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Posts Tagged ‘lusinano’

Inspirado em A Cabeça de Calcário, de Fernando Monteiro.

Era 2009. Fim de tarde, um dia banal, quarta, quinta-feira. Já havia uma cidade definhando – uma Lisboa de casarões abandonados e estatuas cobertas de limo, num luxo saudosista onde as casas envelheciam numa decadência adiada de quem ainda preferia pisar os trapos de veludo do tapete do que experimentar a realidade de um chão completamente nú. As guerras coloniais estavam perdidas, os navios já haviam voltado com seus combatentes mutilados e alguns ainda esperavam pela volta do salazarismo. Tudo era ausência à beira do Tejo. E foi num destes dias que eu conheci um homem chamado Baltazar.

Era um desses senhores portugueses de formação clássica, extremamente educados, que me pediu informações sobre as prateleiras do segundo andar da Biblioteca Municipal. Depois de duas ou três perguntas objetivas, abriu um dos livros que trazia, lendo com muita calma: “Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje, nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta” e sorriu, fechando a página. Eu sorri de volta. Ele se apresentou, muito sério, e disse: “Eu lamento pelas coisas que não existem mais”.

Estava procurando por publicações antigas. Buscava uma informação sobre os folhetins da década de 50 e explicou: preciso de um daqueles jornais velhos que vocês arquivam, daqueles que não usaram pra enrolar peixe um dia depois de publicados. Fisicamente, lembrava o velho Afonso – talvez por que todos os homens e mulheres cultos da península ibérica se pareçam um pouco com os descendentes perdidos da família Maia – e tinha a expressão grave de uma geração que viveu esta mudança de século acompanhando a chegada da modernidade com alguma distância e terror. Na ocasião, contou-me uma história – que talvez não tenha acontecido exatamente da maneira como iria narrar, alertou ele, garantindo que já se sentia traído pelo terreno movediço da memória, capaz de embelezar ou empalidecer os fatos ao sabor do tempo e da quilometragem – mas que, se não estava enganado, aconteceu no outono do ano de 1755.

Numa espécie de Atlas ilustrado, mostrou-me a reprodução do Grande Sismo, feita em óleo. Um mar pintado de azul escuro recuando numa onda gigante. O quadro lembrava-lhe o destino de todo lusitano, nascido com uma espada sobre a cabeça: o antigo terremoto, que foi sucedido pelo maremoto, que foi sucedido pelo incêndio – num elencar impressionante de desgraças ocorridas numa mesma manhã de novembro que alertava a todas as gerações portuguesas que, diante da força do inexorável, pesar nenhum era demais.

Disse que, depois da tragédia, a geologia da época – ciência nova, filha do pânico – garantiu que o terremoto se repetiria. Previsão que a ciência moderna confirma até hoje – e eles esperam há mais de 200 anos. Um dado histórico que influenciou profundamente a formação da cultura lusitana: dura, resignada, carregando o peso secular que alguns chamam de sina. Eles chamam de fado.

“Não existe mais nada, quase tudo desapareceu”, disse ele, fechando o livro de história do império. Falava sobre os anos de reinado, do qual nem foi contemporâneo. Um passado a que também os jovens lusitanos, hoje, preservam e enaltecem de maneira obsessiva, como alguém que herdasse, nos dias atuais, uma fortuna em moedas de Escudo – um tesouro do passado que, graças a um tropeço do tempo, já não vale mais nada. A nova geração, possuidora de muitos títulos e nenhum vintém, foi feita de um material inquebrantável – gente austera, indignada, que parece ter vivido toda uma era de vitórias e opulência que terminou para todo o sempre uns cinco minutos antes de você adentrar as fronteiras do país. Já nascem com esta melancolia vaga nos olhos – Fernões e Cabrais de farol, aguardando, aguardando – “Tudo era ausência à beira do Tejo”, ele disse, “ainda hoje é assim”.

Mas não era dos jovens que Baltazar falava. Não. Era daquela tristeza toda. Talvez fosse um mal do continente, plantado no trigo, bebido na água. Uma nostalgia crônica que aprisiona pessoas e nações aos seus dias de glória, marcados por um orgulho tardio, meio caduco. Como a nova Roma, que não enterra seus Cézares. Ou a Grécia, ensimesmada nas ruínas de sua antiguidade helênica, ou a França, estagnada até hoje no intervalo dourado da Art Nouveau – o fato é que quase todo homem europeu tem sua alma cativa a algum período áureo do seu passado, avessos às novas modas, músicas, invenções. Baltazar estava cativo daquele livro.

Na biblioteca, sentado com o Atlas nas mãos, sentia uma inquietação silenciosa, a claridade da janela rondando o gramofone, a mesa de madeira escura, os pratos pintados na parede e, agora, empurrando-o para a porta da rua, onde a luz era demais para os olhos e não se podia ver mais nada. Quase todos os objetos do segundo andar redesenhavam as sombras de um planeta extinto, quando a Índia e o Paquistão ainda não tinham feito a guerra, não havia Revolução Islâmica, os russos não haviam invadido o Afeganistão e, sobre o Oriente, pairava a mesma aura soturna de hoje, só que em preto e branco. O mundo pouco mudou, pensou. Assim, olhando bem, quase nada mudou – ele diria, convencido, pragmático, se não trouxesse aquele relógio fatal consigo, ali dentro, batendo, batendo.

Abandonou o Atlas e abriu outro livro, um de história. Numa das páginas, a imagem de um homem de pé, fardado. Era D. Sebastião, tinha certeza. Não era a pintura de um outro soldado que, regresso da guerra de Marrocos, fosse recebido e condecorado em seus trajes de combate. Nem era de um artista de circo que, de passagem pelas estradas empoeiradas do Minho, interpretasse um capitão heróico nos folhetins encenados do teatro de rua itinerante. Não era. Os ombros muito largos, dividindo o Oriente do Ocidente, eram de D. Sebastião, o herdeiro assassinado, início da dinastia dourada de um futuro que nunca veio. Do que poderia ter sido. Era jovem. E, mesmo Baltazar, em suas próprias fotografias, não era o velho de agora. Nos seus álbuns, eram evidentes os arranhões feitos pelo passar galopante dos anos – os amigos mortos, as cidades deixadas para trás e as oportunidades intactas desperdiçadas quando todos a sua volta tinham força, vigor e tempo – e não sabiam o que fazer com nada disso.

Quem era o jovem na gravura do livro? Talvez fosse de D. Afonso VI de Leão e Castela, varrendo a sombra espanhola do Condado Portucalense ou de algum rei católico ou algum guerreiro mouro filho de Alá. E, mesmo as páginas que ele folheava, de que parte do reino viriam? De que cedro, eucalipto, carvalho nascido sobre o chão verde da planície de que cemitério, onde pastavam as ovelhas alvas cobertas de lã, de onde teceriam as bandeiras, as fardas e as capas flexíveis de livros como aquele? A verdade é que o homem ilustre retratado sem identificação lembrava aos mortais leitores que tudo sobre a terra seria engolido pela onda branca e larga do esquecimento – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” – e pesava sobre Baltazar a promessa do anonimato sem memória, foto perdida no baú mais antigo da última casa fechada numa vila abandonada. Para ele, tudo era abandono. Não importa o que fizesse, que méritos ou crimes acumulasse em seus dias de existência, não poderia salvar a sua própria imagem de ser encontrada, um dia, num desses livros de história sem legenda, ou no lixo, ou num dos tabuleiros da feira da Ladra, exposta aos colecionadores, ao lado de antiguidades, velharias inúteis e outras fotografias de gente morta.

Baltazar era um homem inviável. Exasperado por quê, para a vida, não havia um fim, a justiça de um fim sobre a coroa do reconhecimento dos outros, mas apenas um desaparecer vulgar que não distingue o sepulcro digno da vala comum da existência ordinária – e seus anos não passariam de um intervalo ligeiro na história de uma cidade dentro de um país dentro de um planeta girando no espaço prestes a ser engolido pelo vácuo do nada. Morrer era desaparecer. Ele não estava preparado. Ocidental, racional, apalpava no escuro os caminhos para a transcendência, essa busca secular e tão humana de tentar ultrapassar os limites da mortalidade, não importa que nome lhe damos – Deus, Brahma, Nirvana – esta experiência que arrebata tanto os sentidos, como quando estamos diante de uma música extraordinária, de uma paisagem fabulosa ou da visão do sagrado. E caminhar para a biblioteca, guardar fotografias, falar sobre o império, tudo era uma busca ancestral pela perenidade roubada, o mito universal do paraíso perdido – ventre materno abandonado, terra prometida, alma gêmea, Éden, Meca – desde o princípio a humanidade tenta voltar. Mas, para aonde?

Do lado de fora da janela, a luz da tarde amarela fazia chegar-lhe à mente os dias em que ele era muito jovem e não existiam as marcas, essas marcas deixadas pelos que desistiram, fugiram, enlouqueceram, morreram – enquanto dentro da alma dele alguma coisa também ia desistindo, fugindo, enlouquecendo e morrendo. O futuro ainda tinha alguma importância. Ler os grandes autores era conversar com homens mortos, os vivos não lhe interessavam. As prateleiras, o silêncio das poltronas, a paz daquela sala sem pessoas enquanto a vida explodia em fomes, crimes e dores do outro lado do muro – viver não é preciso. Fechem um pouco mais as cortinas.

E ele baixou os olhos, voltou a ler. Eu continuei sentada na janela. Lá fora, a chuva começava a cair fina, cortante, alfinetando o asfalto. O centro da cidade, os carros, cimento, descargas, monóxido de carbono, o velho Palacete do Campo Pequeno, o telhado vermelho no meio do cinza. Ilhado. E foi, então, que eu entendi. Do segundo andar da biblioteca, olhando para o Palacete, para o Baltazar e até para mim mesma, ali, parada na janela: tudo aquilo era Portugal. Portugal de 2009: assustado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão e saudade. Guardando na estante mais alta a fragilidade da própria história, resistindo ao palpitar dos relógios que corrói os calcanhares dos monumentos e arrasta tudo de volta ao pó. E eu senti um amor imenso por tudo aquilo. Como num ritual de fé, fui fechando as cortinas, acendendo as luzes e entregando a ele os últimos livros.  Tudo vale a pena, se a alma… quanta bobagem. Não havia saída para Baltazar. O peso dos anos, aquela saudade, tudo nele queria voltar. E, ainda que não fosse ele, mas um outro, sem ancoras tão submersas naquele chão, ainda que conhecesse outros povos, nações maiores, mais ricas e cheias de vida e o mundo inteiro se abrisse numa explosão interminável de novidades, não importa onde estivesse, mesmo que o passar do tempo ganhasse sentidos diferentes e as lembranças do Tejo e do Campo Pequeno se tornassem cada vez mais vagas, haveria ainda nele – no ato banal de fechar cortinas, no gesto involuntário de suspirar fundo sem motivo ou de olhar para o mar como quem divaga – sempre nítida, como uma marca, como uma cicatriz na cara, a sentença irrevogável, o fado de todo lusitano – de estar sempre voltando pra casa.

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