Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘platão’

Os bebês enxergam mal. Eu não sabia disso. Quando nascem, eles só enxergam o que está a alguns centímetros de distância. Dizem que é comum que os adultos estejam ansiosos para mostrar o mundo aos recém-nascidos: abrem as janelas da casa, ligam a televisão, vão ao parque mostrar as árvores. E a criança vai olhar a tudo e sorrir, mas ela não está vendo nada. No máximo, vendo você. Ela está rindo da euforia que aquela paisagem causa em você.

A percepção de profundidade chega aos quatro meses. A gradação de cores, aos cinco. Aos oito meses, já dá pra reconhecer alguém do outro lado da sala, mas as ruas, os carros, tudo ainda parece nublado e confuso. Como no Mito da Caverna, de Platão, quando ouve um ruído, o bebê procura o seu rosto para saber o que se passa lá fora. Se o seu olhar for de encantamento, ele vai acreditar num mundo encantador.

Os bebês enxergam mal, mas reconhecem vozes e odores desde a gestação. É a nossa memória mais remota: música e perfume. Enxergar é uma conquista gradativa – num dia, a descoberta fabulosa do formato da própria mão, veja só. No outro, horas de hipnose por um ventilador ligado. De repente, o milagre epifânico de um guarda-roupas aberto: tecidos e estampas e cores inacreditáveis, texturas confusas, uma explosão de informações sem definição que se abre e se fecha miraculosamente. Bebês te olham pedindo explicações. Eles buscam em você legenda para tudo.

Porém, com um ano, a criança passa a enxergar plenamente. E aquele deslumbramento pelo banal vai ficando mais raro. Não sei dizer exatamente quando a gente deixa de se surpreender com o mundo e se torna mais um adulto entediado. Quantas variáveis precisam convergir para que um adulto se sinta eufórico? Houve um tempo em que assistir o ventilador era realmente um programa legal.

Às vezes, penso que só os bebês são felizes. A gente nasce enxergando mal e, quando passamos a ter uma visão plena sobre as coisas, elas começam a ficar desinteressantes. Vai ver a alegria não esteja nas coisas em si. Bebês não podem enxergar as belezas do mundo, precisam encontrá-las na expressão de outra pessoa. Talvez um rosto em festa seja melhor do que a festa. E a vida seja mais bonita pelos olhos dos outros.

Os bebês só enxergam a paisagem de dentro. Cultive em seu olhar um mundo maravilhoso.

Read Full Post »

Platão acreditava que a escrita era uma invenção do Demônio. Como a maioria das pessoas do seu tempo, ele defendia a oralidade e dizia que os homens que aprendessem a escrever certamente perderiam a memória e ficariam dementes. Segundo um estudioso da cultura grega, a sociedade da época dividia a arte em dois status: as Artes da Presença e as Artes da Ausência. As presenciais eram as que exigiam a presença do artista para a sua apreciação – o teatro, a dança, a música – e as artes ligadas à ausência podiam ser conhecidas sem a presença do autor – como a gravura, a escultura e a escrita.

As Artes da Presença eram para os destemidos, os fracos se esconderiam atrás da própria ausência. A oralidade era um mérito por sua exposição. A escrita, uma fuga.

Eu lembro quando Carlos cruzou o limite entre uma coisa e outra, no verão de 1995, no dia da encenação de uma peça grega: Antígona, de Sófocles. Era um dia de festa no colégio, com peças teatrais e famílias na platéia. Carlos faria um dos protagonistas. E ele também tocava piano.

Tocava piano em aulas particulares em casa. E, apesar do teatro, era para o piano que Carlos vivia. Ele me contava por horas sobre as partituras e as escalas cromáticas e sobre como aquelas aulas o faziam esquecer dos problemas de casa: as brigas com o pai, as queixas da mãe, os absurdos do irmão mais velho com quem ele já não falava há três anos, mesmo morando debaixo do mesmo teto. Um tempo antes, no intervalo da escola, Carlos me confessou que era apaixonado pela professora de piano e que nem entendia tanto de música, mas era pra ela que ele estudava. E lia partituras e decorava cifras: para esperar pela próxima aula. Pra fazer bonito pra ela. E que este afeto certamente seria recíproco – se ele não fosse dez anos mais novo que a tal professora.

Se há uma coisa que a gente aprende no colégio, é que todos os nossos colegas têm dores de amor parecidas – dramas, dúvidas, o fim do mundo todos os dias. Mas as narrativas de Carlos eram especialmente interessantes por que incluíam Beethoven, Mozart e Bach. Nenhum de nós imaginou que aquele dia mudaria tudo. Depois da apresentação de teatro, quando as luzes se acenderam, ele não conseguiu disfarçar o susto. Estava o irmão dele, na platéia, de mãos dadas com uma moça. Ela acenava. A moça era a professora de piano.

E tudo desmoronou.

Não falamos sobre isso no dia seguinte e, depois, nunca tocamos no assunto. Nunca soube como as coisas terminaram. Aos treze anos, todo meu conhecimento sobre tragédias gregas era Antígona e a triste história do meu amigo Carlos.

Os anos passaram. E eu adoraria dizer que, depois deste desgosto, ele cresceu, ficou famoso, ganhou o Grammy e voltou para sapatear na cara de todo mundo, mas esse é o problema das histórias reais, tão insensíveis ao nosso lirismo. Carlos largou o teatro e música e se tornou um rapaz inteligente, calado e distraído. Nos anos seguintes, enquanto era eu quem narrava os desmoronamentos da minha vida, a vida dele era um retiro dedicado à leitura. Trocamos muitos livros. Nos tornamos, ambos, jornalistas e fotógrafos. E distraídos.

Ano passado, o encontrei sentado no velho janelão do prédio onde trabalho – Tem um minuto? Precisamos conversar – e ele me falou sobre a profissão, sobre o futuro e eu o ouvia pensando na teoria de Platão, nas Artes da Presença e nas Artes da Ausência. No fato curioso dele ter trocado a música/teatro pela escrita/gravura. E lembrei da professora de piano. Ele já era outro, mais velho, mais esperto, tatuado e com todas as incertezas de quem, como eu, chegou à casa dos trinta sem ganhar um Grammy. Como no colégio, todos os colegas têm dores parecidas – dramas, dúvidas, o fim do mundo todos os dias. Aí, eu falei desse concurso de fotografia. E ele se inscreveu. E venceu o concurso.

Ontem, no meio daquela chuva, enquanto eu dirigia a caminho da exposição, cheguei à conclusão de que talvez a escrita seja mesmo uma invenção do Demônio para apagar o passado. E Carlos havia finalmente apagado o dele. Talvez as pessoas que escrevem percam mesmo a memória e a gravura seja, enfim, uma das Artes da Ausência. Talvez os gregos tenham inventado a fórmula do esquecimento. Era nisso que eu pensava quando cheguei lá. Mas Platão estava errado.

A foto vencedora era a imagem de um piano.

Read Full Post »