Subi um segundo antes do motorista arrancar e ainda senti o sopro da porta fechando nas minhas costas, o cobrador olhando, eu estendendo uma nota amassada de dois reais. Pensei que ele diria algo, e ele disse, mas eu estava com fones de ouvido, só havia o Renato Russo com sua voz pesada, mudaram as estações, nada mudou. Sentei no último banco, o cobrador ainda perguntando algo, qualquer coisa do tipo alguém troca dez reais ou alguém tem horas aí ou alguém perdeu um chaveiro, um burburinho vai se formando nos bancos da frente, meus olhos de paisagem acompanhando a tudo como num cinema mudo, o Renato insistindo, está tudo assim, tão diferente. Encosto a cabeça na vidraça, suor, calor, poeira, vento na cara. Abraçado à mochila vou lembrando, esse lugar, qual foi mesmo a última vez em que estive aqui? Quando chegar em casa vou fazer um suco e tomar um banho e abrir as janelas, esse verão abafado – fui pensando assim, dispersivo, calado, inconclusivo, rastejando os olhos por aquelas ruas de latas de lixo viradas, calçadas gastas, muros riscados, o ônibus sacolejando e o cobrador entregando o tal chaveiro a um dos passageiros enquanto um senhor de barba branca, tipo um Papai Noel magrinho, começa um discurso no corredor, fico quieto, olhando pra ele, talvez seja um evangélico citando trechos terríveis do Apocalipse ou seja alguém que pede esmola para os treze netinhos carentes que moram lá em Itapetinga ou um hare krishna vendendo incensos e balas de gengibre, eu não posso escutar, mas, agora, olhando bem – olhando bem, meu Deus, ele está cantando.
A canção dele também é triste, todos baixam os olhos. Sem ouvir, imagino rimas, adivinho versos, o pra sempre sempre acaba. A mochila contra o peito, o sol na cabeça, confiro o celular, nenhuma chamada perdida. E é nessa hora, dobrando a última avenida, num calor amazônico de 35 graus que eu passo os dedos sobre o teclado do telefone como um cego procurando a luz em braile e penso e sofro e mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está, por pouco, por muito pouco, não digito o seu número de repente e ligo pra perguntar qualquer coisa boba, besta, banal, qualquer coisa do tipo – tudo bem ou como vai você?
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Por Enquanto
Posted in raspas e restos (crônicas), tagged crônica, legião urbana, mariana miranda, por enquanto on novembro 20, 2008| 1 Comment »
Luxo
Posted in moleskine, raspas e restos (crônicas), tagged conto, crônica, luxo, mariana miranda, texto, vestido, vitrine on fevereiro 26, 2008| 7 Comments »
Não que fosse consumista. Muito pelo contrário: a família do interior nunca lhe incutira devaneios econômicos, só um pouco distinção no vestir e pronto. “Por que uma aparência bem cuidada é sinal de respeito”, diziam. Nunca esquecera. Sapatos limpos, meias alvas, unhas curtas, tudo nela era tão natural que tinha sua graça, o charme tímido da cara lavada sem malícia. E era fácil ser assim, simples. Até conhecer o vestido da vitrine.
Um luxo. Um luxo antes só imaginado, por que, naquela época, roupas assim não circulavam na cidade de onde veio, só existiam em ilustrações de contos infantis. Cinderela, talvez. Traje de gala dourado, longo, suntuoso, exuberante demais para a vida real. Ou para a vida dela. Aquela peça era seu oposto extremo, seu antônimo, seu convexo. Era a outra metade.
Reinando sozinho na vitrine, devia ser caríssimo, pensou. E era. Quanto do seu ordenado? Calculou só por curiosidade: metade do aluguel ou metade da mensalidade ou o custo das compras de supermercado e da conta de energia somados. Tudo por um vestido? Absurdo, absurdo, resmungou baixinho, quem daria isso tudo por uma roupa? Absurdo. Refez o cálculo, afinal, ele tinha saias sobrepostas, majestoso em tudo. Onde usaria um traje desses? Como ela mesma, sua rotina era simples. Não precisava de tanto. Ou precisava? Talvez fosse um caro possível, poderia dividir o pagamento – relativizou sem segurança, procurando outros parâmetros. Sim, poderia fazer aquela compra, com algum sacrifício. Mas, a troco de quê? Era custo demais por um vestido esplendoroso demais. Tudo nele era demais para aquela mulher sem excessos. Encolheu-se, resignada. Deixou a loja, tomou a rua. Dissipou-se.
Na volta pra casa, a chuva rala de um inverno urbano, cinza, cinza. O guarda-chuva preto, as botas de borracha. O asfalto, o cimento, os edifícios de concreto, o cair da noite escura. Um mundo opaco – como nunca havia notado. Da janela, ruminou sozinha pensamentos dispersos: seu quarto apagado. Depois, o desbotado do quarto ofuscado pelo dourado do vestido. Depois, tudo mais que ele traria consigo: o vermelho do batom, o brilho dos anéis, a pérola dos brincos, pingentes, pulseiras, unhas escarlate, o colorido das festividades que poderia vir a freqüentar só para merecê-lo. Sim, precisava merecê-lo. Precisava de salões amplos, escadarias, lustres barrocos. Precisava de valsa. Orquestra, violino, essas coisas. E também de um cavalheiro de fraque para acompanhá-la na dança, as anáguas balançariam lentas, perfeitas, foram feitas para isso. Eles deslizariam entre os casais e já era possível imaginar o reflexo dos dois multiplicando-se nos espelhos emoldurados, nas taças de cristal, na prata dos castiçais. Dentro de um vestido dourado mulher nenhuma é despretensiosa, riu-se involuntária, irônica – todo grande sonho beira mesmo o ridículo. Descobriu-se perplexa. Riu-se novamente. Abriu os olhos, o quarto escuro à sua volta, impassível. Já não pertencia àquele lugar.
Anda, anda, anda. A manhã fria na cidade louca e a velha bolsa apertada contra o corpo, ela atravessando as ruas apressada, a loja a três quarteirões. As folhas de cheque num envelope pardo, era muito, era demais e sua fome pedia enormidades. Ofegava. Na contra-mão do mar de pedestres sonolentos, ela abria caminho. Eram os primeiros passos na direção contrária das coisas. Sabia que iniciara algo irreversível e corria, corria, por que, às vezes, não há mais volta e só nos resta mesmo seguir em frente até o fim. Ela estava pronta.
Enfim, a rua. A loja, a vitrine, o vestido sozinho em seu reinado, em sua espera. Sob a luz do sol tudo era mais belo e mesmo o manequim de madeira perecia lhe sorrir estático. Sorriu também. O reflexo da própria imagem no vidro sobreposto à do tecido, visão da sua pele matizada em seda dourada. Era o princípio das cores. Aproximou-se com a cerimônia dos grandes encontros e, então, reconheceu nele um detalhe novo. Uma etiqueta discreta: vendido.