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Posts Tagged ‘meditação’

Sobre a bancada, há um vidro de perfume e um frasco de shampoo, já faz um tempo que estão ali. Deitada na cama, olho para a porta aberta do banheiro e posso ver os produtos de sempre sobre a pia e esse é o meu momento presente. Um vidro com metade do perfume e uma embalagem plástica de shampoo.

Dizem que, neste século, o tempo médio de vida de um ser humano é de 80 anos. Nesta lógica, acredito que eu estou, hoje, mais ou menos na metade do meu tempo. Talvez eu tenha oportunidade de aproveitar o meu perfume até a última gota, talvez algum imprevisto faça o vidro cair por acidente, perfumando inutilmente o chão do banheiro, o vidro é tão quebrável. Diferente da embalagem de shampoo, que é plástica. Hoje, o mundo possui mais de oito bilhões de habitantes, que terão seus filhos e netos e todos morrerão antes desta embalagem deixar de existir. O plástico, em sua banalidade barata, é quase eterno, é um semideus. Já a a minha existência é breve e encontra-se quase na sua metade, sou tão mais frágil que este frasco de shampoo.

Já são sete da manhã. Minha geração, como todas as outras, possui preocupações próprias: a minha está assombrada com a gestão do tempo. Dizem que a melancolia seria o excesso de passado e a ansiedade seria o excesso de futuro e que o nosso desafio é viver o momento presente. Deitada, me pergunto o que o instante de agora tem para me oferecer: a visão da bancada do banheiro. Respiro fundo e pisco os olhos, como só um animal vivo poderia fazer. A bancada e seus objetos seguem imóveis. Existir, mesmo que seja por mil anos, é diferente de estar vivo. Não invejo mais a perenidade da embalagem de shampoo.

Deitada, tento me conectar ao instante sem pensar em nada de antes ou de depois. É difícil. Olho para a porta do banheiro como alguém que se deslocou para o futuro e se lembra de uma época, de um quarto, de uma manhã distante em que ficou observando uma bancada de banheiro. Depois, me desloco para o passado, reprisando dias aleatórios, fixo em um, meses atrás, em que estava sozinha num consultório médico. Após exames de rotina com bons resultados, a médica encerrou a consulta e perguntou: como é a sensação de ir embora sabendo que você não está doente? Eu fiquei sem entender e ela insistiu: os pacientes diagnosticados costumam narrar os impactos da descoberta da doença, seus pensamentos e emoções. Mas não sei nada sobre os outros: como é, para um paciente, receber a notícia de que continuará vivo? E eu não soube responder.

Tento me concentrar no agora, o que o dia de hoje pode me oferecer? A água quente do banho, a água fria da pia. O café doce, o pão salgado. Cheiro, toque, som – privilégios de um animal vivo. Pisco os olhos, vejo o outro lado do quarto, a janela aberta. Numa fachada vizinha há uma estátua de pedra – simétrica, perfeita. Ela não está envelhecendo e jamais ficará doente. Mas também jamais sairá dali.

Hoje, eu gosto de ser quem eu sou, o animal que respira. Que caminha, envelhece e morre. Não almejo a perfeição da pedra, nem a imortalidade do plástico. Talvez eu deseje apenas mais tempo, tempo suficiente para, um dia, ser a pessoa do futuro que recorda uma época, lembra de um quarto, de uma manhã distante em que ficou deitada sentindo uma inexplicável satisfação em poder respirar. Sem melancolia, sem ansiedade: completamente presente. Da janela, vejo a estátua que vai durar mais do que eu, penso no planeta, que vai continuar sem mim. E mesmo a bancada do banheiro, que é de cerâmica e eu não sei quanto tempo vai durar, ela me parece perfeitamente adequada às necessidades de hoje. E isso basta.

O que o momento presente tem para oferecer me agrada. É bom ainda estar por aqui.

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Mas tem que meditar. Por que a ciência recomenda, por que é o que todos dizem, basta melhorar a postura, fechar os olhos: vegetal, vegetal. Você pode começar imaginando um lugar bonito. Imaginou? Mas não um lugar que você já conhece, nem que quer conhecer, um lugar abstrato e bonito. Pode pensar também nas pessoas. Ninguém específico, pessoas do ponto de vista coletivo, na humanidade, um planeta repleto de pessoas girando sozinho no escuro do universo. Sinta o tempo passando por elas. Nem o seu passado, nem o seu futuro, apenas o tempo deslizando de leve – um momento presente metafísico, ponteiro de relógio marcando agora, agora, agora. Medite de verdade centrando-se na sua própria essência. Para além dos rótulos, dos papéis sociais, família, religião, carreira, personalidade – o que sobra, meu Deus? – pense nesse fantasminha translúcido chamado ‘essência de você mesmo’, seja lá o que signifique isso. Respire: vegetal, vegetal. Não abra os olhos. Não peça ajuda ao mundo. Não se agarre desesperadamente aos lugares habituais, às pessoas conhecidas, a um passado seguro. Encontre a paz dentro deste você desfragmentado e vazio, garimpe a razão da sua existência no vácuo. Você, o seu próprio Buda. Você, o seu melhor amigo. Fantasminha translúcido e autossuficiente. Não peça ajuda a ninguém. Confie no seu próprio umbigo.

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Se, um dia, alguém tiver êxito, explique-me como.

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