Hoje, ao chegar em casa e abrir o meu armário, felizmente, reencontrei o meu guarda-chuva. Achei que tinha perdido. E já estava supondo que, a esta hora, ele estaria esquecido debaixo de alguma mesa de bar, seguindo sozinho num taxi ou sendo gentilmente oferecido por um manobrista para o dono errado. Por sorte, ele estava bem aqui, entre os livros da última prateleira. E, como disse, foi mesmo bom encontrá-lo de novo.
Esse guarda-chuva foi comprado numa viagem, na última que fiz, para a Turquia. Uma odisseia meio improvisada, com direito à mochila, estrada, graus negativos e gente inusitada. Não faltaram pratos exóticos pegando fogo, jipes atolados, dromedários em fuga e aviões perdidos. E noites dormidas no chão. Molhado. De uma caverna. Um passeio com aventura o suficiente para me fazer questionar a veracidade dos filmes de aventura – onde, necessariamente, tudo sempre dá certo e, no intervalo, ainda se pode levantar do sofá para buscar mais pipoca.
Logo no início da viagem, quando ainda estávamos decidindo entre enfrentar um nevoeiro em Éfesos ou a ressaca do Bósforo ou um levante armado em Akcakale, começou a chover. Era uma tromba d’água. Todos os outros casais correram para debaixo das marquises e nós entramos numa loja de guarda-chuvas. Havia dezenas na vitrine. De todos os tipos. Agarrei um de plástico incolor, sem estampa, só por que me pareceu familiar. Talvez por causa daqueles versos infantis sobre “uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada” ou dos provérbios antigos em que “só não joga pedra quem tem telhado de vidro”. Talvez estivéssemos protegidos sob aquela coisa transparente, como se protege um objeto frágil com plástico bolha. Enfim, deu-se a compra do guarda-chuva e fomos embora.
Nos dias seguintes, o roteiro foi dividido entre escaladas sobre-humanas, cidades subterrâneas claustrofóbicas, deslizamentos de terra e balões aterrissando desgovernados, derrapando na grama e arremessando os passageiros no chão. Quer transformar a sua viagem romântica numa saga de suspense selvagem? Pergunte-me como. Já no meio da peregrinação, houve uma noite em que nos perdemos. Plena madrugada, alto da montanha, nenhuma comida e aí começou a chover. Um frio de encolher catedrais. E, talvez por que não houvesse mesmo mais nada a fazer naquela hora dramática – céu fechado, nuvens de chumbo, trombetas anunciando o Apocalipse – eu desisti de procurar o caminho certo e abri o guarda-chuva. Mas aquilo não era chuva. Era neve branca.
Foi uma surpresa bonita. Nunca tínhamos visto neve. E seria impossível perceber se a cobertura não fosse transparente. Sentamos ali mesmo, no alto daquela pedra, pra ver o plástico ir ficando alvo. Em silêncio. Encostados um no outro. Com aquela paisagem lunar brilhando lá embaixo.
Isso já faz algum tempo e, mesmo assim, tantos meses e quilômetros depois, eu gostava de reencontrar o velho guarda-chuva no armário. Ele me fazia lembrar daquela noite, da neve, daquele instante em que eu percebi que tinha feito a escolha certa. Foi bom saber que o meu guarda-chuva não estava rodando sozinho num banco de taxi, que não se perdeu, que sempre esteve ali. No fundo, é estranho pensar que a maioria das nossas coisas – pedacinhos nossos, partes da nossa vida – podem simplesmente se dissipar no meio do caminho. Que quase tudo está de passagem. Mas o que tem que ficar, fica.