Hoje eu sonhei com o tempo em que eu trabalhava na agência. Faz tempo. Naquela época, eu tinha uma mesa, uma cadeira, um computador, um salário fixo no fim do mês e anúncios, muitos anúncios para fazer. No começo, eu nem entendia nada daquilo, era menor de idade, eu só queria dinheiro pra ir à praia, gostava de ver meus títulos publicados no jornal, queria diversão. E era divertido.
Depois de sete anos de redação, o ruído do elevador do escritório me causava náusea. Eu odiava tudo aquilo. A porta abrindo, as pessoas entrando, apertando o nono andar e falando de seus carros e vinhos e barcos, por que ninguém fala dos próprios fracassos no elevador da firma. Os mídias com seus crachás no bolso, os produtores com suas piadas fáceis, as moças de atendimento com aquelas calças de terninho esmagando bundas altamente profissionais. E eu. Até o nono andar. Uma eternidade.
Depois, entrar no setor e ligar o computador. E deixar lá, ligado, avisando que eu cheguei, por quê computador ligado é o novo cartão de ponto das empresas. Fazer a social, falar do último Cannes, do último lançamento da Mac, dizer que aquele anúncio do concorrente ficou uma bosta. Comparecer à reunião. Mesa de fórmica. Telão na recepção passando show do Asa de Águia, empresários com crises de meia-idade flertando secretárias com crises financeiras. Sono, sono. E eu pensando: um dia, eu vou embora daqui. Hora do almoço, grupinhos de terno debaixo do sol decidindo o melhor restaurante de comida a quilo: “podem se servir que, hoje, quem paga é o Fernandes”, “nada disso, quem paga é o Almeida”. Aniversariante do mês, champanhe nacional em copo plástico, fatia de bolo no guardanapo. A gente se encontra na premiação, ok? Cambalear no salto alto em cima do tablado, agradecer no microfone ao patrocinador e estender o troféu ao lado do cliente. Bêbado. Trofeuzinho na mesa, tapinha nas costas, meu Deus, um dia eu largo essa merda.
Às vezes, mudar de agência. Três vezes. Quatro. E me sentir no mesmo lugar. Sempre a única mulher do setor de criação, dez homens, onze cadeiras. No começo eles te excluem. Depois, te espionam. Depois, te adotam, te abraçam o tempo todo e te chamam de brother. Briga de sócios na sala do lado, briga de colegas pela vaga do estacionamento, comentário maldoso, hora extra, cafezinho em garrafa térmica, eu gastando toda a minha criatividade-idealista-universitária em anúncios de sabonete. De seguro dentário, de carro esportivo. Frustração. Bocejo. Solidão. Aumento o volume no: in a sky full of people, only some want to fly, is not that crazy, crasy, crasy?, levanto da cadeira, afasto as persianas da janela e olho o mundo atrás da vidraça, céus, eu quero fazer outra coisa. Mas como?
Aí, um dia, acontece. Não assim, de repente, mas acontece. E eu me vejo em outro lugar, fazendo outra coisa, sem o ruído do elevador do escritório. Sem o escritório. Sem mesa de fórmica, sem crachá, sem garrafa térmica. Fazendo muitas outras coisas que, mesmo mais toscas e simples e mal remuneradas, me matam de fome, mas não me matam de tédio. E descubro que elas são duras. Mesmo. Por que entregar jornal na chuva é duro. Por que trabalhar de madrugada é duro. Por que ficar oito horas por dia em pé num balcão é duro, é desumano, é um absurdo. E eu nem imaginava o quanto. Daí, quando chego em casa, eu tiro os sapatos emporcalhados e me jogo no colchão, eu nem penso nisso. Eu durmo pesado, exausta, quase sempre. Mas, hoje, eu sonhei. E sonhei com essas coisas. Com esse tempo. Com a época em que eu tinha uma mesa, uma cadeira, um computador. De quando eu tinha um salário fixo no final do mês. Reuniões, festinha, premiação, tapinha nas costas. Estatuetas ao lado do desktop. Bolo de aniversário no guardanapo, anúncio meu publicado no jornal, essas coisas. De todo o conforto e segurança e rotina ajustada que eu tinha na época em que eu trabalhava para a agência.
E acordei assustada.
– Calma, calma. Foi só um pesadelo.