Eu estou esperando pela minha irmã mais velha. Olho a rua pela janela e resisto ao impulso de ligar para alguém no meio da noite só por que estou sozinha em casa. Em dias assim, sou capaz de desorganizar um apartamento como se ele abrigasse mais 38 pessoas: acendo luzes, abro armários, aumento o volume, disfarço solidão com baderna. Me encontrar sozinha em casa é sempre chegar a uma grande festa um minuto depois dela acabar. Faz um tempo que estou só no apartamento – sozinha na cidade, no país, no planeta – minha irmã caçula está morando fora, o outro irmão estudando em Madrid, meu pai no Rio, minha mãe em Istambul – minha casa é um parque de diversões desativado e vazio. E eu não sei lidar com isso. Manejo sem habilidade esse deserto mobiliado.
Talvez por isso, hoje, eu decidi esperar por ela na janela. E, na verdade, eu nem tenho uma irmã mais velha. Sem nenhum motivo aparente (maluco não precisa de motivo), escrevo uma carta para ela avisando que a casa está um bagunça e que eu estou dormindo no tapete desde segunda-feira. Que ela vai se irritar com isso, mas que eu comi todos os biscoitos da dispensa. E que joguei fora papéis, extratos, tanta coisa guardada.
Escrevo, escrevo, escrevo. Carta, bilhete, diário. Tudo por que, talvez, um dia, as minhas memórias venham a simplesmente desaparecer. Aquelas miúdas, que pai e mãe desconhecem. Eu sou a filha mais velha e lembro de cada brinquedo de meus irmãos, do medo de palhaços, das coisas engraçadas que eles fizeram no recreio da escola, mas, sobre a minha primeira infância, como eles iriam saber? Eu preciso contar para que alguém saiba. Do meu amiguinho da creche, do desenho animado, da lancheira que se abriu e derramou tudo no meio da rua. Eu preciso registrar, guardar, documentar – e eu me conto, me escrevo, me narro, me repito. É isso mesmo, meus caros. Se minha irmã mais velha estivesse aqui, eu estaria ocupada em viver e não em escrever essas bobagens.
Eu queria ter alguém que contasse para mim todas as maravilhas e desgraças de ser quem eu sou desde o começo. Alguém que teve tudo o que eu tive, só que um pouco antes – seria tão mais fácil repetir do que abrir caminho. Eu tenho muitos amigos, eu tenho tios e primos, mas a primeira criança de uma casa sempre chega sozinha ao mundo. E, não adianta, eu sou ridiculamente sozinha nessa vida. Minha memória não tem backup. Eu só queria ter essa infância segura em outro coração.
Obviamente, minha irmã mais velha seria mais forte e mais esperta do que eu. Contaria mentiras mirabolantes, histórias de terror com uma lanterna na cara, faria troça dos meus medos. Talvez seja essa a dor de todo primogênito, sem ninguém que lhe proteja, sem ninguém que lhe faça justiça no recreio dos moleques, aos bofetes e pontapés. Quem vai defender o irmão mais velho? Quem vai consolar o irmão mais velho? Eu, que aprendi a brigar e arrancar com os dentes tudo o que me fosse de direito, hoje penso na irmã que não tive e me inclino indefesa como se me faltasse um braço, uma perna, um colo, um ombro. Alguém que me salvasse do mundo cão. Que me pegasse pela mão e me levasse de volta pra casa.
Se ela estivesse aqui agora, eu iria lhe contar como foi o meu dia. Ia dizer que eu ando com o coração apertado, com um pouco de medo da vida adulta, ia perguntar a ela como é a vida adulta. Talvez eu confessasse que, no fundo, meu sangue ainda ferve de amor e ódio pelos mesmos motivos, mas que eu cresci e me tornei uma mulher bacana, que já não resolve os desafetos na porrada. Que aprendi a jogar outros jogos, mas que algumas coisas nunca mudam. E que já sei administrar quase tudo – o dinheiro, a raiva, o tempo, a dúvida. Quase tudo nessa vida. Só não sei mesmo como lidar com essa casa desabitada.
Eu diria isso a ela, se ela estivesse aqui. Se eu tivesse uma irmã mais velha. Sobrou pra você, caro leitor.
Esta é a maroquinha que conheço. Lindo!!
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A fluidez e a naturalidade dos seus textos me emocionam sempre. Ainda mais conhecendo eu este lugar de você fala, do papel solitário de um irmão mais velho. Amei!
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Xô deste blog…esse vai p o livro amiga. Beijocas!
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Ser primogênito não é tarefa fácil mesmo. Acho lindo como vc se expressa bem, vc é me inspira! E como o comentário acima ‘Me emocionei, adorei!’
Sucesso!
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Adorei, Mari. Sempre adoro, mesmo que não comente sempre… MAs dessa vez, bom, adorei porque lembrei um bocado da minha irmã (que por sorte, não é nem mais velha, nem mais nova) e que, nesse momento, infelizmente, não posso esperar pela janela, mas, em breve poderei, e que tem comigo um tanto disso tudo… Dessas coisas boas que se tem mais forte com irmãs… Me emocionei, adorei! Beijo!
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