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Posts Tagged ‘vizinhos’

Sempre, na última quinta-feira do mês, oito da noite, um vizinho toca trompete. Vizinho ou vizinha, não sei, nunca vi. Dizem que faz isso há anos, dá pra ouvir de vários lugares, é bonito de acompanhar. Pelo som, desconfio que more a dois ou três quarteirões de mim. Pelo repertório, desconfio que é meu parente. A pessoa toca todas as músicas da minha infância.

(Devo dizer que não são canções infantis. Cresci ouvindo boleros castelhanos nos aniversários, nos natais, nos velórios, meus tios brindam qualquer coisa cantando. Família galega, dada à choradeiras latinas, relevem).

Algumas vezes segui a música pela rua para encontrar a localização exata, quase encontrei. Fico imaginando uma prima perdida tentando se comunicar comigo, mandando um sinal. Esperando que eu entenda. Esperando que eu interfone qualquer dia. 

Durante a quarentena, com as ruas excepcionalmente silenciosas, a apresentação fica mais bonita. O pessoal do meu condomínio escuta das varandas e alguns até batem palmas. Dessa vez, não vai dar para sair para procurar o endereço, mas comprei um vinho e carreguei as baterias do gravador. Vou registrar o som, o volume, o vento. Sou boa em procurar as coisas. Preciso apenas que continue tocando.

Portanto, não desista. Falta pouco, prima. 

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El día que me quieras – Carlos Gardel

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Desde o ano passado, eu tenho ganho muita comida. Fruta, sequilho, lasanha. Ganho de gente que eu mal conheço. Não sei exatamente o motivo do fenômeno, mas suponho que esteja ligado àquele episódio de 2013 (que eu contei aqui) em que eu causei um estouro no microondas.

(Motivo: estava ao telefone entretida em alguma resenha tão aterradora que digitei a minha senha de banco no teclado e o prato foi esquentando e…).

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Enfim.

Na ocasião, achei prudente me apresentar ao síndico me responsabilizando pela explosão, explicando que não sei cozinhar e que aquele microondas era a luz da minha vida, mas que, felizmente, não houve nenhum prejuízo ao condomínio depois daquela Hiroshima toda. E a informação foi repassada aos vizinhos. Não sei com que palavras.

E este foi o início de uma nova era no distante castelo dos Hogwarts.

De repente, eu passei a ganhar bolos. E frango assado. E pão caseiro recheado com uma imoralidade de catupiry. E doces repletos de chocolate belga no seu estado mais endemoniado e eu poderia dizer que sou uma pessoa que tem sorte na vida se não tivesse que conviver, simultaneamente, com o desconforto de tanta popularidade. Desconfiei que meus vizinhos estivessem com pena de mim, uma comoção coletiva, um mutirão em torno da minha cara de cachorro sem dono. Devo ilustrar esta conclusão citando o episódio em que fui comprar frutas lá na rua e o verdureiro, inexplicavelmente, sabia o meu nome e só me ofereceu um abacaxi depois de lavar. E descascar. E fatiar. Em cortar em cubinhos. E finalizar toda a preparação pedindo: minha filha, não se machuque, cuidado com os acidentes domésticos.

Aí essa fama de retardada começou a me irritar um pouco.

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De fato, eu não faço ideia de como se descasca um abacaxi. Estou certa que a empreitada me custaria dois ou três dedos da mão, mas, meus caros, por que tanta preocupação já que A DROGA DA CASA É MINHA E EU ME FACULTO O DIREITO DE EXPLODIR, ESTOURAR E QUEIMAR NA FOGUEIRA DE SATÃ QUANTOS ELETRODOMÉSTICOS EU BEM ENTENDER, POR QUE É TUDO MEEEEU.

Resultado: tomei raiva. Passei a me desapegar daquela mordomia toda. E a distribuir comida. Até por que não dava conta de consumir tudo mesmo, comecei a levar para a agência. Partilhava entre os colegas de trabalho e todo mundo elogiava e me chamava de Ofélia e, curiosamente, ninguém nunca perguntou a receita de nada. NADA. Nunca fui tão popular no escritório.

Aí, enfim, a minha implicância passou. Devo confessar que ainda me irrito um pouco com as demonstrações de misericórdia dos condôminos, mas aceito as ofertas e entendo que a culpa é minha mesmo, sei lá. Me surpreendo com o fato de que é possível ficar muito conhecida, ao mesmo tempo, em dois ambientes próximos, por rótulos exatamente opostos – de vira-latas desnutrida e de super chef gourmet – mesmo que nenhum dos dois seja real. Como definir o que é real?

Imagem pública é um conceito absolutamente abstrato.

Cada vez que me chega outro bolo, eu concluo que eu não entendo mesmo nada de gastronomia. Eu só entendo de publicidade.

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Na volta pra casa, eu passei na farmácia e comprei um protetor labial. E fui experimentando no espelho do elevador, pra ver se prestava. Aí entra uma senhorinha de coque e bengala.

– Boa noite.
– Boa noite.
– …
– …
– As coisas no seu apartamento devem estar animadas.
– Hum?
– Você está passando batom pra chegar.
– …
– Todo mundo que eu conheço passa batom para sair de casa. Você está passando batom para chegar em casa. E hoje é terça-feira. As noites no seu apartamento devem estar animadíssimas, mocinha.
– Eh…
– Juízo, hein? Boa noite.
– Boa noite.

Mariana Miranda, fazendo fama involuntariamente desde 1982.

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