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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

Eu tenho uma amiga chamada Vânia. Ela é professora de dança em Dubai. Como dançarina profissional, ela viaja o mundo participando de eventos artísticos.

Às vezes, quando eu estava tendo um dia chato no escritório, via nas redes sociais as atualizações do localizador dela: Vânia está em um Congresso Internacional de Dança, em Viena. Ou: Vânia está num Cruzeiro de Aperfeiçoamento Musical, no Mediterrâneo. Ou: Vânia está em um Festival de Cultura, em Seul. E isso me dava alguma paz de espírito – pensar que, em algum lugar, ao menos uma de nós estava tendo um dia interessante.

Vânia foi minha colega no colégio. Ela era a roqueira sexy, de cabelo vermelho, piercing e tatuagem. Eu era a nerd militante, de óculos e camisão xadrez. Nem sei dizer por que a gente se dava tão bem. Combinamos de nunca perder o contato. E nunca perdemos.

Ano passado ela veio passar férias em Salvador e a gente se reencontrou. E foi uma festa. E ela me contou sobre todos os países, todas as baladas, todos os hotéis. Sobre a beleza da dança de cada lugar. Sobre as viagens de aventura. Depois contou também que nem todos os dias eram bons, por que é duro não ser de lugar nenhum. E que, às vezes, quando a solidão parecia esvaziar tudo em volta de sentido, ela buscava por notícias do Brasil pelo computador. E via as fotos da minha casa cheia de velhos amigos. Do meu Natal cheio de tios e primos. E gostava de pensar que, em algum lugar, pelo menos uma de nós estava levando uma vida rodeada de amor.

E a gente se despediu outra vez. Ela disse que me mandaria notícias logo que chegasse em Abu Dhabi. Que me enviaria um postal quando fosse à Manila. E me prometeu um incenso de Amã.

E ver Vânia indo embora me partiu o coração.

A verdade é que o sonho de toda funcionária é ter uma vida de aventura e arte ao redor do mundo, livre da rotina e da mesmice. E o sonho de toda andarilha é ter uma casa com cachorro e velhos amigos abrindo a geladeira.

Ninguém nesse mundo é feliz.

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Eles são jovens, belos e mimados, estão vivendo o auge da popularidade e, em algum momento entre os 20 e os 30 anos, vão tomar alguma decisão por capricho que arruinará suas vidas. Algum contemporâneo não se reconhece nesta descrição? Alguém aqui nunca teve a sensação inevitável de, nos últimos anos, ter morrido na praia? É difícil acreditar que não estamos falando de nós mesmos, hoje, agora: impulsivos, perdidos numa virada de século mal explicada, adiando uma vida adulta que já passou da hora, levando até o fim as obsessões mais desbaratadas.

Pretensiosos. Todos os protagonistas de F. Scott Fitzgerald são assim. O autor descreve os jovens americanos dos anos 20 de uma forma tão mordaz que faz essas teorias recentes sobre a geração Y parecerem um museu de grandes novidades. Toda juventude é antiga: a adolescência tardia, as farras mais ousadas, a euforia por um futuro brilhante que, no final das contas, nunca chega, “Destinados a um daqueles momentos imortais que acontecem de forma tão radiante que sua luz é suficiente para iluminar anos” (1922, p. 125). As ruas ainda estão cheias de Anthonys, Glorias e Amorys irresponsáveis, vivendo de festas, jazz, vazio e amores obcecados. Metade do mundo desaprova. A outra metade morre de inveja.

Os romances de F. Scott Fitzgerald sempre surpreendem, mesmo que, no fundo, todos os protagonistas sejam ele e que todas as protagonistas sejam Zelda, em todos os livros. Mesmo depois da briga e da separação, dela adoecer sozinha na Europa: toda a bibliografia dele reescreve mil vezes a mesma história atormentada, interrompida, “uma presteza romântica como jamais encontrei em qualquer outra pessoa e que, provavelmente, jamais tornarei a encontrar” (1925, p.05). Lamentei quando, no ano passado, divulgaram que a canção do filme O Grande Gatsby foi desclassificada às vésperas do Oscar – ironicamente, morreu na praia. A letra era triste, desesperançada, repetia e repetia:

Você ainda vai me amar
Quando eu não for mais jovem e belo?
Você ainda vai me amar
Quando eu só tiver a minha alma amargurada para ofertar?

Em algum momento, todos aqueles personagens se perguntam isso. Quando a festa termina, quando o dinheiro acaba, quando os anos varrem quase tudo e a decadência se aproxima como se duas pessoas estivessem conversando e, no chão, suas sombras se alongassem uma sobre a outra. O que vai acontecer quando não formos mais jovens e belos? O que acontece depois dos bailes, dos diplomas, das conquistas, das vaidades? Essa pergunta já faz quase cem anos, há cem anos ela espera encadernada sobre a prateleira. Outros jovens vão deixando de ser jovens. E, até hoje, ninguém sabe a resposta exata.

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Artigo publicado no jornal Público, de Portugal. Confira aqui

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Platão acreditava que a escrita era uma invenção do Demônio. Como a maioria das pessoas do seu tempo, ele defendia a oralidade e dizia que os homens que aprendessem a escrever certamente perderiam a memória e ficariam dementes. Segundo um estudioso da cultura grega, a sociedade da época dividia a arte em dois status: as Artes da Presença e as Artes da Ausência. As presenciais eram as que exigiam a presença do artista para a sua apreciação – o teatro, a dança, a música – e as artes ligadas à ausência podiam ser conhecidas sem a presença do autor – como a gravura, a escultura e a escrita.

As Artes da Presença eram para os destemidos, os fracos se esconderiam atrás da própria ausência. A oralidade era um mérito por sua exposição. A escrita, uma fuga.

Eu lembro quando Carlos cruzou o limite entre uma coisa e outra, no verão de 1995, no dia da encenação de uma peça grega: Antígona, de Sófocles. Era um dia de festa no colégio, com peças teatrais e famílias na platéia. Carlos faria um dos protagonistas. E ele também tocava piano.

Tocava piano em aulas particulares em casa. E, apesar do teatro, era para o piano que Carlos vivia. Ele me contava por horas sobre as partituras e as escalas cromáticas e sobre como aquelas aulas o faziam esquecer dos problemas de casa: as brigas com o pai, as queixas da mãe, os absurdos do irmão mais velho com quem ele já não falava há três anos, mesmo morando debaixo do mesmo teto. Um tempo antes, no intervalo da escola, Carlos me confessou que era apaixonado pela professora de piano e que nem entendia tanto de música, mas era pra ela que ele estudava. E lia partituras e decorava cifras: para esperar pela próxima aula. Pra fazer bonito pra ela. E que este afeto certamente seria recíproco – se ele não fosse dez anos mais novo que a tal professora.

Se há uma coisa que a gente aprende no colégio, é que todos os nossos colegas têm dores de amor parecidas – dramas, dúvidas, o fim do mundo todos os dias. Mas as narrativas de Carlos eram especialmente interessantes por que incluíam Beethoven, Mozart e Bach. Nenhum de nós imaginou que aquele dia mudaria tudo. Depois da apresentação de teatro, quando as luzes se acenderam, ele não conseguiu disfarçar o susto. Estava o irmão dele, na platéia, de mãos dadas com uma moça. Ela acenava. A moça era a professora de piano.

E tudo desmoronou.

Não falamos sobre isso no dia seguinte e, depois, nunca tocamos no assunto. Nunca soube como as coisas terminaram. Aos treze anos, todo meu conhecimento sobre tragédias gregas era Antígona e a triste história do meu amigo Carlos.

Os anos passaram. E eu adoraria dizer que, depois deste desgosto, ele cresceu, ficou famoso, ganhou o Grammy e voltou para sapatear na cara de todo mundo, mas esse é o problema das histórias reais, tão insensíveis ao nosso lirismo. Carlos largou o teatro e música e se tornou um rapaz inteligente, calado e distraído. Nos anos seguintes, enquanto era eu quem narrava os desmoronamentos da minha vida, a vida dele era um retiro dedicado à leitura. Trocamos muitos livros. Nos tornamos, ambos, jornalistas e fotógrafos. E distraídos.

Ano passado, o encontrei sentado no velho janelão do prédio onde trabalho – Tem um minuto? Precisamos conversar – e ele me falou sobre a profissão, sobre o futuro e eu o ouvia pensando na teoria de Platão, nas Artes da Presença e nas Artes da Ausência. No fato curioso dele ter trocado a música/teatro pela escrita/gravura. E lembrei da professora de piano. Ele já era outro, mais velho, mais esperto, tatuado e com todas as incertezas de quem, como eu, chegou à casa dos trinta sem ganhar um Grammy. Como no colégio, todos os colegas têm dores parecidas – dramas, dúvidas, o fim do mundo todos os dias. Aí, eu falei desse concurso de fotografia. E ele se inscreveu. E venceu o concurso.

Ontem, no meio daquela chuva, enquanto eu dirigia a caminho da exposição, cheguei à conclusão de que talvez a escrita seja mesmo uma invenção do Demônio para apagar o passado. E Carlos havia finalmente apagado o dele. Talvez as pessoas que escrevem percam mesmo a memória e a gravura seja, enfim, uma das Artes da Ausência. Talvez os gregos tenham inventado a fórmula do esquecimento. Era nisso que eu pensava quando cheguei lá. Mas Platão estava errado.

A foto vencedora era a imagem de um piano.

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A verdade é que é difícil se sentir útil num movimento com um milhão de manifestantes. Concorda? Você sempre fica na dúvida se a sua participação é mesmo relevante quando pensa naquela multidão e olha pra si mesmo – metamorfoseado num monstruoso inseto. É possível que a galera que não foi às ruas tenha se perguntado a mesma coisa – eu sou mesmo necessário? – e que os outros se perguntem o mesmo nos próximos dias, quando as manifestações tiverem cumprido o seu papel e voltarem todos pra casa. Como saber se o movimento teve êxito? Você foi útil?

Sabe, nos três últimos confrontos, meu papel era ficar agachada no chão criando cartazes. Já havia fotógrafos o suficiente, jornalistas o suficiente, enfim. Bombas explodindo, apedrejamentos, o pessoal da área de Saúde atendendo às vítimas, o pessoal do Direito conseguindo as fianças e eu lá, debaixo de um carro com os malditos cartazes. Quando tudo à sua volta está explodindo e pegando fogo, é inevitável que você se pergunte que raios está fazendo ali. Eu corria naquele inferno ridiculamente abraçada a um maço de cartolinas. Quase morri fazendo isso, mas, né?

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Peça decorativa.

Que seja. Pois querem saber o que os manifestantes mais pediam quando solicitavam cartazes?

Eles não pediam slogans de guerra, não queriam heróis. Alguns temas nem eram destinados ao Governo. As pessoas me pediam pra criar frases sobre respeito, igualdade, comportamento, eram mensagens destinadas à você, caro leitor.

Por isso, essa é uma mensagem pra quem, neste importante momento histórico, quer colaborar. Quer saber o que os manifestantes exigem de você? Que seja uma pessoa melhor. Que não fure a fila no trânsito, por que você não é mais especial do que ninguém. Que não ria das piadas homofóbicas que seus amigos contam, elas não têm graça e possuem um efeito mais destrutivo que o de mil skinheads juntos. Não perca o senso crítico diante das técnicas cosméticas para alisar cabelo “duro”. Não faça gato de eletricidade nem se aproveite do dinheiro público. Se não gosta de política, abstenha seu voto, não eleja ninguém de forma irresponsável. Valorize a opinião do seu fisioterapeuta, enfermeiro e nutricionista tanto quanto a do seu médico, todos eles são diplomados. Se você tem uma queixa sobre um produto ou serviço, pare de dar faniquito no balcão e utilize os órgãos formais de denúncia – os funcionários não merecem e seu chilique pode virar algo útil. Não permita que alguns religiosos manipulem a palavra de Deus. Não estacione nas vagas para idosos. Não estacione na vaga para deficientes. Não deixe que nossos jovens gastem tanto tempo em academias de ginástica, eles estão virando uns idiotas. Saiba mais sobre os partidos políticos. Não beba antes de dirigir. Valorize os professores da sua infância. Não aplauda o jornalismo de William Bonner, você não é burro. Não apoie empresas que solicitam currículos com foto. Não cante músicas preconceituosas. Abra espaço no trânsito para as ambulâncias. Não permita que os garçons ignorem todas as damas da mesa para entregar a conta a um homem. Não compre um cachorro se não pode cuidar dele. Proteste contra o Estatuto do Nascituro. Seja respeitoso com quem vier lhe pedir dinheiro, oferecer um panfleto ou fazer telemarketing. Não fraude a carteirinha de estudante. Não fraude o Imposto de Renda. Seja ético quando ninguém estiver olhando. Mude de atitude. Chega de descaso por educação.

Mesmo que você, olhando para aquela multidão, tenha se sentido meio desnecessário, eles estavam falando com você. Por que a verdade é que alguma coisa mudou mas, no final, vai todo mundo voltar mesmo para o Facebook. Ainda insatisfeitos com a corrupção, com a violência, com o preconceito, com a homofobia, com a manipulação, mas vai voltar todo mundo pra casa. No fim das contas, é isso: milhares de manifestantes brasileiros vão retornar mais politizados para suas vidas e para a rede mundial de computadores. E estarão conectados. Todo santo dia.

E eu não consigo imaginar nada mais necessário.

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Numa beira de estrada, debaixo de uma árvore, dois homens estão esperando por Godot. Parados por dias, meio perdidos, sem nem saber exatamente quem é Godot ou o que ele fará, eles discutem, brigam, ficam exaustos e esperam. Esperam, esperam, esperam. E Godot não chega nunca. E a história acaba.

Esse é o roteiro resumido de uma peça famosa de Samuel Beckett: Esperando Godot, de 1952. Não é um roteiro fácil. Quando ele começou a ser encenado, era normal ver as plateias revoltadas: achavam o texto cansativo, sem sentido, alguns saiam do meio da apresentação, outros queriam o ingresso de volta. A maioria não entendia nada.

Aí um grupo de atores resolveu encenar a mesma peça num presídio. E foi aclamado. Durante os aplausos, perguntaram aos detentos se eles haviam mesmo compreendido aquela história tão difícil. E eles disseram: “É claro que a gente entendeu. A gente está o tempo inteiro esperando Godot”.

É isso. Suponho que não haja nada mais frustrante neste mundo do que apresentar uma obra prima para a plateia errada.

Se você tem tv em casa, caro leitor, você viu a confusão. Cada manifestante com um cartaz pedindo uma coisa diferente. A multidão do Rio se desencontrando em direções opostas, o pessoal de Brasília subindo no Planalto e, depois de chegar lá em cima, acenando sem saber o que fazer. Uma desorganização que só deixa claro que, de fato, não existe um mandante ou uma agenda pré-definida para este movimento. Que a coisa toda é espontânea. E desorganizada, graças a Deus.

Outra hipótese para esta falta de unidade pode ser o excesso de opções. Tente decidir entre protestar contra os gastos com a Copa ou o caos nos transportes ou a PEC 37. O preconceito, a pobreza ou a violência policial? Sarney, Lula ou Feliciano? Fica difícil. E ainda mais difícil ouvir Jabor mudando de ideia, pedindo desculpas por criticar os “revoltosos que não valem nem 20 centavos”. Ele costuma mudar de ideia, né? Deve ser duro ser de direita e reacionário num país onde existe memória – ao menos, eletrônica. Nossos jornais já não vão mais enrolar peixe na feira no dia seguinte. Depois de 30 anos chamando manifestante de baderneiro? Democrata de criminoso? E agora?

Em sua coluna na Rede Globo, nós somos os “revolucionários sem causa relevante”. Iguais àqueles da Revolução Francesa, que começaram aquela algazarra toda por causa do preço do pão. Ou da Revolução Russa, que apedrejaram as janelas de uma fábrica por nada. Vândalos. Na Primavera Árabe, tanto barulho por causa de um imposto sobre a venda de frutas na feira, ah, só causas irrelevantes. Numa reportagem da Folha, perguntaram a uma manifestante por que ela fazia parte do protesto. E ela respondeu: “Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui, na verdade”.

Mas você demorou de compreender o nosso movimento. É que ele era meio desorganizado, sem manipulação – depois de duas décadas dentro dos escritórios da Globo, deve ser mesmo difícil entender algo assim. Milagrosamente, ele fez sentido para uns cem mil “desocupados”, “rancorosos”, “caricaturas da caricatura”, “revoltosos que não valem nem 20 centavos”. Gente que trabalha, que é honesta, gente que já passou mais de 500 anos do outro lado do muro, esperando por um Godot que não chega nunca. Gente que não aguenta mais esta elite corrompida nos vendendo mentiras no horário nobre. Gente digna, sabe?

Não, você não sabe. Você não tinha mesmo como entender nada disso. Você era só a plateia errada, Jabor.

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Arnaldo-Jabor

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Minha prima está lendo um poema para mim. Ela está sentada no tapete da sala, numa tarde silenciosa, no apartamento quieto. Minha prima está lendo um poema longo que fala de barcos e mares e lugares distantes, de paisagens que ficam flutuando na sala até o próximo verso de uma história que não tem mais fim. Lá fora faz um dia azul e nada se parece com a tempestade de ontem. Minha prima foi embora de casa no mesmo ano que eu, também andou por horizontes tão distantes quanto os meus e também voltou para o tapete da sala como um gato volta para os pés do dono. E a gente se reencontrou. O poema que ela está lendo fala de uma busca remota e impossível e, se estivéssemos a quinze anos atrás, minha prima viraria a página para continuar lendo a história. Agora, ela desliza o texto por uma tela. Algumas coisas mudaram. Mas quase tudo está do jeito que a gente deixou.

Minha prima usa um vestido longo, um tom de voz familiar – ela tem o meu sangue e o meu sobrenome. E ela ainda lê poemas pra mim naquela sala mais que conhecida. Um dia, se alguém me perguntasse qual o meu conceito para a palavra “herança”, eu me lembraria da estante daquela sala. Eu, ela e os nossos primos lemos os livros daquela mesma estante. No início: Branca de Neve, O Pequeno Príncipe, O Sítio do Pica-Pau Amarelo. Anos depois: A Moreninha, Capitães de Areia, Noite na Taverna. Por fim, o legado adulto: Os Sertões, Casa Grande e Senzala, Este Lado do Paraíso, Reserve-me a Última Valsa.

Acredito que poucas coisas na vida se equivalem a ter sido jovem junto a alguém – e talvez seja esse o segredo dos consanguíneos, o passado repartido, vibrando e doendo nas mesmas fotografias. Ter um primo é como ter um irmão vivendo em outra casa, com outros pais e outros brinquedos, só pra te contar como seria a sua vida se você não tivesse nascido você. É ver o seu igual crescendo do outro lado do muro. É ter sempre alguém pronto pra te lembrar que você não era tão feio/bonito/brilhante/sozinho quanto você pensa que era.

Eu sou uma pessoa falante, eu tenho colegas e amigos, mas sempre que preciso conversar com alguém sobre as minhas dúvidas, sobre as minhas questões mais pessoais, me vejo tendo de atualizá-los dos últimos trinta anos da minha existência. Sinto falta deste elo mais antigo. De não ter que explicar por que eu prefiro mousse, por que este apelido, por que aquela igreja ou por que aquela música. Um dia, ela toca no rádio. A gente se entreolha. E o universo volta ao seu lugar.

Minha prima está lendo agora um poema tão infinitamente bonito que eu fico pensando em qual vai ser o futuro da gente. E eu não sei o que vai acontecer. Se cada uma vai embora para outra terra distante, se nossos filhos vão se conhecer, se o vento vai soprar para tantas outras direções num mundo tão grande e tão complicado. Na matemática, os números primos são aqueles que estão relativamente próximos, mesmo não estando lado a lado. Passo a mão pelo tapete, num gesto involuntário. Como se segurasse o chão. Para ele não me escapar.

Ela acaba de ler o texto sobre barcos e mares e lugares longínquos. E levanta os olhos e sorri. Minha prima não me pergunta se eu gostei do poema ou se eu não gostei ou se entendi. Por um minuto, na tarde quieta, eu penso nesta dádiva que a gente ganha antes mesmo de saber para que serve. E peço a Deus pelos meus primos, que são tão doces e tão jovens e estão tão perdidos quanto eu sempre que saem por aquela porta. E torço pra que a gente não se disperse, para que a gente se reencontre sempre um no outro. No outro, uma porta de emergência. No outro, um caminho pra casa. Nas fotografias, nos nossos livros em comum. No Sítio do Pica-Pau e na Casa Grande. Nos Sertões e na Taverna. Em qualquer Lado do Paraíso. Até a nossa Última Valsa.

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Hoje, ao chegar em casa e abrir o meu armário, felizmente, reencontrei o meu guarda-chuva. Achei que tinha perdido. E já estava supondo que, a esta hora, ele estaria esquecido debaixo de alguma mesa de bar, seguindo sozinho num taxi ou sendo gentilmente oferecido por um manobrista para o dono errado. Por sorte, ele estava bem aqui, entre os livros da última prateleira. E, como disse, foi mesmo bom encontrá-lo de novo.

Esse guarda-chuva foi comprado numa viagem, na última que fiz, para a Turquia. Uma odisseia meio improvisada, com direito à mochila, estrada, graus negativos e gente inusitada. Não faltaram pratos exóticos pegando fogo, jipes atolados, dromedários em fuga e aviões perdidos. E noites dormidas no chão. Molhado. De uma caverna. Um passeio com aventura o suficiente para me fazer questionar a veracidade dos filmes de aventura – onde, necessariamente, tudo sempre dá certo e, no intervalo, ainda se pode levantar do sofá para buscar mais pipoca.

Logo no início da viagem, quando ainda estávamos decidindo entre enfrentar um nevoeiro em Éfesos ou a ressaca do Bósforo ou um levante armado em Akcakale, começou a chover. Era uma tromba d’água. Todos os outros casais correram para debaixo das marquises e nós entramos numa loja de guarda-chuvas. Havia dezenas na vitrine. De todos os tipos. Agarrei um de plástico incolor, sem estampa, só por que me pareceu familiar. Talvez por causa daqueles versos infantis sobre “uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada” ou dos provérbios antigos em que “só não joga pedra quem tem telhado de vidro”. Talvez estivéssemos protegidos sob aquela coisa transparente, como se protege um objeto frágil com plástico bolha. Enfim, deu-se a compra do guarda-chuva e fomos embora.

Nos dias seguintes, o roteiro foi dividido entre escaladas sobre-humanas, cidades subterrâneas claustrofóbicas, deslizamentos de terra e balões aterrissando desgovernados, derrapando na grama e arremessando os passageiros no chão. Quer transformar a sua viagem romântica numa saga de suspense selvagem? Pergunte-me como. Já no meio da peregrinação, houve uma noite em que nos perdemos. Plena madrugada, alto da montanha, nenhuma comida e aí começou a chover. Um frio de encolher catedrais. E, talvez por que não houvesse mesmo mais nada a fazer naquela hora dramática – céu fechado, nuvens de chumbo, trombetas anunciando o Apocalipse – eu desisti de procurar o caminho certo e abri o guarda-chuva. Mas aquilo não era chuva. Era neve branca.

Foi uma surpresa bonita. Nunca tínhamos visto neve. E seria impossível perceber se a cobertura não fosse transparente. Sentamos ali mesmo, no alto daquela pedra, pra ver o plástico ir ficando alvo. Em silêncio. Encostados um no outro. Com aquela paisagem lunar brilhando lá embaixo.

Isso já faz algum tempo e, mesmo assim, tantos meses e quilômetros depois, eu gostava de reencontrar o velho guarda-chuva no armário. Ele me fazia lembrar daquela noite, da neve, daquele instante em que eu percebi que tinha feito a escolha certa. Foi bom saber que o meu guarda-chuva não estava rodando sozinho num banco de taxi, que não se perdeu, que sempre esteve ali. No fundo, é estranho pensar que a maioria das nossas coisas – pedacinhos nossos, partes da nossa vida – podem simplesmente se dissipar no meio do caminho. Que quase tudo está de passagem. Mas o que tem que ficar, fica.

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Chega um momento na vida em que você descobre que ficou velho demais para ser pobre. Um dia, você descobre – e esse momento chega pra todo mundo. Mas como ter certeza? Ou você amarga uma restrição orçamentária franciscana ou enfrenta os limites da senilidade. Ou velho ou pobre. Não se pode ter tudo nessa vida.

Esta escolha, este rito de passagem, pode acontecer com o auxílio de uma entidade turística conhecida como “albergue”. Albergue é uma espécie de estabelecimento hoteleiro tosco e de baixíssimo custo, você já deve ter ouvido falar. Sei de peregrinos que viajaram o mundo inteiro em busca desta resposta – e só a encontraram com a ajuda de um albergue. Ah, um albergue. Nunca duvide do poder revelador de um albergue.

Você se hospeda lá e descobre. Desvenda, de repente: meu Deus, meu Deus, como eu estou velho.

Um dia, no albergue, você acorda e descobre que ficou velho demais para subir os cinco andares de escada com sua mala, sua comida e seus pertences de viagem. E percebe que está cansado demais para carregar os baldes de água do seu próprio banho. Que está moído demais para lavar, no tanque, o seu próprio edredom. Idoso demais para, depois disso tudo, ainda ousar fazer turismo.

Mas as evidências do passar dos anos não se encerram apenas no esgotamento físico, envelhecer é uma experiência completa, é um estado de corpo e de espírito. Velho gosta é de RECLAMAR! Devemos citar, é claro, a nossa rabugice emergente que revela-se no interior destes estabelecimentos quando as portas não fecham, quando as janelas não abrem, quando nada funciona. E o nosso descontrole emocional frente aos banheiros compartilhados, os corredores lotados, os adolescentes bêbados, os rádios ligados todos ao mesmo tempo quando tudo o que você queria, depois de uma longa viagem, era o benefício, o luxo, a dádiva de uma noite de sono para que seu corpo descanse (em paz).

Ah, dormir! Na sua casa você era feliz e não sabia, certo? Errado. Na sua casa você apenas desconhecia a sua verdadeira idade. Acredite, houve um tempo em que nada disso te incomodaria. Hoje, essa verdade emerge como uma força vulcânica e você descobre que, sim, dormir no chão é ofício para os jovens! – essa raça longínqua, esse animal selvagem. Qualquer pessoa com mais de 12 anos de idade sabe que deitar naquele tatame é um ato bárbaro, uma transgressão, uma violência contra as vértebras da sua espécie – homo sapiens no topo da cadeia evolutiva, ereto, inteligente e reumático. Há séculos a sua permanência neste planeta precede a existência de um alfabeto, de uma constituição e, pasmem, de um colchão. De mola. Ortopédico! Não sei aonde está a Organização Mundial de Saúde que não vê isso.

Mas albergue não é só anatomia, é também geopolítica! É o pleno exercício da democracia: tem fila pra tudo. Fila tomar banho, fila para lavar a roupa, pra acessar a internet e pra escovar os dentes num balde. E democracia é liberdade de expressão: também tem briga, tem faxina rotativa, tem festa estranha, tem seringas no chão, tem corredor interrompido por que os muçulmanos estão de joelhos rezando para Alá. Vai ter indiano horrorizado se você tentar comer um hambúrguer e judeu horrorizado se você ousar comer um hot dog. Isso é cozinha comunitária: as pessoas fazem auditoria sobre a sua comida e ainda consomem o iogurte que você guardou na geladeira, consomem o queijo que você guardou na geladeira, consomem até o salmão que custou TRINTA E CINCO DINHEIROS e que você CAMUFLOU SOB FOLHAS DE ALFACE na maldita geladeira – sem o mais longínquo constrangimento, afinal, somos todos milionários.

Já falei que velho adora reclamar?

E ainda há os banheiros. Na maioria dos albergues, as instalações sanitárias são antigas. Mais exatamente da Roma Antiga. As rachaduras são do tempo de Nero, os vazamentos do tempo de Augusto, os vasos sanitários foram moldados ao gosto dos doze Cézares. Quanta honra. Melhor do que isso, só se o estabelecimento promovesse orgias públicas e leões engolindo cristãos – procedimentos que, devemos concordar, nos criariam problemas conjugais e de Direitos Humanos, contentemo-nos com menos. Vasos sanitários épicos já são o máximo e qualquer albergue é mesmo assim, é puro aprendizado. É arte, é história, é desapego. É o neo socialismo hippie compulsório. É a sociedade alternativa de baixo orçamento. É puro amoooooor.

Como não ansiar pela presença reveladora dos albergues na minha vida?

Então: se você também procura por essa resposta dentro do seu coração, experimente. Oportunize ao seu corpo descobrir a idade da sua alma, permita à sua alma descobrir a idade dos seus joelhos, das suas vértebras, da sua lombar. Viagem é pesquisa, é autoconhecimento: eu estou velho demais para ser pobre ou estou pobre demais para ser velho? Sem dúvidas, este é um momento de decisão. Ou velho ou pobre. Não se pode ter tudo nessa vida.

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Eu estava numa banca de revistas próxima de casa, num fim de tarde ocioso, quando ouvi uma conversa inusitada. Vi o dono da banca cumprimentando um velhinho que passava do outro lado da rua, enquanto uma cliente sorriu para o revisteiro:

– Vejo que também o conhece.
– Há mais de 15 anos, minha senhora!
– E aonde será que ele está indo hoje?
– Ao cemitério. Todos os dias, no mesmo horário.
– Ah…

Ela não perguntou o porquê, nem ele prosseguiu explicando e a conversa se encerrou aí. Eu não entendi nada. Fiquei ali, olhando de longe o senhorzinho miúdo, magrinho, de bermuda e boné, andando até o fim da rua. Todo dia esse cara vai ao cemitério? Meu Deus, pra fazer o quê??

Aquele senhor devia ter uns 70 anos de idade, pensei. Não seria funcionário de lá. Talvez tivesse perdido amigos, parentes ou fosse viúvo. Mas ir ao Jardim da Saudade todos os dias era estranhíssimo. Se fosse viúvo, não estaria agora ocupado com os netos? Intuí que nenhuma pessoa que tivesse levado uma vida conjugal saudável se comportaria daquela maneira moribunda, se infiltrando entre as lápides com tanta insistência. Talvez estivesse meio caduco. Mesmo parecendo tão disposto, a gente nunca sabe. Ele foi andando, andando, até dobrar a esquina. E sumir.

Pensei. Decidi. Fui atrás do velho.

Eu sei, caro leitor, que isso deve lhe parecer ridículo – você questionará, sem dúvidas e com toda razão. Mas, quem pode negar que a curiosidade humana é capaz de bobagens inconfessáveis? Na ocasião, lá estava eu, naquele fim de tarde, seguindo o estranho vovô do cemitério. Que tipo de maluco seria aquele? Nem conseguia imaginar que tipo de culpa, dor, intenção arrastava aquela criatura para lá todo santo dia. No túmulo que ele visitasse certamente haveria uma pista. Todo obcecado tem uma história para contar. Conheço várias. Me lembrei, por exemplo, de um livro que havia lido, o “Museu da Inocência”, do Orhan Pamuk. Era a história de um turco que se apaixonava por uma prima distante e, depois que ela se casava com outro, ele passava a vida inteira colhendo vestígios da moça pela cidade – bilhetes, brincos, guardanapos – para montar um museu. Assim como o velho, o turco também repetia o mesmo gesto todos os dias. Incansável. Detalhe: o museu foi montado de verdade e o autor ganhou até o prêmio Nobel. Bem, a literatura não é muito mais absurda que a vida à nossa volta, cabe reconhecer.

Mas, voltando às ruas de Brotas: lá estava eu seguindo o nosso anônimo devotado. No caminho, essa história do turco me lembrou a de um outro romance – Dom Quixote, que também se apaixona pela prima e passa o resto da vida meio obcecado. Mentalmente, batizei o velho de “Dom Quixote de la Tumba”, morrendo de pena dele. O andar apressado, as perninhas magras dentro da bermuda, coitado do vovô. Devia ser sozinho neste mundo. Aprisionado ao passado, incapaz de fazer novos laços e de tocar a vida para frente. Conversando com uma lápide por anos a fio, pobre Dom Quixote. Fiel. Teimoso. Atormentado. Doido, doido, doido.

Assim, ele foi entrando pelo portão de ferro e eu esperei do lado de fora. Sentou num banco em frente ao imenso gramado, olhou o horizonte, os túmulos, o céu, a pista deserta. Amarrou os cadarços do tênis. Levantou. E começou a correr.

O velho ia ao cemitério para fazer cooper.

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E, por fim, ela me disse que achou a cidade feia. Feia? Feia. Eu não soube o que responder. Aquilo me surpreendeu como se fosse um tapa, como se tivessem ofendido à uma mãe ou a uma irmã – como assim feia? Quase comecei uma defesa contrariada, por que aquela opinião me parecia absurda, mas então olhei novamente para as fotos de viagem dela, que mostravam um cruzamento do centro antigo, aquelas ruas que eu amava e, como se o afeto fosse mesmo uma cegueira burra e passageira, pude reparar agora na imagem do lixo nas ruas e até mesmo em alguns pedintes mais ao fundo, como se a pobreza fosse um elemento novo na paisagem, encaixado discretamente entre uma casa e outra, entre uma praça e um parque – e, sim, aquilo podia ser considerado feio. A pobreza. Principalmente, se relacionada a tantas outras capitais ricas que tanta gente já conhece e fica difícil evitar comparações. Em nenhuma das fotos anteriores eu havia reparado nisso. A gente só vê com o coração.

E a conversa perdeu a graça e tudo o que eu queria agora era ir embora para casa, arranjei uma desculpa para me recolher ridiculamente ofendida – feio é o resto do mundo, ia pensando. Mas a verdade é que, nas fotos, a cidade brilhava menos que na lembrança e, de repente, me deu vontade de ir até lá e me deu medo de ir até lá. Lembrei de uma frase de Machado: “As coisas valem pelas ideias que nos sugerem”.

Que seja. Talvez se ame mais a um lugar pelo que se viveu nele do que por suas características e, às pessoas, mais pelo que nos fazem sentir e menos pelo que são, objetivamente. E a verdade é que Lisboa, antes de materializar-se num chão de aeroporto, já era um amontoado de símbolos dispersos no meu imaginário – era o último cais para as Américas, era a “praia ocidental” de Camões, era o solo selado com óleo de baleia das histórias de meu avô. E eu já a amava. O estrago já estava feito.

E, depois, os dias de juventude e intensidade vividos lá transformariam mesmo qualquer endereço num ponto dourado do meu mapa pessoal. Podia ser qualquer lugar. Mesmo hoje, quase dois anos depois, ainda me pego falando de determinada esquina, fazendo comentários sem motivo sobre algum edifício e me assombrando com o fato de já não lembrar o nome de uma rua secundária, de uma taberna ou de uma loja de bairro. Mas eu falo muito sobre Lisboa. E a verdade é que não faltam curiosos ocasionais dispostos a ouvir sobre as suas escadarias intermináveis, sobre os seus cafés subterrâneos, sobre suas casas mais velhas do que os mais velhos seres e elementos sobre a terra e sob as águas.

Lisboa é assunto meu. E é certo que, hoje, as minhas narrativas são verdadeiras. Tudo o que falo é constatável por qualquer um, mas algo me diz que, por força do tempo ou por uma predisposição natural ao eufemismo e à hipérbole, talvez, um dia, estas minhas histórias se modifiquem. Especialmente na velhice, quando falta-nos testemunhas e sobra-nos imaginação, o fato é que já me vejo numa grande cadeira de balanço contando longamente sobre a cidade fabulosa que marcou os dias da minha juventude.

Talvez os filhos perguntem pelas avenidas, talvez os netos perguntem pelos parques d’água e será um prazer acrescentar metros à muralha dos Mouros, quilômetros à estrada de Algés e torres gigantescas ao Castelo de São Jorge. Mentindo descaradamente, já me vejo derramando adjetivos sobre as águas profundíssimas do Tejo, sobre as cúpulas de mármore do Paço, sobre os labirintos encantados de Alfama. Falando de uma cidade linda. Linda. Por que essa foi a cidade que eu conheci.

Só me dói um pouco pensar que, fatalmente, ao visitarem Lisboa, eles ficarão decepcionados. E vão descobrir que nada disso é real. Talvez, então, eu atenue dizendo que, no meu tempo, era tudo diferente, que a cidade mudou. Ou, sorrindo, confesse que, nessa vida, as coisas só valem mesmo pelas ideias que nos sugerem.

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