Sim. Continuando.
Até alguns anos atrás, eu só conhecia a Rússia através de um postal antigo. Ele talvez ilustrasse a única imagem marcante que eu possuía do país até então: era a virada do ano em Moscou, com fogos de artifício lindos sobre os edifícios de marshmallow do Kremmling, um show de luzes sobre uma praça grande, elegante e… absolutamente deserta.

Pois bem. E a pessoa se pergunta: e por quê ela estava deserta? E a resposta correta é: por que faziam 50 graus negativos.
CINQUENTA. GRAUS. NEGATIVOS.
Diante desta informação, suponho que seja possível poupar o caro leitor de qualquer descrição dramática da minha situação térmica. Em pedra, perdida e hipodérmica, segui pela madrugada do centro novo, por que havia alugado pela internet um quarto na Tverskaya – e, até então, encontrar endereços em cidades desconhecidas nunca havia sido um problema. Só que aquilo era Moscou. E a avenida Tverskaya possuía nada menos que dezoito metros de largura e DOZE QUILÔMETROS DE EXTENSÃO.
DOZE. QUILÔMETROS. DE. EXTENSÃO.
A pé.
Morri.
(um minuto de silêncio)
Sim, meus caros. Arrastando a mala de rodinhas enquanto tentava pegar um ônibus (preciso explicar que não havia dinheiro para um taxi?) sem sucesso. O pior é que, mesmo naquele momento tenso, era impossível que eu não me impressionasse com o tamanho da cidade. A verdade é que eu não sei diferenciar um prédio de 40 andares de um de 50, mas quando alguém constrói um edifício de 50 andares com uma janela de dez metros de altura, uma porta de vinte e uma fechadura do tamanho de uma pessoa, você se sente num filme. Tipo: Ghost + Lost + Querida, encolhi as crianças.
Encontramos o endereço uma hora da manhã. E, então, o que aconteceu?
Dois homens brigaram por minha causa.
Ho-ho.
A saber: o turco louco da mercearia e o velho do 402. Por que a minha vida é assim.
Interfonei para o 503 que não atendia e, então, fui apertando outros para pedir informação. Em inglês. O primeiro bateu na minha cara, o segundo também, o terceiro me xingou em francês (connaaaard! bouuuugre!) e eu fui ligando para todos até que, no último – surpresa! – fui ignorada de novo. Quando cheguei até à mercearia mais próxima, a minha cara de desabrigada devia ser mesmo a comiseração personificada, por que um turco me pegou pelo braço, foi até o tal edifício e sentou o dedo no interfone até alguém aparecer na janela. E alguém apareceu. Senhoras e senhores, com vocês: o velho do 402.
(Diálogo em russo. Tradução psicografada)
– Você sabe que horas são??? – Há alguém no 503? – Vá para o inferno! – Estes visitantes estão indo para o 503. – Que vão para o inferno com você!!
O velho fecha a janela. O turco enterra o dedo na buzina.
– Senhor! – Qual é o seu problema?? – Não há como abrir o portão para eles? – QUE MORRAMMMMMMM!!!
E bate a janela. Pronto. O turco surta. Pira. Desparafusa. Sai louco catando tijolo e é pau, é pedra, é o fim do caminho, o turco espumando prestes a pocar a vidraça, a casa, a testa do velho e ser preso amarrado batendo cabeça numa camisa de força quando eu revejo o endereço que eu havia anotado. Sim, o endereço.
Era. o prédio. errado.
APENAS. O. PRÉDIO. ERRADO.
E quem devia ser presa sou eu.
Que vergonha. E eu me pergunto, meu Deus, por que a minha cota de constrangimento diário não tem limites? Não. tem. limites. Corta para a cena seguinte, duas pessoas segurando o turco e ALOKA aqui gritando – don’t stress, friend, please! – até o cara se desapegar da causa, se acalmar e voltar para a mercearia praguejando em russo. Fofo. O turco louco, meu herói. O edifício certo era ao lado. Duas da amanhã, a gente sem luvas, bastava agora ir até o endereço correto e sair daquele suplício gelado, ok?
Mas não me apetece.
Interfono para o velho. Dez vezes. Cem vezes. Cem mil vezes. Ele demora de aparecer. Aparece. Eu vou para o meio da rua. Berro: NÃO QUERO MAIS ENTRAR. EU NÃO QUERO. ENTENDEU??? NÃO QUEROOOOO. FIQUE AÍ COM SEU PRÉDIO HORROROSO E ENFIE ESSA P* NO C*, SEU MERDAAAAAAAA. Em português.
Pronto. E o universo volta ao seu lugar.
Classe. Coerência. Maturidade.
Depois, o incidente foi seguido de gracejos nacionais – PEDRO, DEVOLVE O MEU CHIIIP – por que eu mereço. No prédio seguinte, o 503 atendeu de primeira e o portão foi aberto sem maiores vexames. E, assim, se encerrou o primeiro dia de estadia na capital russa.
E esse foi o episódio da série não viaje comigo de hoje, amigos. Obrigada pela audiência. Voltem sempre.
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