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Posts Tagged ‘Crônicas’

A gente se conheceu num quarto de hotel. Foi isso mesmo. Numa viagem a trabalho, sem que eu soubesse, a empresa me alocou no mesmo apartamento que uma desconhecida. Desavisada, a desconhecida abriu a porta e me encontrou sentada na poltrona dela. O tipo da situação que tinha tudo para ser péssima, mas a estranha tinha senso de humor – olá, invasora, eu sou a Jana.

Aquele era o único quarto vazio no único hotel de uma cidadezinha aleatória. Cada uma ocupou uma cama e dividimos muitas histórias durante uma semana. Eu estava cobrindo um evento num acampamento do Movimento Sem Terra, ela era uma indígena convertida aplicando uma pesquisa demográfica. Ficamos amigas quase imediatamente. Ela me acompanhava nas entrevistas, eu ajudava na aplicação dos questionários e a gente terminava a noite na praça. Jana tinha a minha idade, mas parecia muito mais jovem e tranquila. Foi a primeira pessoa no mundo a questionar o número de chaves do meu chaveiro – quantas responsabilidades…

Ela não tinha redes sociais nem celular e, quando a semana acabou, eu imaginei que ia ser difícil manter contato. Mas costumo confiar que o mundo dá um jeito de fazer os bons amigos se reencontrarem. Em outra viagem a trabalho, na Chapada Diamantina, eu estava passando por uma cidadezinha ainda menor e, de repente, vi Jana do outro lado da rua. Nem acreditei. Fiquei tão feliz!Pedi ao motorista que parasse a van, pedi aos colegas que aguardassem um minuto, saltei do carro correndo só para dar um abraço. Ela estava na calçada, encontrando uns rapazes. Quando me viu, eu levantei os dois braços:

– Janaaaaaa!!!

– Oi.

Ela respondeu GELADA. Não sorriu. Não estendeu a mão. Não parecia feliz de me encontrar.

– Tudo bem com você??

Silêncio. Eu não sabia o que dizer. Fiquei sorrindo, sem graça, os amigos dela olhando pra mim. Ainda insisti:

– Que bom ver você, né? Estou de passagem.

– E eu também já vou embora.

Fui me despedindo. Voltei para o carro. Ela sumiu pela outra rua. Eu não entendi nada.

Foi horrível.

No caminho, meus colegas perguntaram se eu tinha me confundido e cumprimentado a pessoa errada. Respondi que sim, que foi um engano. Um doloroso engano. Fiquei calada o resto do trajeto remoendo o incidente e passando por aqueles três estágios que todo paranóico conhece bem: 1) a insegurança: eu disse alguma coisa errada? Será que ela estava chateada comigo? Será que ela mudou? 2) a raiva: custava estender a mão? Tinha necessidade de me dar esse gelo na frente de todo mundo? Então era tudo falsidade o tempo todo?? 3) por fim, a certeza de que EU ESTAVA LOUCA. Senhoras e senhores, saibam que todos os paranóicos do mundo carregam a mesma aflição: achar que inventaram uma relação que nunca existiu. Desconfiam o tempo inteiro que aquela afinidade pode ser uma criação de suas cabeças, uma projeção sem reciprocidade, algo que, para o outro, nem era tão importante assim. Amigos imaginários, quem nunca? Uma dúvida simplesmente a. tor. men. ta. do. ra.

Gente, isso me mata.

Por fim, eu fiquei me sentindo apenas uma otária e esqueci o assunto. A gente cata os próprios caquinhos e segura na mão da dignidade, né? Deixei pra lá. Paciência. A viagem correu bem. No caminho de volta, a equipe inventou de parar exatamente naquela cidadezinha para almoçar e eu sabia que poderia encontrar Jana novamente. Seria péssimo. Seria constrangedor. E é claro que encontrei. Ela me viu e veio correndo me abraçar:

– Amiga, se não fosse você durante aquele assalto! Foi Deus quem te mandou. Eu nem sei como agradecer!

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Pensar na sua chegada me faz lembrar a história de um amigo meu que tinha carro, mas não tinha carteira de motorista. Por falta de tempo, de dinheiro, de paciência: trabalhava perto, era caseiro. Bastava sair pouco, fazer trajetos curtos, em horários de pouco fluxo. Sem problemas. Ficou assim por anos.

Não é que ele detestasse dirigir. Gostava de guiar, por exemplo, depois da última sessão de cinema, de madrugada, com os vidros abertos. Numa dessas noites, voltando pra casa, tocou uma música no rádio: era uma música antiga que ele adorava. Linda. Ele já estava chegando, aí aumentou o volume e resolveu dar mais uma volta no próprio quarteirão só para ouvir até o fim. Até a música acabar. E ela acabou.

Aí tinha uma blitz.

Infração grave, cinco pontos na carteira, apreensão do veículo, multa e penalidades diversas.

Ridiculamente traído pelo acaso, meu amigo precisou frequentar a auto escola para aprender algo que ele sempre soube: dirigir. Gastou tempo e dinheiro. Pelo menos agora já podia sair em qualquer hora e lugar. Naquele ano, ele foi visitar um colega nosso em outra cidade e fez um passeio de férias. E começou a viajar sempre que podia, conhecendo tudo pelas estradas. O mundo dele ficou maior. Ia cada vez mais longe.

Meu amigo já não mora mais aqui. Quando a gente se reencontra, sempre alguém fala sobre a história da carteira de motorista e ele dá risada. Diz que, às vezes, a gente se acomoda com pouco, mas que se você estiver aberto a mudar de rota, coisas fantásticas podem acontecer. São os sinais do universo. Como eu acredito que aconteceu para mim.

Tenho pensado muito em você, que entrou na minha vida como uma música linda.

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