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Posts Tagged ‘país’

Um país que não tem aeroporto, nem trem, nem cais para aportar. Escondido no fim de uma estrada de dois mil metros de subida sobre granito e gelo até aquele que foi o feudo mais isolado da Europa. Cercada pela Cordilheira dos Pirineus, ninguém chegava até Andorra: foram 800 anos de paz inabalável. Distante demais, difícil demais. Diria Pascal, no século XVII: “As leis que valem para o lado de cá dos Pirineus não valem para o lado de lá”.

Ficou de fora das grandes revoluções. Napoleão não quis conquistar por que o acesso era muito complicado. Não fez parte do Tratado de Versalhes simplesmente por que foi esquecida. Não quis fazer parte da União Européia. Escolheu um idioma oficial diferente de todos os outros países do mundo. Nem sempre compareceu às Olimpíadas. É a nação do vizinho casmurro que prefere não socializar.

Além de distante, devo dizer que este universo paralelo é lindo, gelado e minúsculo. Possui a maior longevidade do mundo – as pessoas vão morrer de quê num lugar desses? Sem presídio, sem exército, no jornal deles nem existe página policial. A nação inteira é menor que a população do bairro onde eu nasci, Brotas, em Salvador. Tem menos gente que um Maracanã. Dá pra imaginar o recenseamento sendo feito por lista de chamada, com o pessoal levantando a mão.

O território é governado por dois príncipes e o antigo parlamento fica num castelo. Há uma lei que padroniza as edificações: são todas de pedra, como nas aldeias ancestrais. No último século, o país se transformou em paraíso fiscal e foi inundado por magnatas – já há limousines estacionando ao lado das carruagens de ovelhas e anúncios de neon sobre as chaminés de barro, existem até ruas inteiras espelhadas com vitrines. Mas, para além deste lampejo de luxo, a nação segue desconhecida e desinteressada pelo resto do mundo. Um feudo medieval com trenós sobre as montanhas de neve, no segundo ponto mais alto do continente, atrás de uma cordilheira de pedra. Bem longe de tudo. Bem perto do céu.

Andorra é um lugar para poucos, tem a aura das coisas raras. Das histórias antigas, dos objetivos inalcançáveis. Tem o charme dos lugares e pessoas difíceis. É o país dos antissociais.

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Outro post sobre o tema aqui.

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Ironicamente, tudo o que eu sei hoje sobre política começou na escola, numa aula sobre as crueldades da ditadura militar. Eu fiquei impressionada. Meu avô foi me buscar no colégio e eu fui logo perguntando sobre onde ele esteve em 64: como eram as passeatas, se ele também correu da polícia, se algum amigo dele tinha desaparecido. Mas meu avô sorriu e explicou que tinha sido um simpatizante dos militares: naquela época, a economia prosperava. O Brasil era o país do futuro. Que tinha sido um tempo bom.

Eu fiquei perplexa como só uma criança poderia ficar.

Meu avô era uma boa pessoa. Ele pensava como a maioria das pessoas da geração dele. Ele não percebeu que a geração dele estava errada.

A gente precisa desconfiar o tempo inteiro de tudo o que é considerado normal pela nossa geração.

Hoje, acho que eu faço política só por quê, daqui a 50 anos, as crianças podem me perguntar se eu participei de algum movimento de vanguarda. Se eu lutei por algo, se perdi amigos. Se eu corri da polícia em alguma passeata. Talvez elas perguntem se eu fiz campanha pela igualdade racial ou aonde eu estava no dia do Orgulho Gay. Podem perguntar se eu também fui chamada de feminazi na internet, se também me mandaram pilotar fogão, se eu conheci o spray pimenta ou se só assisti pela televisão. Vão querer saber se eu fazia coleta seletiva, se andava de bicicleta, se apoiei o movimento antimanicomial, se tive amigos travestis. Talvez questionem se fui contra a criminalização do aborto, se fui doadora de sangue, se apoiei o estado laico, se namorei algum cadeirante. Vão perguntar se eu sabia da escravidão na China, no Estado Islâmico, aonde eu estava nos dias de guerra. Se alguém se tornou meu inimigo por causa disso. Em quem eu votei em 2018.

As crianças vão perguntar por conquistas que parecerão óbvias para a geração delas, mas que não parecem óbvias agora.

É bom estar preparada. Não basta ser uma boa pessoa.

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