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Só mais esse

Resistir é cansativo. Por que resistir é todo dia. Não conheço imagem que ilustre melhor a exaustão da resistência que a de um trecho de Bukowski em que ele está falido e arranja trabalho num frigorífico. O serviço consistia em descarregar caminhões repletos de novilhos cortados ao meio para armazená-los do outro lado do pátio. Ele coloca metade de um novilho nas costas e leva até lá. É pesado, é difícil. Ele fica pensando: “Ah, meu deus do céu, que fim levaram as noites suaves e tranquilas? Por que isso não acontece ao Walter Winchell, que acredita piamente no Sistema Americano? Não fui um dos mais brilhantes alunos de Antropologia? O que foi que houve?”. Depois volta e carrega mais outro. E mais outro. As costas machucadas, as pernas fracas, ele dizendo para si mesmo – só mais esse. Como se cada novilho carregado fosse o último – só mais esse. A noite caindo – só mais esse.

Se resistir é cansativo, então seria de se esperar que seu antônimo – desistir – fosse um conceito revigorante e bem-disposto, mas quase nunca é. A ideia de desistir chutando um balde metafórico numa revanche redentora é, sem dúvidas, uma ideia adolescente, acredito que a chance disso acontecer seja sempre inversamente proporcional à idade do sujeito. Adultos desistem por abandono. Adultos estão simplesmente exaustos.

Abandonam a vontade de mudar as coisas. Se abandonam numa rotina mediana, no sofá, em frente à tv. Lembro que, no livro As Virgens Suicidas (1993), o ato de se abandonar não acontece de repente, mas num esvaziamento lento. O cotidiano da protagonista vai se distanciando dela, como quem assiste ao filme da própria vida, seu próprio quarto vai parecendo irreal e mesmo os conselhos das pessoas queridas preocupadas com a sua saúde soam como vozes que se escuta debaixo d’água, um zumbido que se afasta até mergulhar no silêncio total.

O cansaço confunde as coisas. Cansaço é não querer ouvir explicação para mais nada, é perder a paciência com o mundo. É querer que o tempo passe rápido, é ter vontade de ir embora para um lugar que nem existe. Suas portas emperram, suas rodas travam, seu corpo inteiro é feito de areia movediça, novas manchetes se atulham no corredor da existência, quem segura essa avalanche de notícia ruim? No fundo, ninguém está bem. Reconheço de longe os olhos baixos de quem pensa em desistir. No fim das contas, você não perdeu a fé. Você está apenas exausto.

No conto do Bukowski, ele subitamente deixa o emprego. Pede demissão jogando tudo para cima, nega o patrão, nega aquela comunidade doentia e o sistema econômico do país inteiro – dessa maneira explosiva que todos nós gostaríamos, é uma delícia de ler. Da poltrona, a gente vira a página com um meio sorriso. Bukowski não tinha nada a perder. Ele é completamente irreal.

Dizem que as utopias não morrem nas guerras, elas definham por um lento desinteresse. Reconheço no espelho os olhos de quem pensa em desistir. A realidade é pesada, a resistência é um pátio largo. A cada novo dia, eu penso.

Meu Deus.

Só mais esse.

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@Sulains

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“Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”

(pág. 16-17)

“Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, por que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui?”

(pág. 58)

“O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação. Quando se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. Todas as histórias antigas chamam a terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem da deusa grega da prosperidade, que tem a cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe essa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.”

(pág. 60-61)

“Não tem fim de mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um mundo do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo. Isso é um abismo, uma queda. Então a pergunta a fazer seria: “Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?”.

(pág. 62)

“(…) no ciclo das navegações, quando se deram as saídas daqui para a Ásia, a África e a América -, é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação para eliminar aqueles povos. O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era um peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI.”

(pág. 70-71)

“(…) na frase célebre de Lévi-Stauss, “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

(pág. 84)

(Ailton Krenak / Ideias para adiar o fim do mundo, 2019)

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“Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração.”

(pág. 100)          

“Nessa horas eu, que tomei raiva de homem, que nunca mais quis deitar ou casar com homem, talvez deitasse de novo só para ter filhos, para ter com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez lhes desse uma pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da chuva, ou roído de traças, para que lessem e pudessem entender do que somos feitos.”

(pág. 170-171)

“Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, dos sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, de desagradar, medo de existir. Medo que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, da sua cor.” 

(pág. 178)

(Itamar Vieira Júnior \ Torto Arado)

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“Raramente penso em ti.
Teu destino pouco me interessa.

Mas de minha alma ainda não se apagou
o brevíssimo encontro que tivemos.

Evito, de propósito, tua casinha vermelha,
tua casinha vermelha junto ao rio lamacento;
mas bem sei com que amargura
perturbo a tua ensolarada quietude.

Embora não te tenhas inclinado sobre mim
suplicando-me que te amasse,
embora não tenhas imortalizado
o meu desejo em versos dourados,
secretamente lanço encantamentos para o futuro,
sempre que as noites são de um azul profundo,
e tenho a premonição de um segundo encontro,
um inevitável segundo encontro contigo.”

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(da russa Anna Akhmátova, no poema “Raramente Penso em Ti”, de 1913, tradução de Lauro Machado Coelho)

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“Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotógrafa-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotógrafa-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos dos pais um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável.” (pg. 46)

“Com a máquina fotográfica pendurada no pescoço, afundado numa poltrona, disparava compulsivamente com o olhar no vazio. Fotografava a ausência de Bice.” (pg. 56)

“Quem entende os deuses? – disse a mulher.” (pg. 111)

“Percebo que ao correr para Y o que mais desejo não é encontrar Y ao fim da minha corrida: quero que seja Y que esteja correndo para mim, esta é a resposta que preciso, ou seja, preciso que ela saiba que estou correndo para ela, mas ao mesmo tempo, preciso saber que ela está correndo para mim.”  (pg. 126-127)

“…essa cozinha era ainda mais maltratada que o meu quarto: o encerado da mesa gasto e manchado, xícaras sujas em cima do aparador, os ladrilhos desconjuntados e enegrecidos. E eu ficava sem voz, por que entendia que a cozinha era o único lugar da casa inteira onde aquela mulher realmente vivia, e o resto, as salas enfeitadas e continuamente varridas e enceradas eram uma espécie de obra de arte na qual ela derramava todos os seus sonhos de beleza, e para cultivar a perfeição daquelas salas se condena a não viver nelas, a nunca entrar nelas como dona da casa mas só como faxineira, e a passar o resto do dia no meio da gordura e da poeira.” (pg. 180)

“Eu a amava, em suma. E era infeliz. Mas como poderia ela algum dia entender essa minha infelicidade? Há aqueles que se condenam ao cinzento da vida mais medíocre por que tiveram alguma dor, alguma desgraça; mas há também aqueles que o fazem por que tiveram mais sorte do que podiam suportar.” (pg. 190)

“Será que os santos mudariam de vida se soubessem que o paraíso não existe?” (pg. 212)

(Ítalo Calvino/ Os Amores Difíceis, 1970)

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(Ana Martins Marques / O Livro das Semelhanças)

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