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Posts Tagged ‘trabalho’

Hoje, eu estou sem assunto. Digo isso com uma tristeza certamente maior do que a sua, que também deve estar isolado e sem assunto. Por que me dou conta de que não cultivei outras habilidades. Sei que cada pessoa potencializa o que tem de melhor – alguns são belos, outros ricos, outros atletas – e há quem, como eu, não tenha pontuado em nenhum dos gabaritos. Eu aprendi a puxar assunto. Apenas.

Foi uma estratégia típica de qualquer criança gordinha sem maiores atributos para ganhar a afeição dos mais velhos: ser simpática. Eu me equilibrava sobre os silêncios mais constrangedores e podia transformar qualquer diálogo em entretenimento. Cresci sendo convidada para festas de adulto aonde não conhecia ninguém, só para entrar em ação caso o ambiente ficasse chato. Voluntários me levavam para os asilos para alegrar o dia dos residentes. Quando virei professora da faculdade, me chamavam de stand up comedy e ganhei até o crachá de Miss Simpatia no escritório. Se falar bobagem fosse profissão, eu seria presidente do sindicato. Era isso o que eu sabia fazer.

Mas, hoje, eu estou sem assunto.

Sei lá, acho que as notícias terríveis do jornal e a sobrecarga de trabalho andam esvaziando a minha mente. A solidão também. Como assim, meu alecrim dourado? – pode perguntar o leitor confuso, já que eu não fiquei sozinha NEM UM MINUTO em ambiente NENHUM nos últimos anos. Explico. Mentira, não explico. Não sei dizer por que estou me sentindo sozinha. Talvez eu não tenha nada de novo para falar e repetir as mesmas coisas seja o mesmo que ficar calada.

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Estou tendo problemas com isso por que eu vivo de criar conteúdo. Acredite, estou tendo dificuldade até para colocar as crianças para dormir. Faz tempo que eu desisti de ler os clássicos – não sei como explicar como a vovó da Chapeuzinho Vermelho foi arrancada da barriga do lobo vivo sem que tudo pareça sangrento e macabro, a cena dos três porquinhos preparando um caldeirão para escalpelar o lobo também não me parece muito pedagógica – então eu simplesmente contava como foi o meu dia. Contava do meu trabalho, dos meus amigos, contava que eu corri atrás do caminhão de lixo para fazer selfie com os garis, que me emprestaram um patinete para procurar meu carro no estacionamento do shopping. Elas adoravam. Mas acabou. Quando chega a hora da historinha, eu não tenho mais o que falar. Agora eu conto carneirinhos

lentamente

até o número

du

zen

tos. 

.

.

Com algum atraso, estou me dando conta que tinha uma vida até interessante. Repleta de todos os problemas do mundo, menos o tédio. Não há malabarismo cognitivo que preencha uma agenda sem acontecimentos, o que tem para conversar se você não fez nada de doido a semana inteira?

– como vai você?

– bem, e você?

– bem também.

– que bom.

– …

(Silêncio, no hay banda).

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Por fim, o meu diário do confinamento está sendo um fiasco, não passei da décima página, me recuso a ficar narrando que, hoje, fez frio e a roupa do varal não secou. Que eu trabalhei bastante no computador. Que inclusive, hoje, eu até fiz um bolo! 

(Essa parte do bolo foi figurativa. Eu nem sei ligar o forno).

Imagino uma vida paralela, acontecendo em algum lugar. Misturo passado e futuro, um futuro maravilhoso. Inverno de 2023, um dia de chuva em Amã. Uma vida dinâmica, cheia de acontecimentos. As vidraças embaçadas por causa do fumo e da lareira, eu tomando um chá e conversando sobre os mouros, sobre a Greta, sobre a Florbela, ouvindo o moreno narrar sobre Salinger – quem quer flores depois de morto? – sorrindo com 38 dentes brilhantes para mim, todo aquele ambiente de ruas milenares lá fora e uns carros para queimar, por que revoluções não se deflagram sozinhas. Nos jornais, notícias de um mundo melhor acontecendo. Outra xícara de chá, outra pauta despachada. Olha, a chuva parou agora. Pega a mochila. Vamos voltar para a estrada. 

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E, aí, eu faria um bom diário. E trabalharia bastante, solta pelo mundo. Prometo em breve voltar a fazer a única coisa que eu sei fazer. Lamento por hoje, meu amigo, mas eu estou completamente sem assunto.

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A gente se conheceu num quarto de hotel. Foi isso mesmo. Numa viagem a trabalho, sem que eu soubesse, a empresa me alocou no mesmo apartamento que uma desconhecida. Desavisada, a desconhecida abriu a porta e me encontrou sentada na poltrona dela. O tipo da situação que tinha tudo para ser péssima, mas a estranha tinha senso de humor – olá, invasora, eu sou a Jana.

Aquele era o único quarto vazio no único hotel de uma cidadezinha aleatória. Cada uma ocupou uma cama e dividimos muitas histórias durante uma semana. Eu estava cobrindo um evento num acampamento do Movimento Sem Terra, ela era uma indígena convertida aplicando uma pesquisa demográfica. Ficamos amigas quase imediatamente. Ela me acompanhava nas entrevistas, eu ajudava na aplicação dos questionários e a gente terminava a noite na praça. Jana tinha a minha idade, mas parecia muito mais jovem e tranquila. Foi a primeira pessoa no mundo a questionar o número de chaves do meu chaveiro – quantas responsabilidades…

Ela não tinha redes sociais nem celular e, quando a semana acabou, eu imaginei que ia ser difícil manter contato. Mas costumo confiar que o mundo dá um jeito de fazer os bons amigos se reencontrarem. Em outra viagem a trabalho, na Chapada Diamantina, eu estava passando por uma cidadezinha ainda menor e, de repente, vi Jana do outro lado da rua. Nem acreditei. Fiquei tão feliz!Pedi ao motorista que parasse a van, pedi aos colegas que aguardassem um minuto, saltei do carro correndo só para dar um abraço. Ela estava na calçada, encontrando uns rapazes. Quando me viu, eu levantei os dois braços:

– Janaaaaaa!!!

– Oi.

Ela respondeu GELADA. Não sorriu. Não estendeu a mão. Não parecia feliz de me encontrar.

– Tudo bem com você??

Silêncio. Eu não sabia o que dizer. Fiquei sorrindo, sem graça, os amigos dela olhando pra mim. Ainda insisti:

– Que bom ver você, né? Estou de passagem.

– E eu também já vou embora.

Fui me despedindo. Voltei para o carro. Ela sumiu pela outra rua. Eu não entendi nada.

Foi horrível.

No caminho, meus colegas perguntaram se eu tinha me confundido e cumprimentado a pessoa errada. Respondi que sim, que foi um engano. Um doloroso engano. Fiquei calada o resto do trajeto remoendo o incidente e passando por aqueles três estágios que todo paranóico conhece bem: 1) a insegurança: eu disse alguma coisa errada? Será que ela estava chateada comigo? Será que ela mudou? 2) a raiva: custava estender a mão? Tinha necessidade de me dar esse gelo na frente de todo mundo? Então era tudo falsidade o tempo todo?? 3) por fim, a certeza de que EU ESTAVA LOUCA. Senhoras e senhores, saibam que todos os paranóicos do mundo carregam a mesma aflição: achar que inventaram uma relação que nunca existiu. Desconfiam o tempo inteiro que aquela afinidade pode ser uma criação de suas cabeças, uma projeção sem reciprocidade, algo que, para o outro, nem era tão importante assim. Amigos imaginários, quem nunca? Uma dúvida simplesmente a. tor. men. ta. do. ra.

Gente, isso me mata.

Por fim, eu fiquei me sentindo apenas uma otária e esqueci o assunto. A gente cata os próprios caquinhos e segura na mão da dignidade, né? Deixei pra lá. Paciência. A viagem correu bem. No caminho de volta, a equipe inventou de parar exatamente naquela cidadezinha para almoçar e eu sabia que poderia encontrar Jana novamente. Seria péssimo. Seria constrangedor. E é claro que encontrei. Ela me viu e veio correndo me abraçar:

– Amiga, se não fosse você durante aquele assalto! Foi Deus quem te mandou. Eu nem sei como agradecer!

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– Pró, se eu não conseguir apresentar o trabalho Marketing de Entretenimento, acontece o quê? Tipo assim, no dia da dança, se acontecer alguma coisa.
– Não vai acontecer nada, M., vá sentar no seu lugar.
– Mas, tipo, se o disjuntor da faculdade quebrar?
– Alguém conserta ele.
– E se pegar fogo?
– Sei lá, chama os bombeiros.
– Se os bombeiros não chegarem?
– Chama por Deus!
– E se Deus nunca vier???

Boa pergunta. Né? De fato. Você quer que eu te diga exatamente o quê, M.? Você passou o semestre todo dando risada sozinha olhando para o celular. Nada contra. Mas, como te ajudar agora? Eu fico na dúvida. Eu não sei. Essas perguntas difíceis no meio do expediente, eu vou te falar o seguinte: se Deus não vier, a coisa vai complicar, M. Já não está fácil para ninguém. Você não sabe da missa um terço. Problemas diversos, amiguinha. Que nem mesmo incluem entretenimento, dança e bombeiros. Infelizmente. Eu realmente espero que Deus compareça quando convocado por que, nesta altura dos acontecimentos, está difícil pensar num plano B. Sem incêndio nenhum, a coisa já está abafada o suficiente, correto? Dificuldades extremas para manter a programação normal. Então, vamos sentar, assistir aula, sem perguntas metafísicas, ok? O Divino há de dar as caras. Suponho. E o próximo que perguntar alguma coisa está automaticamente reprovado.

Enfim. Só pensei.

Eu estou trabalhando demais. É isso o que eu acho.

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Acho que não é bem isso. Mas é quase isso.

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Hoje eu sonhei com o tempo em que eu trabalhava na agência. Faz tempo. Naquela época, eu tinha uma mesa, uma cadeira, um computador, um salário fixo no fim do mês e anúncios, muitos anúncios para fazer. No começo, eu nem entendia nada daquilo, era menor de idade, eu só queria dinheiro pra ir à praia, gostava de ver meus títulos publicados no jornal, queria diversão. E era divertido.

Depois de sete anos de redação, o ruído do elevador do escritório me causava náusea. Eu odiava tudo aquilo. A porta abrindo, as pessoas entrando, apertando o nono andar e falando de seus carros e vinhos e barcos, por que ninguém fala dos próprios fracassos no elevador da firma. Os mídias com seus crachás no bolso, os produtores com suas piadas fáceis, as moças de atendimento com aquelas calças de terninho esmagando bundas altamente profissionais. E eu. Até o nono andar. Uma eternidade.

Depois, entrar no setor e ligar o computador. E deixar lá, ligado, avisando que eu cheguei, por quê computador ligado é o novo cartão de ponto das empresas. Fazer a social, falar do último Cannes, do último lançamento da Mac, dizer que aquele anúncio do concorrente ficou uma bosta. Comparecer à reunião. Mesa de fórmica. Telão na recepção passando show do Asa de Águia, empresários com crises de meia-idade flertando secretárias com crises financeiras. Sono, sono. E eu pensando: um dia, eu vou embora daqui. Hora do almoço, grupinhos de terno debaixo do sol decidindo o melhor restaurante de comida a quilo: “podem se servir que, hoje, quem paga é o Fernandes”, “nada disso, quem paga é o Almeida”. Aniversariante do mês, champanhe nacional em copo plástico, fatia de bolo no guardanapo. A gente se encontra na premiação, ok? Cambalear no salto alto em cima do tablado, agradecer no microfone ao patrocinador e estender o troféu ao lado do cliente. Bêbado. Trofeuzinho na mesa, tapinha nas costas, meu Deus, um dia eu largo essa merda.

Às vezes, mudar de agência. Três vezes. Quatro. E me sentir no mesmo lugar. Sempre a única mulher do setor de criação, dez homens, onze cadeiras. No começo eles te excluem. Depois, te espionam. Depois, te adotam, te abraçam o tempo todo e te chamam de brother. Briga de sócios na sala do lado, briga de colegas pela vaga do estacionamento, comentário maldoso, hora extra, cafezinho em garrafa térmica, eu gastando toda a minha criatividade-idealista-universitária em anúncios de sabonete. De seguro dentário, de carro esportivo. Frustração. Bocejo. Solidão. Aumento o volume no: in a sky full of people, only some want to fly, is not that crazy, crasy, crasy?, levanto da cadeira, afasto as persianas da janela e olho o mundo atrás da vidraça, céus, eu quero fazer outra coisa. Mas como?

Aí, um dia, acontece. Não assim, de repente, mas acontece. E eu me vejo em outro lugar, fazendo outra coisa, sem o ruído do elevador do escritório. Sem o escritório. Sem mesa de fórmica, sem crachá, sem garrafa térmica. Fazendo muitas outras coisas que, mesmo mais toscas e simples e mal remuneradas, me matam de fome, mas não me matam de tédio. E descubro que elas são duras. Mesmo. Por que entregar jornal na chuva é duro. Por que trabalhar de madrugada é duro. Por que ficar oito horas por dia em pé num balcão é duro, é desumano, é um absurdo. E eu nem imaginava o quanto. Daí, quando chego em casa, eu tiro os sapatos emporcalhados e me jogo no colchão, eu nem penso nisso. Eu durmo pesado, exausta, quase sempre. Mas, hoje, eu sonhei. E sonhei com essas coisas. Com esse tempo. Com a época em que eu tinha uma mesa, uma cadeira, um computador. De quando eu tinha um salário fixo no final do mês. Reuniões, festinha, premiação, tapinha nas costas. Estatuetas ao lado do desktop. Bolo de aniversário no guardanapo, anúncio meu publicado no jornal, essas coisas. De todo o conforto e segurança e rotina ajustada que eu tinha na época em que eu trabalhava para a agência.

E acordei assustada.

– Calma, calma. Foi só um pesadelo.

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