemos o privilégio de nascer no Brasil: num oásis de democracia racial que orgulha o povo, encanta o mundo e nos enche de alegria e preguiça. Terra miscigenada e tolerante, abençoada por Deus e bonita por natureza. Mas sem nenhum candidato a presidente negro. Sem nenhum governador negro. Apenas um diplomata negro. Tudo isso por que… porque mesmo?

Acredito que o maior desafio dos ativistas sociais de hoje é vencer a inevitável acusação de que são os negros que estão inventando o racismo na Brasil. Por exemplo, neste mês de setembro, tivemos a aprovação do substitutivo do projeto de lei que cria o Estatuto da Igualdade Racial. Do substitutivo? Pois é. É que o projeto original incluía cotas para a educação, para a aparição de negros na tv e no cinema, para ocupação de empregos públicos e a regularização de terras quilombolas. Medidas que a Câmara considerou desnecessárias. Segundo o deputado Índio da Costa (DEM-RJ), “Buscou-se entendimento retirando todos os excessos do texto. Todas essas aberrações saíram”. Ah, bom. E a gente achando que aberração era o fato da tv brasileira ter mais apresentadores brancos que a tv européia. Bom trabalho, deputado.

A aprovação de um estatuto esvaziado é motivo de festa no Brasil, enquanto, nos EUA, políticas reparatórias consistentes vigoram desde a década de 60 do século passado. Pensando bem, é muito tempo. Tempo suficiente para colocar um homem negro na Casa Branca. O que me faz pensar que, se Rosa Parkes tivesse nascido do lado de cá do Equador, ela não seria detida por lutar contra o racismo. Aqui nada é tão sério, nada é tão grave. Num gesto simples, ela seria considerada desnecessária. E riscada da pauta política junto com “todas essas aberrações que saíram”.

Existem muitas formas de abafar uma crise e manter o sistema vigente, uma delas é o descrédito. Ignorar os protestos e fazer o povo acreditar que já vive de maneira igualitária, sem distinção. Que qualquer um pode estar jantando num restaurante caro ou servindo a mesa, passando fome ou dando banquete, sambando na pista ou no camarote. Que a cor da pele não faz diferença.

Até que chegam as campanhas eleitorais para lembrar a nós, brasileiros distraídos, que a cor da pele faz, sim, muita diferença.

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Puma e Adidas

adidas_pumaÉ o avesso do sentimento:
Oceano sem água.
(C. Veloso / Queixa)

 

Esta semana soube de uma notícia terrível – a Puma e a Adidas fizeram as pazes. Fiquei chocada. Pra quem não sabe, a história é a seguinte: na década de 20, na Alemanha, uma empresa de calçados desportivos foi fundada na lavanderia da casa dos irmãos Adolf e Rudolf Dassler. Um dia, os dois irmãos brigaram, desfizeram a sociedade e cada um montou a sua fábrica: uma se chamava Puma, a outra se chamava Adidas. Cada uma de um lado do rio, dividindo também os moradores locais, que tinham que ser fiéis a um ou a outro empregador. Por despeito, por competição, por mágoa, o fato é que as duas empresas chegaram ao topo das marcas mundiais. Juntas.

Um história famosa, intrigante e bilionária que me faz pensar sobre a inimizade nossa de cada dia. Não, não esperem deste espírito elevado nenhum discuso pacifista por que, como todos sabem, eu gosto é do estrago. Afinal, amizade pode desgastar, afeto pode esfriar, consideração pode virar esquecimento – só inimizade é pra sempre. 

Minha teoria é a seguinte: inimigo é aquele cara que tinha tudo pra ser seu amigo mas, por algum motivo, não é. Por que te traiu, arranhou seu carro, bagunçou seu cabelo. Alguém que você conhece bem, que você até adimira, mas, por qualquer razão, a coisa descambou – e, provavelmente, ficou muito mais interessante. Para isso, é necessária certa equivalência entre as partes – se você não gosta de alguém e se sente muito superior à criatura, o que você sente é desprezo, antipatia. A torcida de futebol do Brasil compra brigas com a da Argentina, não com a torcida da seleção de Feira de Santana, se é que existe.

Por exemplo: graças ao ódio entre os Montecchio e os Capuleto, ambas famílias ricas, respeitadas e ex-aliadas, o romance de Romeu e Julieta virou um clássico. Os Capuleto não resolveram brigar com os Da Silva, entende? E mais: se os dois clãs vivessem às boas, reunindo-se em churrascos aos domingos, aquele seria um namorico de playground, sem ódio, sem lugar nas prateleiras da posteridade. Sem o glamour da maledicência.

Pessoalmente, acho que sou uma ótima inimiga. Do tipo que dá o tapa, bate a porta e depois liga pra perguntar se doeu. Do tipo entra sem convite na festa de aniversário e, de preferência, com um vestido idêntico. Daquelas que quebra o vidro, arromba a janela, amordaça o poodle e rouba o CD do Chico. Dessas que não negocia. Se o rival não tem defeitos, a gente inventa. Se o rival não tem problemas, a gente providencia. E a medida da maldade é sempre a medida do afeto extinto – inversamente e milimetricamente proporcional.

Repare: inimigos são sempre íntimos. Natural que Darth Vader seja pai de Luke Skywalker, natural que Lex Luthor seja amigo de infância de Clark Kent, que Caim seja irmão de Abel, que a mãe de Hitler seja judia, que a maçã tenha sido envenenada pela madrasta da Branca de Neve e não por uma bruxa qualquer que antipatizou com a coitada sem melanina. A verdade é que eu não acredito em rancor à primeira vista. Talvez por isso ignore tão solenemente quem me ofende de graça – nem virou meu amigo e já quer ser promovido a desafeto? Gentalha, gentalha.

Inimizades não acontecem todo dia. E é aí que está o problema: depois que seus antigos rivais resolvem despencar dois (dez) degraus no quesito vida interessante, passam a postar coisas bizarras na internet e desafiar todos os limites da mediocridade, a pessoa fica sem parâmetro, sem espelho, sem meta na vida! Não sei o que fazer. Tenho conhecido muita gente inteligente, emotiva e feladaputa, gente que ainda vai me render ótimos barracos futuros, mas ainda coloco fé nas velhas rivalidades. Amigos vão e vem, mas inimigos se acumulam. Um dia eles saem da sargeta da vida banal, voltam à atividade cognitiva e recuperam o prestígio dos meus instintos homicidas. Desafetos desaparecidos, favor reaparecerem. A Puma não seria quem é sem a Adidas.

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Dano culposo

Mesmo que você segure com as duas mãos, o coração se parte. Acontece assim, numa tarde de terça-feira, sem nenhum movimento brusco. Os olhos vidrados na janela onde cai a chuva, as mãos vazias sobre a mesa num canto da sala. As almofadas quietas, cada planta em seu lugar. Atrás da porta fechada onde os móveis transpiram pó, algo cai de si mesmo sozinho e, no chão, se despedaça.

Você compra o pão, vai ao cinema, volta pra casa e ele pode se partir. Na sonolência das sete horas, no calor do meio-dia, no azul de três da tarde. Antes da Ave-Maria, no meio da madrugada, quando menos se espera, tudo está por um fio. Uma mensagem que chega depois do tempo e o coração se parte. Uma mensagem que chega antes do tempo e o coração se parte. A palavra na hora errada, o silêncio na hora errada, a hora errada se repetindo a cada minuto de todos os dias. Um gesto sem intenção e o coração se parte. Uma carta mal escrita, um ato por distração. Todas as relações, as recentes e as antigas, pontes de porcelana, tudo pode se quebrar.

Mesmo que você segure com as duas mãos. O coração se parte.

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Há gente que sofre quando o time não ganha. Há gente que sofre quando perde o emprego. Mas só os meus amigos são capazes de sofrer por coisas absolutamente intangíveis. Por fatos que não são um problema, que talvez nunca cheguem a ser um problema, mas que tiram o sono dos coitados. Como o caso de uma amiga minha que lamentava profundamente não ter feito balé na infância. Para virar bailarina, ela teria que ter começado cedo, feito muitos anos de treino, mas a questão nem era esta, até por que ela odiava balé. O problema era a impossibilidade. Era tocar uma música clássica em qualquer lugar e lá estava ela chorando pitangas por não ter tido a oportunidade de seguir a tal carreira que ela não pretendia mesmo seguir. Um tragédia. Compreende? Eu compreendo.

E não só compreendo como formulei uma teoria sobre o assunto. Observando comportamentos diversos, concluí que a humanidade divide-se entre pessoas planas e pessoas esféricas. Planas são criaturas que possuem uma forma de pensar lógica, como uma superfície linear: você olha e compreeende a extensão dela. Gente que não sofre por problemas imaginários, vive uma vida concreta e é feliz. Gente normal.

Mas, se um círculo tem uma dimensão, uma bola tem três. Pessoas e objetos esféricos também: pra você os compreender, tem que olhar de mais de um ângulo, pois elas não se mostram completas na superfície. Para conhecer a bola por dentro, tem que abrir ela no meio. E as pessoas? Bem, não dá pra abrir as pessoas ao meio. E o jeito vai ser ficar a vida inteira sondando o que elas levam por dentro.

Por exemplo, digamos que o seu carro quebrou. Se você liga pedindo ajuda para o seu amigo plano, ele vai chegar trazendo o reboque e te aconselhando a trocar a lata-velha por um automóvel de verdade. Já o seu amigo esférico vai chegar sozinho, sentar no meio-fio ao seu lado, perguntar como você está se sentindo, oferecer o ombro e a solidariedade, questionar por que os carros quebram, por que os motores enguiçam e por que tudo atrapalha a rotina de quem já teve um dia inteiro de trabalho, procurar uma explicação pra tanto infortúnio no seu mapa astral, nos búzios, na Bíblia, tanto azar não é justo, não é certo, é um absurdo, vamos fazer uma passeata.

Um quer resolver, o outro quer participar. E os meus amigos adoram participar. Chorar junto por tudo que a gente desejou e não aconteceu e, principalmente, por tudo que a gente não desejou por que não sabia que existia. Digno. Até por que, graças ao cinema e aos romances, todos nós, os mortais, somos obrigados a reconhecer o quanto a nossa medíocre existência é desinteressante. Nos anos 80, o Marty fazia viagens através do tempo e modificava o curso da história em De Volta Para o Futuro enquanto eu ia para escola. Nos anos 90, outra afortunada conversava com Sócrates e visitava a Antiguidade em O Mundo de Sophia enquanto eu ainda ia para escola. Depois do ano 2000, além da surpresa decepcionante do mundo não ter se acabado, Peter Parker pulava dos edifícios heroicamente em O Homem-Aranha enquanto eu… fazia oque? Eu nem tinha mais escola pra frequentar! E ainda me perguntam por que a gente sofre. Motivos não faltam, meu caro, você nem pode imaginar.

Mas viver num mundo sem nenhum tipo de abstração nem é o pior. O pior é sofrer e não ter ninguém pra te dar um tapinha nas costas. Sempre saio e converso com pessoas simpáticas, modernas, bem-resolvidas e que possuem a profundidade psicológica de um personagem de Maurício de Souza. Sinto falta deles, dos meus amigos esféricos e complicados. Dos seus impasses machadianos. De como conseguiam enxergar em cada escolha banal um número incontável de variáveis possíveis, de como tornavam a vida sobre a Terra muito mais interessante. Não vejo a hora de reencontrá-los. Vai ser uma festa. Ou um drama.

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Toda sala de aula tem um Golias. Um colega mais alto e mais forte, capaz de ameaçar e submeter os outros. Quando criança, conheci um que obrigava os colegas a fazerem as suas provas e, depois, curiosamente, sempre dava um jeito de exibir as boas notas aos professores. Em qualquer oportunidade, lá estava ele, boletim na mão, sorriso na cara, a imagem do êxito. Nunca soube se os professores descobriram a farsa – e, talvez, nem precise saber. Mas tenho certeza de que nenhum de nós, os colegas, esqueceria daquela cena.

Lembrei deste episódio esta semana, lendo um jornal onde Portugal estava divulgando uma votação para eleger as “7 Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo”, selecionando monumentos na América, Ásia e África. Uma estratégia para elevar a auto-estima lusitana e levá-los aos holofotes do primeiro mundo. Todos os concorrentes já eram considerados patrimônios da humanidade pela UNESCO e foram construídos durante o período colonial. Selecionados pelo voto popular através da internet e telefone,  os vencedores estão localizados nos seguintes países: China, Cabo Verde, Marrocos, Índia (com duas obras) e Brasil (também com duas obras). Uma delas na Bahia.

Trata-se do conjunto de edifícios do Convento de São Francisco de Assis, no Pelourinho. Uma construção de 1587 que os baianos conhecem pela beleza e opulência. Comemorando o resultado, Jeanine Pires, presidente da Embratur, declara que: “Este é um grande ganho para o nosso turismo”. Agências de viagem comemoram. Empresas de aviação comemoram. Baianos, desinformados, comemoram. Por que, na Bahia, a gente comemora até o que não entende direito.

Por sorte, há vida inteligente sobre a Terra. Historiadores de todo o mundo estão assinando uma carta aberta contra o fato do concurso português não citar uma única linha sobre a origem escravagista de algumas obras. A descrição dos monumentos é unicamente arquitetônica, inclusive a dos prédios que foram construídos para armazenar e comercializar escravos. “Será possível desvincular a arquitetura dessas construções do papel que elas tiveram e que ainda têm, no presente, enquanto lugares de memória da imensa tragédia que representou o tráfico transatlântico e a escravidão africana nas colônias européias?”, questiona o documento.

Imagino que os monumentos são erguidos para relembrar a história e não para ocultá-la. E, talvez por isso mesmo, seja constrangedor que o representante do concurso garanta que “esta visita ao patrimônio de origem portuguesa é feita com um sentimento de orgulho e de satisfação pelo legado histórico do nosso passado”. Que legado? A construção de suntuosos armazéns de escravos? De que maneira eles seriam motivo de ‘orgulho e satisfação’ para um país? Não sei. E também não sei por que Auschwitz não entra na lista das sete maravilhas alemãs pelo mundo.

Portugal foi responsável pela maior deportação da humanidade. Só da África Ocidental foram retiradas de 15 a 18 milhões de pessoas. Se levarmos em conta que, para cada escravo que chegou à America, cinco foram mortos, estamos falando de uma multidão de 90 milhões, número que ultrapassa em dez vezes a atual população lusitana. Uma transposição  que, na voz do promotor português Luís Segadães, ganha tons de heroísmo: “Sem dúvidas, a globalização começou em Portugal”. Realmente. Realmente foram eles que nos ofereceram este intercâmbio pioneiro entre escravizados e colonizados, uma herança absurda e criminosa que nós, inexplicavelmente, não reconhecemos. Ingratos.

Diante de tanta polêmica, de tanto dinheiro gasto em publicidade, de tanto desgaste diplomático ocasionado por este concurso besta, o que fazer? Até que a ciência prove o contrário, culpa não é herança genética, ou seja, os portugueses de hoje não teriam que se desculpar por crimes que não cometeram. Não podem mudar a história: nem para se retratarem, nem para distorcê-la em concursos patriotas. A verdade é que, se o mundo resolvesse penalizar estes monumentos, teria que penalizar a todos os outros: as pirâmides, o Coliseu, os Jardins da Babilônia e tudo que a humanidade já ergueu sob regimes de escravidão. Falar dos crimes do passado seria falar de todos os crimes. E quem ficaria de fora deste tribunal?

A questão é outra. Aliás, são outras. Estamos diante de nosso ex-colonizador que, trezentos anos depois, reaparece para mostrar ao mundo o legado que nos proporcionou: um convento erguido sobre solo baiano, por escravos baianos, forrado com ouro baiano, que o povo baiano tem restaurado e preservado desde então. Tudo isso sendo exibido como maravilha portuguesa? Ironia. Me desculpe, Golias, mas este mérito não é seu.

O Convento de São Francisco de Assis é nosso. Na sua arte e na sua história, em cada pedra selada com o sangue da gente. Se os lusitanos só lembram da arquitetura dele, é por que a vida é assim mesmo, quem bate sempre esquece que bateu. Acontece que o convento fica bem no Pelourinho, no centro da vida negreira, no palco do genocídio. Não dá pra esquecer. Portugal pode até reduzir a sua história a uma lista de monumentos alegóricos, mas não pode reduzir a nossa. Nossos bisavós não nos perdoariam. A gente lembra, cara pálida.

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Inspirado em A Cabeça de Calcário, de Fernando Monteiro.

Era 2009. Fim de tarde, um dia banal, quarta, quinta-feira. Já havia uma cidade definhando – uma Lisboa de casarões abandonados e estatuas cobertas de limo, num luxo saudosista onde as casas envelheciam numa decadência adiada de quem ainda preferia pisar os trapos de veludo do tapete do que experimentar a realidade de um chão completamente nú. As guerras coloniais estavam perdidas, os navios já haviam voltado com seus combatentes mutilados e alguns ainda esperavam pela volta do salazarismo. Tudo era ausência à beira do Tejo. E foi num destes dias que eu conheci um homem chamado Baltazar.

Era um desses senhores portugueses de formação clássica, extremamente educados, que me pediu informações sobre as prateleiras do segundo andar da Biblioteca Municipal. Depois de duas ou três perguntas objetivas, abriu um dos livros que trazia, lendo com muita calma: “Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje, nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta” e sorriu, fechando a página. Eu sorri de volta. Ele se apresentou, muito sério, e disse: “Eu lamento pelas coisas que não existem mais”.

Estava procurando por publicações antigas. Buscava uma informação sobre os folhetins da década de 50 e explicou: preciso de um daqueles jornais velhos que vocês arquivam, daqueles que não usaram pra enrolar peixe um dia depois de publicados. Fisicamente, lembrava o velho Afonso – talvez por que todos os homens e mulheres cultos da península ibérica se pareçam um pouco com os descendentes perdidos da família Maia – e tinha a expressão grave de uma geração que viveu esta mudança de século acompanhando a chegada da modernidade com alguma distância e terror. Na ocasião, contou-me uma história – que talvez não tenha acontecido exatamente da maneira como iria narrar, alertou ele, garantindo que já se sentia traído pelo terreno movediço da memória, capaz de embelezar ou empalidecer os fatos ao sabor do tempo e da quilometragem – mas que, se não estava enganado, aconteceu no outono do ano de 1755.

Numa espécie de Atlas ilustrado, mostrou-me a reprodução do Grande Sismo, feita em óleo. Um mar pintado de azul escuro recuando numa onda gigante. O quadro lembrava-lhe o destino de todo lusitano, nascido com uma espada sobre a cabeça: o antigo terremoto, que foi sucedido pelo maremoto, que foi sucedido pelo incêndio – num elencar impressionante de desgraças ocorridas numa mesma manhã de novembro que alertava a todas as gerações portuguesas que, diante da força do inexorável, pesar nenhum era demais.

Disse que, depois da tragédia, a geologia da época – ciência nova, filha do pânico – garantiu que o terremoto se repetiria. Previsão que a ciência moderna confirma até hoje – e eles esperam há mais de 200 anos. Um dado histórico que influenciou profundamente a formação da cultura lusitana: dura, resignada, carregando o peso secular que alguns chamam de sina. Eles chamam de fado.

“Não existe mais nada, quase tudo desapareceu”, disse ele, fechando o livro de história do império. Falava sobre os anos de reinado, do qual nem foi contemporâneo. Um passado a que também os jovens lusitanos, hoje, preservam e enaltecem de maneira obsessiva, como alguém que herdasse, nos dias atuais, uma fortuna em moedas de Escudo – um tesouro do passado que, graças a um tropeço do tempo, já não vale mais nada. A nova geração, possuidora de muitos títulos e nenhum vintém, foi feita de um material inquebrantável – gente austera, indignada, que parece ter vivido toda uma era de vitórias e opulência que terminou para todo o sempre uns cinco minutos antes de você adentrar as fronteiras do país. Já nascem com esta melancolia vaga nos olhos – Fernões e Cabrais de farol, aguardando, aguardando – “Tudo era ausência à beira do Tejo”, ele disse, “ainda hoje é assim”.

Mas não era dos jovens que Baltazar falava. Não. Era daquela tristeza toda. Talvez fosse um mal do continente, plantado no trigo, bebido na água. Uma nostalgia crônica que aprisiona pessoas e nações aos seus dias de glória, marcados por um orgulho tardio, meio caduco. Como a nova Roma, que não enterra seus Cézares. Ou a Grécia, ensimesmada nas ruínas de sua antiguidade helênica, ou a França, estagnada até hoje no intervalo dourado da Art Nouveau – o fato é que quase todo homem europeu tem sua alma cativa a algum período áureo do seu passado, avessos às novas modas, músicas, invenções. Baltazar estava cativo daquele livro.

Na biblioteca, sentado com o Atlas nas mãos, sentia uma inquietação silenciosa, a claridade da janela rondando o gramofone, a mesa de madeira escura, os pratos pintados na parede e, agora, empurrando-o para a porta da rua, onde a luz era demais para os olhos e não se podia ver mais nada. Quase todos os objetos do segundo andar redesenhavam as sombras de um planeta extinto, quando a Índia e o Paquistão ainda não tinham feito a guerra, não havia Revolução Islâmica, os russos não haviam invadido o Afeganistão e, sobre o Oriente, pairava a mesma aura soturna de hoje, só que em preto e branco. O mundo pouco mudou, pensou. Assim, olhando bem, quase nada mudou – ele diria, convencido, pragmático, se não trouxesse aquele relógio fatal consigo, ali dentro, batendo, batendo.

Abandonou o Atlas e abriu outro livro, um de história. Numa das páginas, a imagem de um homem de pé, fardado. Era D. Sebastião, tinha certeza. Não era a pintura de um outro soldado que, regresso da guerra de Marrocos, fosse recebido e condecorado em seus trajes de combate. Nem era de um artista de circo que, de passagem pelas estradas empoeiradas do Minho, interpretasse um capitão heróico nos folhetins encenados do teatro de rua itinerante. Não era. Os ombros muito largos, dividindo o Oriente do Ocidente, eram de D. Sebastião, o herdeiro assassinado, início da dinastia dourada de um futuro que nunca veio. Do que poderia ter sido. Era jovem. E, mesmo Baltazar, em suas próprias fotografias, não era o velho de agora. Nos seus álbuns, eram evidentes os arranhões feitos pelo passar galopante dos anos – os amigos mortos, as cidades deixadas para trás e as oportunidades intactas desperdiçadas quando todos a sua volta tinham força, vigor e tempo – e não sabiam o que fazer com nada disso.

Quem era o jovem na gravura do livro? Talvez fosse de D. Afonso VI de Leão e Castela, varrendo a sombra espanhola do Condado Portucalense ou de algum rei católico ou algum guerreiro mouro filho de Alá. E, mesmo as páginas que ele folheava, de que parte do reino viriam? De que cedro, eucalipto, carvalho nascido sobre o chão verde da planície de que cemitério, onde pastavam as ovelhas alvas cobertas de lã, de onde teceriam as bandeiras, as fardas e as capas flexíveis de livros como aquele? A verdade é que o homem ilustre retratado sem identificação lembrava aos mortais leitores que tudo sobre a terra seria engolido pela onda branca e larga do esquecimento – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” – e pesava sobre Baltazar a promessa do anonimato sem memória, foto perdida no baú mais antigo da última casa fechada numa vila abandonada. Para ele, tudo era abandono. Não importa o que fizesse, que méritos ou crimes acumulasse em seus dias de existência, não poderia salvar a sua própria imagem de ser encontrada, um dia, num desses livros de história sem legenda, ou no lixo, ou num dos tabuleiros da feira da Ladra, exposta aos colecionadores, ao lado de antiguidades, velharias inúteis e outras fotografias de gente morta.

Baltazar era um homem inviável. Exasperado por quê, para a vida, não havia um fim, a justiça de um fim sobre a coroa do reconhecimento dos outros, mas apenas um desaparecer vulgar que não distingue o sepulcro digno da vala comum da existência ordinária – e seus anos não passariam de um intervalo ligeiro na história de uma cidade dentro de um país dentro de um planeta girando no espaço prestes a ser engolido pelo vácuo do nada. Morrer era desaparecer. Ele não estava preparado. Ocidental, racional, apalpava no escuro os caminhos para a transcendência, essa busca secular e tão humana de tentar ultrapassar os limites da mortalidade, não importa que nome lhe damos – Deus, Brahma, Nirvana – esta experiência que arrebata tanto os sentidos, como quando estamos diante de uma música extraordinária, de uma paisagem fabulosa ou da visão do sagrado. E caminhar para a biblioteca, guardar fotografias, falar sobre o império, tudo era uma busca ancestral pela perenidade roubada, o mito universal do paraíso perdido – ventre materno abandonado, terra prometida, alma gêmea, Éden, Meca – desde o princípio a humanidade tenta voltar. Mas, para aonde?

Do lado de fora da janela, a luz da tarde amarela fazia chegar-lhe à mente os dias em que ele era muito jovem e não existiam as marcas, essas marcas deixadas pelos que desistiram, fugiram, enlouqueceram, morreram – enquanto dentro da alma dele alguma coisa também ia desistindo, fugindo, enlouquecendo e morrendo. O futuro ainda tinha alguma importância. Ler os grandes autores era conversar com homens mortos, os vivos não lhe interessavam. As prateleiras, o silêncio das poltronas, a paz daquela sala sem pessoas enquanto a vida explodia em fomes, crimes e dores do outro lado do muro – viver não é preciso. Fechem um pouco mais as cortinas.

E ele baixou os olhos, voltou a ler. Eu continuei sentada na janela. Lá fora, a chuva começava a cair fina, cortante, alfinetando o asfalto. O centro da cidade, os carros, cimento, descargas, monóxido de carbono, o velho Palacete do Campo Pequeno, o telhado vermelho no meio do cinza. Ilhado. E foi, então, que eu entendi. Do segundo andar da biblioteca, olhando para o Palacete, para o Baltazar e até para mim mesma, ali, parada na janela: tudo aquilo era Portugal. Portugal de 2009: assustado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão e saudade. Guardando na estante mais alta a fragilidade da própria história, resistindo ao palpitar dos relógios que corrói os calcanhares dos monumentos e arrasta tudo de volta ao pó. E eu senti um amor imenso por tudo aquilo. Como num ritual de fé, fui fechando as cortinas, acendendo as luzes e entregando a ele os últimos livros.  Tudo vale a pena, se a alma… quanta bobagem. Não havia saída para Baltazar. O peso dos anos, aquela saudade, tudo nele queria voltar. E, ainda que não fosse ele, mas um outro, sem ancoras tão submersas naquele chão, ainda que conhecesse outros povos, nações maiores, mais ricas e cheias de vida e o mundo inteiro se abrisse numa explosão interminável de novidades, não importa onde estivesse, mesmo que o passar do tempo ganhasse sentidos diferentes e as lembranças do Tejo e do Campo Pequeno se tornassem cada vez mais vagas, haveria ainda nele – no ato banal de fechar cortinas, no gesto involuntário de suspirar fundo sem motivo ou de olhar para o mar como quem divaga – sempre nítida, como uma marca, como uma cicatriz na cara, a sentença irrevogável, o fado de todo lusitano – de estar sempre voltando pra casa.

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“Até o último momento
esperei que você me chamasse pelo telefone.
Que você fosse ao aeroporto.
Casablanca, última cena.”
(Caio F. \ Carta)

 

Mais do que nunca este cheiro de cola, selo e tinta me lembra o rumo dos destinos extraviados. No fundo, eu sempre soube: se desencontro tivesse forma, seria uma folha de papel manuscrita, num envelope selado e, certamente, com o meu endereço. Tantos quilômetros depois você me escreve uma carta.  Só agora. E como espera que eu te responda? Com um mapa mundi? Nem abro. Deixo num canto, nego, ignoro. Esqueço.

Não, não esqueço.

Penso em você. No vão de outra tarde vazia, olho da varanda e procuro, procuro qualquer coisa que nunca esteve lá. Me perco pelos quatro cantos dessa casa cheia de cantos, por livros que me prendem o suficiente pra me lembrar o quanto a minha vida não me prende. O fim de mais um dia ártico, esta lembrança preenchendo todos os cômodos como se ainda fosse você tocando sobre o piano, sobre esta nota grave e lenta, você que me sorri, que me estende a mão, que desenha com giz branco sobre o asfalto preto: olha, o mundo começa aqui. Aceito. Quase toco esta ausência plana, a parte que me falta é a que mais me dói, me vejo outra vez dentro da mesma cena – do que você tem medo? – eu não vou, eu não quero – por favor, hoje, agora – não adianta insistir – atenção passageiros com destino a Lisboa, última chamada, última chamada.

Tempo, tempo. Os dias novos na cidade antiga, madrugadas densas, multidões confusas. Sebos noturnos, pub’s lotados, guetos de jazz, guitarras distorcidas, jovens andrógenos vestidos de preto, anúncios luminosos entrecortados, angolanos cuspindo fogo, franceses equilibristas, a urbe ebulindo abaixo de zero e eu cruzando tantas avenidas, sangue e veias da metrópole difusa, buzina, brinde, batida de tambor, olho para o céu procurando por Vênus, procurando por Marte, Cruzeiro do Sul, Ursa Maior, bússola, guia, norte, porto, satélite escuro, navego por longe, vou longe demais, mas longe de quê? Longe de mim mesma.

É quase dia. Sei por que o trânsito recomeça lento, cães reviram o lixo e pessoas se dispersam ágeis como baratas quando se acende a luz. Outra vez. Outra vez passar a mão pela testa quente, arder a mesma febre antiga, desço correndo as escadas da Justa, estação da Baixa, vagão vazio, linha expressa que avança em fuga e que não vai me levar a você. Canto de sereia convidando Ulisses, pedir de novo como quem pede pão, prometer as torres de pedra de Sintra, os peixes do Tejo, o céu de Cascais, te mendigar sem dignidade por qualquer migalha de sim, corrigir tuas frases de novo dizendo: não é talvez, talvez é sim.

Dane-se. Em casa, os discos no chão, os pratos na pia, hoje eu quero afundar neste sofá até ele me cuspir no andar de baixo. Fecho os olhos. Cada manhã sob o céu de Camões, ferida que dói e não se sente. Preciso tanto te dizer agora que preciso tanto de você agora, quase telefono, mas é madrugada – e há outro jeito de entrar no teu sonho? Mente confusa, coração rasgado, nenhuma esperança, tudo bem, tudo bem, abro o envelope contrariada, mensagem curta onde você diz – chego terça-feira, às seis e dez. Aonde você for, meu mundo começa aí.

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