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Posts Tagged ‘crônica’

– Bom dia, prefere janela ou corredor? Devemos reservar lugar para mala ou mochila? Pretende incluir bagagem de porão?

Viagens exigem muitas decisões. Para quem tem dificuldade de escolher, o aeroporto pode se tornar um gabarito infernal.

– Fechadura tradicional ou cartão magnético? Qual é o valor aceitável para um transfer? Deseja que o seguro inclua cobertura contra acidentes nucleares?

Escolher um destino geralmente é simples, o mundo é cheio de lugares maravilhosos. Mas aí começa a sabatina. A escolha do transporte, do número de dias, da época do ano. Mas acho que escolher hospedagem é especialmente difícil. Hospedagens espelham o nosso momento de vida.

Eu mesma sempre gostei de hospedagens exóticas, não entendia por que as pessoas renunciavam a perambular por cidades multiculturais para se sedentarizar em ambientes pasteurizados, tipo um navio ou um resort. Mas, vejam só, eu era jovem. Hoje, a ideia de peregrinar por metrópoles caóticas carregando crianças e brinquedos me parece exaustiva. E também me pergunto se gostaria de transitá-las na terceira idade – só de imaginar as montanhas russas girando e piscando sob música eletrônica já me causa labirintite. A verdade é que passei a gostar de locais distantes e paradisíacos. Refúgios que só seriam viáveis para mim se tivessem, pelo menos, um parquinho infantil. E um posto médico. E janelas com telas de segurança. E atributos que, vejam só, me fazem lembrar um resort. 

Outra questão é o número de viajantes. Descobri que, quanto maior o grupo, menor a liberdade. Numa equipe de 10 pessoas, a vontade de cada uma irá vigorar em 10% do tempo. Imagino que ninguém parcelou as suas férias em 12x para ter autonomia sobre apenas 10% do roteiro. Menos gente, mais autonomia.

E a época do ano? Alta estação ou baixa estação, verão ou inverno. E as festividades locais? Época das monções, das turbulências políticas, da temporada de ski, promoções da companhia aérea, atrações que só funcionam em uma parte do ano. É um quiz infinito.

Deixo as malas no saguão ou encaminho para o quarto? Café da manhã incluído ou abatimento de 10% na diária? – às vezes, eu gosto de ouvir relatos de viagem de outros viajantes. São reveladores, narram muitas escolhas acumuladas em poucos dias, são como abrir um diário. 

Por exemplo, eu nunca fui à Argentina. E sempre pergunto às pessoas: como é a Argentina? Há o viajante que fala da gastronomia, outro que fala sobre a organização do trânsito, outro sobre as pessoas de olhos azuis. Há quem fale sobre a paz das vinícolas, do terrível derretimento das geleiras ou das vantagens de câmbio inacreditáveis. Existe quem economizou a vida inteira para conhecer e quem só viajou para lá por que o euro estava caro demais. Freud diz que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais sobre Pedro do que sobre Paulo”. E talvez a minha pergunta nunca tenha sido sobre a Argentina. 

Talvez viagens nunca sejam sobre destinos, mas sobre escolhas. Acho que é por isso que eu tenho aflição de blogueiro dizendo que viajar é simples e acessível – não é – e medo de parecer idiota para quem tem dinheiro, mas outras prioridades – insira aqui o consumo classe média da sua preferência. Mas meu pior pesadelo é conversar com quem confunde vivência com consumo. Quem hierarquiza cidades pelo valor de ostentação. “O valor de uma cidade é a resposta que ela dá às nossas perguntas” (Ítalo Calvino).

A gente viaja para poder escolher, viagem é o paraíso do livre-arbítrio. Você pode incorporar o banhista empolgado que anoitece na praia ou o aventureiro escalando cachoeiras ou o sedentário que só levanta para não perder o café da manhã do hotel. Pode ser o crítico de arte de todos os museus ou o flanêur que senta na calçada para ver as pessoas passarem. Não há certo nem errado. Quando for planejar a sua próxima viagem, não pense no lugar, só pense em quem você quer ser. 

Deus criou destinos lindíssimos. Você pode escolher a Argentina que quiser.

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Só mais esse

Resistir é cansativo. Por que resistir é todo dia. Não conheço imagem que ilustre melhor a exaustão da resistência que a de um trecho de Bukowski em que ele está falido e arranja trabalho num frigorífico. O serviço consistia em descarregar caminhões repletos de novilhos cortados ao meio para armazená-los do outro lado do pátio. Ele coloca metade de um novilho nas costas e leva até lá. É pesado, é difícil. Ele fica pensando: “Ah, meu deus do céu, que fim levaram as noites suaves e tranquilas? Por que isso não acontece ao Walter Winchell, que acredita piamente no Sistema Americano? Não fui um dos mais brilhantes alunos de Antropologia? O que foi que houve?”. Depois volta e carrega mais outro. E mais outro. As costas machucadas, as pernas fracas, ele dizendo para si mesmo – só mais esse. Como se cada novilho carregado fosse o último – só mais esse. A noite caindo – só mais esse.

Se resistir é cansativo, então seria de se esperar que seu antônimo – desistir – fosse um conceito revigorante e bem-disposto, mas quase nunca é. A ideia de desistir chutando um balde metafórico numa revanche redentora é, sem dúvidas, uma ideia adolescente, acredito que a chance disso acontecer seja sempre inversamente proporcional à idade do sujeito. Adultos desistem por abandono. Adultos estão simplesmente exaustos.

Abandonam a vontade de mudar as coisas. Se abandonam numa rotina mediana, no sofá, em frente à tv. Lembro que, no livro As Virgens Suicidas (1993), o ato de se abandonar não acontece de repente, mas num esvaziamento lento. O cotidiano da protagonista vai se distanciando dela, como quem assiste ao filme da própria vida, seu próprio quarto vai parecendo irreal e mesmo os conselhos das pessoas queridas preocupadas com a sua saúde soam como vozes que se escuta debaixo d’água, um zumbido que se afasta até mergulhar no silêncio total.

O cansaço confunde as coisas. Cansaço é não querer ouvir explicação para mais nada, é perder a paciência com o mundo. É querer que o tempo passe rápido, é ter vontade de ir embora para um lugar que nem existe. Suas portas emperram, suas rodas travam, seu corpo inteiro é feito de areia movediça, novas manchetes se atulham no corredor da existência, quem segura essa avalanche de notícia ruim? No fundo, ninguém está bem. Reconheço de longe os olhos baixos de quem pensa em desistir. No fim das contas, você não perdeu a fé. Você está apenas exausto.

No conto do Bukowski, ele subitamente deixa o emprego. Pede demissão jogando tudo para cima, nega o patrão, nega aquela comunidade doentia e o sistema econômico do país inteiro – dessa maneira explosiva que todos nós gostaríamos, é uma delícia de ler. Da poltrona, a gente vira a página com um meio sorriso. Bukowski não tinha nada a perder. Ele é completamente irreal.

Dizem que as utopias não morrem nas guerras, elas definham por um lento desinteresse. Reconheço no espelho os olhos de quem pensa em desistir. A realidade é pesada, a resistência é um pátio largo. A cada novo dia, eu penso.

Meu Deus.

Só mais esse.

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Encontrei-o morto na sala. Tranquei a porta antes que as crianças entrassem, cobri com um pano, enxuguei a poça de sangue. O gato estava duro, os olhos vidrados, devia estar há uns 3 dias ali na sala do sítio, coloquei o corpo dentro de um saco plástico. As malas ainda estavam no carro, duas da tarde, eu de pé com aquilo na mão sem saber que destino dar. Não costumo encontrar cadáveres dentro de casa, não tenho intimidade com o protocolo.

Aquele era um bichano que aparecia no sítio em noites de sábado. Ele ficava arranhando a porta, exigia leite de um jeito orgulhoso, as crianças o alimentavam e ele sumia logo depois. Me lembrava os austeros gatos egípcios e batizei-o de Pedante, mas ele não era meu. Personalidades assim nunca têm um dono. Será que passou mal? Morreu de frio? Jamais saberei o destino do bichano.

Saí da casa pelos fundos e fui abrindo caminho no mato com o embrulho. Jogar fora ou enterrar? Enterrar seria mais respeitoso e evitaria que os urubus ficassem rondando a casa. A voz das crianças jogando bola com o pai ao longe, talvez desse tempo de terminar o serviço sem ninguém perceber. Eu nunca havia usado uma pá. Também não costumo enterrar cadáveres no jardim, outra vez sem intimidade com o protocolo.

Pedante estava pesando dentro do saco, dizem que corpos mortos sempre parecem pesar mais. E parecem maiores. E, principalmente, nunca deixam dúvidas. Olhando de longe você sabe quando um corpo está sem vida, acho que, nos filmes, os personagens sacolejam o defunto tentando reanimá-lo apenas para dar mais ênfase ao drama, obviamente sabem que não há mais nada ali. Era como carregar um boneco. E como era difícil fazer uma cova. Não entendia a expressão – “confio muito em fulano, seria quem eu chamaria para enterrar um cadáver comigo” – afinal, por que alguém chamaria outra pessoa para um programa tão macabro? Agora, me parece claro que perfurar uma cova sozinho é quase impossível, você cava, deixa a camisa ensopada e não consegue abrir um palmo de terra. Imagine sete. Fiquei preocupada de algum trabalhador da fazenda vizinha me vir ali e achar estranho, sei lá, uma mulher de cabelos longos e vestido cor de rosa abrindo uma cova perto do rio merecia uma legenda do Nelson Rodrigues. Pedante estava rígido com as pernas esticadas, não cabia no buraco. Era preciso cavar mais. Os urubus começaram a rondar. Eu precisava terminar aquilo.

Voltei com o rosto coberto de terra e sangue seco, tomei um banho – casa vazia, chão limpo, cheiro de água sanitária, fiquei lendo uma revista na varanda. Ninguém daria conta do que houve, economizaríamos lágrimas e traumas infantis. Fiquei refletindo sobre porque raios eu fui enterrar o gato. Não precisava. Eu podia tê-lo jogado no mato ou no rio, não sei o quê em mim precisa encerrar os assuntos de maneira definitiva, a ideia de deixar o corpo no rio era abandonar a questão inacabada, eu encontrei o gato morto, então era eu quem deveria sepultá-lo no meu próprio terreno, era minha responsabilidade. Ao menos, depois de morto, Pedante era meu.

Fim de tarde. As meninas chegaram eufóricas do jogo, arrumaram-se para o jantar, meu esposo fez uma pizza e projetou um filme no muro. Ninguém desconfiou de nada. A noite correu leve com histórias sobre pipas, bicicletas e baleias jubarte que eram do tamanho de um ônibus, com os insetos zunindo à volta da fogueira e árvores crescendo à volta do lago. Estava tudo sob controle. Naturalmente cansados, todos foram se recolhendo para dormir, eu fui trancando as janelas, músculos distendendo-se aliviados. Enfim. Antes de apagar todas as luzes, ainda pude ouvir as últimas conversas no corredor:

– Filha, hoje é noite de sábado, não vai deixar leite para o Pedante?

– Não precisa. Ele não vai mais voltar. 

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Para mim, este tem sido um ano de tragédias pessoais devastadoras. Tenho recebido o apoio de parentes e amigos. E, estranhamente, em meio ao luto, esse também tem sido um ano de ânimo produtivo. Estou cheia de coragem. Uma situação contraditória que eu não sei bem como explicar.

Aqui, pensando nisso enquanto arrumo gavetas, encontrei as fotos de uma cidade que conheci superficialmente há uns anos atrás, da janela do trem, e que me pareceu bem diferente das imagens que eu tinha visto nos livros de história. O nome da cidade é Manchester, ela fica no interior da Inglaterra.

Uma cidade que viveu dois períodos distintos. Um de prosperidade, quando tornou-se um pólo têxtil e exportava para o mundo todo, na década de 70. Era comum, na maioria das famílias, que todos os adultos trabalhassem nas fábricas de tecidos, que todos os barcos estivessem carregados de tecidos, que a educação fosse voltada para a compreensão das técnicas têxteis. Mas, de repente, a Índia e a China passaram a também produzir tecidos e era impossível competir com elas. 

E ninguém dominava outro ofício. Legiões de desempregados ficaram vagando pelas ruas, os prédios foram ficando sujos e tudo culminou em drogas e criminalidade. A cidade entrou em lenta decadência por duas décadas e, nos livros de história, as imagens eram de abandono.

Mas, acreditem, não há nada tão ruim que não possa piorar. 

Em 1997, houve um ataque terrorista que destruiu um quarteirão inteiro. O mundo ficou estarrecido. E confuso, já que a escolha do alvo não fazia sentido, Manchester não era mais uma cidade relevante para o Reino Unido. Ela estava novamente na capa dos jornais – pelo pior dos motivos – e a repentina solidariedade do mundo motivou os moradores a reconstruirem aquele quarteirão fumegante e destroçado. 

E eles reconstruíram três quarteirões. Depois o bairro. Depois a cidade inteira.

A Manchester que eu vi da janela do trem era de um oásis colorido – escolas, parques, ruas cheias de turistas. Avenidas que jamais lembrariam a indústria abandonada de 20 anos atrás. Imagino que eles não devem se sentir gratos pela bomba, aquilo foi um horror, mas talvez sintam que, às vezes, a vida tem uma maneira meio drástica de nos obrigar a fazer aquilo que a gente precisa fazer. Ou talvez pensem em como uma tragédia lenta pode passar despercebida. Ou em como o olhar repentino de todos, em comoção e expectativa pela recuperação da cidade, teve um poder renovador.

Mais do que nunca, acredito que foi esse olhar de força e incentivo quem conseguiu empoderar as pessoas. Fortalecer a comunidade. E mudar, para sempre, a vida de Manchester. 

Este ano, esse olhar transformou a minha vida.

Quem sabe o seu olhar também possa transformar a vida de alguém. 

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As pessoas se sentem privilegiadas pela presença dele. Com um faixo de luz que iluminasse a sala de repente, a sua chegada quase sempre é anunciada pelos comentários que vão abrindo portas antecipadamente. Dessas personalidades excêntricas que parecem colocar o resto do mundo em marca d’água, cooptando adeptos para um modo de ver a vida aberto a infinitas possibilidades – que, se ainda não se concretizaram, seria apenas por uma questão de tempo ou por causa dos invejosos que não podem suportar as qualidades que você certamente possui. Perto dele, todos são gênios incompreendidos, mentes superiores prestes a serem aclamadas pelo reconhecimento inevitável. 

Todos sentem prazer no sentido grandioso que ele traz para suas vidas e acabam tornando-se dependentes disso, como de uma droga poderosa capaz de lhes fazer levantar da cama todos os dias. E, em troca, cedem aos seus caprichos mais desbaratados e lhe perdoam faltas imperdoáveis, começando aí um ciclo doloroso. Por que ele podia fazer alguém sentir-se extraordinário por algumas horas, mas, no dia seguinte, lembraria vagamente o nome do interlocutor. Enquanto restaria ao outro esforçar-se para atrair sua atenção novamente, oferecer-lhe favores, ávido por outra oportunidade de se sentir especial. 

Contam uma história, não sei se é verdade. Quando ele se tornou professor de História, não estava preparado para a função. Ainda assim, os alunos o adoravam. Se lhe faziam uma pergunta difícil, ele simplesmente inventava a resposta. Criava enredos fantásticos sobre Napoleão, Cleópatra, Getúlio, ficções completamente descabidas. Sempre imaginei aquele homem enorme, cabelos longos e olhos verdes, narrando qualquer absurdo com uma oratória impecável. Contando qualquer maluquice com um carisma indefectível. Dizem que nenhum dos alunos jamais contestou a verdade. Naturalmente. Eu também não contestaria.

Ele fez parte da minha vida desde sempre, mas lembro de uma noite específica em que ele me explicava a diferença entre o Washington Olivetto e eu: a única diferença é que você é mais jovem, vai poder fazer tudo que ele fez, só que muito antes. Eu não concordava, mas não conseguia rebater o argumento. Depois, ele começava a planejar um futuro fabuloso para nós – um chalé na montanha, um barco, uma piscina do tamanho de um campo de futebol, o que acha? Já que eu era muito inteligente e seria, obviamente, milionária, teríamos tranquilidade dentro de um oásis exótico. Os projetos eram megalomaníacos, algo entre o completamente doido e o simplesmente adorável. Era maravilhoso estar com ele. Quando eu conseguia estar com ele. 

Porque, dias depois de projetar uma vida perfeita para nós, ele era capaz de marcar um jantar comigo e não aparecer. Ou de me deixar esperando na porta do dentista ou na janela de casa ou de cometer qualquer vacilo terrível de forma que nem adiantava ficar com raiva, por que nada parecia proposital. Minha vida oscilava entre me sentir especial iluminada a framboesa de ouro escolhida pelos deuses ou me sentir um verme abandonado na sarjeta da desimportância. E eu passei muito tempo me esforçando para ser lembrada. Sendo a mais inteligente, a mais bem-sucedida, a mais brilhante, a mais inesquecível. Observe que loucura. Existe ambição mais inútil que tentar ser inesquecível?

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“Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.”

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Parece óbvio, mas a verdade é que algumas pessoas nos viciam. A gente vicia no elogio grandioso, mesmo que não seja real. Nos projetos fantásticos que nunca vão se realizar. A gente vicia ineditismo, na aventura empolgante, em qualquer coisa que faça-nos sentir únicos e potentes, mesmo que isso custe a nossa sanidade. Como tantas outras pessoas, eu estava viciada nas hipérboles de meu pai. E vivia uma abstinência de cortar o coração. Estava viciada nele invadindo o pátio da escola com caixas de presentes, matando meus colegas de inveja. Nele colocando um ônibus particular na porta do colégio para eu levar quem eu quisesse para a festa. Nele chegando no aniversário com um cavalo de verdade para mim, igual aos dos contos de fadas. Quando ele trouxe um lote de 200 coelhos brancos para animar a nossa Páscoa, meus primos disseram que eu tinha sorte de ter um pai tão fantástico. E eu admitia. Mas também percebia a sorte deles. Por que era ótimo ter um tio excêntrico capaz de surpresas inacreditáveis quando já se tem um pai como os outros, que lembra a dose do remédio e a hora de buscar no dentista.

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“Faço promessas malucas,

tão curtas

quanto um sonho bom.”

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Eu já estava adulta, perdida e exausta quando decidi renunciar. À extravagância, à instabilidade. Acho que passei metade da minha vida nesse processo de desintoxicação. Tentando não me sentir fracassada por não ter tido um destino excepcional, tentando não me sentir miserável cada vez que alguém me ignorava – que terrível a ideia de ser esquecida outra vez. Recuando do fascínio das pessoas emocionalmente irresponsáveis, dos que fomentavam expectativas que não podiam cumprir. Mas, principalmente, recuando da minha própria vocação para me tornar a cópia do meu pai. Se você olha muito para o abismo, o abismo olha para você.

(Entre os heróis de gibi, sempre há alguém que nasce com um superpoder destrutivo e faz o juramento de não utilizá-lo para o bem de todos. Eu sou boa com elogios. E eu evito elogiar as pessoas. Sei que posso fazê-las ascender às nuvens, mas não posso evitar que despenquem de lá). 

Na época da faculdade, eu estava dirigindo e tinha um carro na minha frente indo muito devagar. Eu fiquei fazendo sinal e perdendo a paciência por uns dez minutos. Quando ultrapassei, o motorista era ninguém menos que meu pai. Ele estava rindo, tinha feito de propósito: “Por que ficou passando raiva atrás de mim? Por que não tomou logo a outra pista?”. Eu gargalhei, gritando um palavrão. Mas nunca soube responder a essa pergunta.

Certa vez, eu tive um dia ruim e ele disse: venha dar uma volta comigo, você está precisando fazer algo interessante. Ele me levou à casa de um amigo dele que tinha vinte cachorros e um jacaré na piscina – Olha, preciso reconhecer, você me levou a um lugar interessante – Mas o interessante era passar a tarde comigo, jacaré na piscina qualquer um pode ter!

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“Meu pai tem Alzheimer
e todo dia me pergunta
que dia é hoje.
Eu digo que é Dia dos Pais
e tasco-lhe mais um abraço.”

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– Pai, tava lembrando de uma viagem que fiz, nem sei mais o nome do lugar. Senti um magnetismo estranho, até chorei quando fui embora. Não faça piada disso.

– Não vou fazer piada. Na verdade, eu senti isso uma vez, você não era nascida. Era uma praia que parecia querer que eu ficasse.

– Uma praia?

Era o mesmo lugar.

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Na década de 70, ele estava viajando com um amigo e o velho fusca estancou na ladeira. Um carro de luxo ficou buzinando atrás e meu pai simplesmente engatou a ré. Esmagou um carro no outro, depois acelerou e foi embora. Anos depois, ele se casou, o amigo também e cada um teve uma filha. Nós duas costumávamos viajar juntas e só eu não conhecia essa história. Quando meu primeiro Fiat estancou na ladeira, um carro de luxo buzinou atrás. Antes que eu engatasse a ré, ela pulou do carro gritando – mas que Édipo filho da puta!

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“Ela não podia olhar para seu pai quando ele tinha uma alegria. Porque ele, o forte e amargo, ficava nessas horas todo inocente. E tão desarmado. Oh, Deus, ele esquecia que era mortal. E obrigava ela, uma criança, a arcar com o peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e mais animais também morrem. Nesses instantes em que ele esquecia que ia morrer, ele a tornava a Pietà, a mãe do homem.”

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Hamlet é a história de um filho que tenta vingar a morte do pai. E sempre me intrigou o fato de ambos terem o mesmo nome: Hamlet é o patriarca ausente e Hamlet é o filho solitário. Hamlet é o fantasma que atormenta Hamlet. Como se os dois fossem indissociáveis! Talvez fosse essa a verdadeira tragédia.

Os livros de Kafka têm algo em comum, todos tratam de problemas sem solução. Menos um, que ele não quis publicar, o Carta ao Pai. É uma correspondência de mais de cem páginas que nunca foi enviada: “Pai, (…) minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”.

Meu pai só chorou quando Bob morreu. Bob era o vira-latas que alegrava a casa, achado na rua, feio feito a fome. De um jeito que eu nunca tinha visto, ele lamentou não ter cuidado mais, tratado antes, feito melhor. Chorou por Bob de todo coração. Eu, adulta, assistia ao drama e não entendia. Parecia o remorso de uma vida inteira.

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“Dizem que embaixo do sarcasmo

Existe uma segunda camada mais viscosa de sarcasmo

Mas na quarta ou quinta você descobre 

Uma vontade desesperada de amar

Tem que descascar”

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Eu herdei as grandes sobrancelhas. Herdei a inclinação ao exótico, a vida social agitada, o gosto pelo microfone. Herdei o deboche espinhoso, o egocentrismo e a personalidade hedonista. Mais do que tudo da infância, meu Deus, eu levei um coração partido. Que desconfia de promessas, que é insensível a romantismos. Senhoras e senhores, é bem difícil me impressionar. Só acredito em quem lembra da hora do remédio e o dia de buscar no dentista.

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“Eu compro o que a infância sonhou

Se errar, eu não confesso

Eu sei bem quem eu sou

Eu nunca me dou.”

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Sempre achei graça das camisas coloridas. E da pizza requentada três vezes ao dia. Amei as sandálias havaianas em restaurante de luxo e o paletó italiano no acarajé da esquina, ganhar brinquedo até os trinta, amei ir de Salvador ao Rio a 50km por hora só para irritar os outros na estrada. Mas odiei ter pego três aviões para te encontrar no Natal e ter ouvido apenas que estava atrasada. E sempre que o dia dos pais perdeu para outro evento que te pareceu mais importante. E a camisa de presente que cansou de esperar no armário e coube perfeitamente no porteiro. Eu sabia que merecia mais. Justo de quem dizia que eu nunca deveria aceitar menos. 

Meu pai é o Cavalo de Troia que alegrou a minha infância e fez uma algazarra com a minha vida adulta. É o Sinatra estourando champagne, é o Rei do Gado, é o meu Malvado Favorito. É o Bukowski brigando com o seu pássaro azul. Como numa parábola às avessas, em que é o pai pródigo quem retorna arrependido, às vezes ele me pergunta se eu gosto do Raul Seixas. Se curto o maluco beleza da mosca da sopa que não quer tirar onda de herói. E eu olho bem nos olhos dele – pai, e quem não ama o Raul?

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“Uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; (…) na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido.”

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A primeira imagem de pai na mitologia é Urano, o pai ausente. Que foi destronado por Saturno, o pai dominador. Que foi destronado por Zeus, o pai zeloso. E faz séculos que a humanidade aprimora modelos de paternidade moderna, mas eu resumiria a epopéia num único mandamento: nunca esqueça sua filha de pé, na porta de casa, no dia do aniversário dela.

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“Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina.”

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Um dia desses, eu estava dirigindo e havia um carro muito lento na minha frente. Eu sabia que era ele, mas ele não tinha me visto. Esperei quieta, como quem toma coragem. Ultrapassei devagar, ele me viu e eu acenei tranquila. E essa foi uma das coisas mais difíceis que eu já fiz na vida: ter seguido em frente.

É isso.

Eu te amo muito, pai. Mas, finalmente, eu tomei a outra pista.

Obs: respondendo às mensagens, está tudo ótimo comigo e com meu pai! Foi só o meu psicanalista que mandou escrever sobre episódios do passado e eu estou humildemente obedecendo 🙂

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“Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.”

(Caio Fernando Abreu / Além do Ponto)

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A cada convite para lives no Instagram, acho que fica mais evidente essa divisão entre pessoas fitness e pessoas Netflix. Já havia percebido essa rivalidade antes da quarentena e acho que os dois grupos têm muito em comum: eles não saem do lugar e seus progressos são numéricos. Em cima de uma esteira ergométrica ou em cima de um sofá, os dois maratonistas avançam – é possível medir os quilômetros corridos e os capítulos assistido. Mas não vão a lugar nenhum. Não há deslocamento real e os corpos repetem os mesmos movimentos todos os dias numa obediência que deixaria Foucaut comovido.

A verdade é que números tornam a vida administrável. E atividades não numéricas não elegem vencedores. Por exemplo, como obter números que avaliem o êxito de uma experiência de camping? Ou de marcenaria ou de teatro? Só é possível pontuar em atividades que envolvem repetição. E repetições não criam nada.

(Isso não é bem uma crítica. Pode segurar seu squeeze ou seu controle remoto sem constrangimento. Só acho que a gente nunca soube mesmo o que fazer com essa tal liberdade de ir e vir)

 

alexandre pires 2

 

Hoje, me peguei pensando numa quarentena ao contrário. Imaginei o aparecimento de um vírus que, ao invés de nos manter confinados, nos expulsasse de casa. E nos obrigasse a estar em constante movimento. Do trabalho para o shopping, do shopping para o cinema, do cinema para a academia, da academia para a faculdade. Todo mundo dormindo poucas horas por noite, proibido de desacelerar. Do escritório para o restaurante, do restaurante para o banco, do banco para o mercado, do mercado para a festa. Consumindo, teclando, trabalhando, produzindo. Sem descanso. Sem trégua. Não seria um inferno?

Talvez esse vírus também te pareça familiar. A gente já estava doente e não sabia.

 

 

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Décimo segundo dia da quarentena. Ontem ficamos sem energia – sem internet, sem rádio, sem celular – e, hoje, deve faltar água. Mais um dia assim e vão me encontrar conversando com uma bola de vôlei. Tenho feito registros só para marcar este episódio histórico, mas, hoje, esse negócio de escrever sobre os bastidores de uma tragédia pública me pareceu meio macabro, tipo Diário de Anne Frank ou O Paciente Inglês. Dessas narrativas despretensiosas que as pessoas fazem quando acham que tudo vai ficar bem, quando ainda não entenderam que aquele cenário confuso diante delas é apenas. o fim. da linha.

A comida está acabando. Não estoquei nada – empatia social, mores – e não sabia que o mercado levaria sete dias para fazer a entrega, então o jantar de hoje foi gelatina com aveia. As crianças gostaram. Tenho mantido a casa entretida mesmo dentro da calamidade, um perfeito roteiro de A Vida é Bela. Quando fui procurar na dispensa algo para o café de manhã, entre potes de chá, orégano e mais gelatina, encontrei algo que me fez lembrar o ano de 2010. Meu Deus, que fase.

(Caro leitor, se você também viveu alguma coisa bizarra há 10 anos atrás, abrace seu Buda: esse é um ciclo que vai se fechar agora. Diria Bukowski: você só cai de um mesmo cavalo uma vez por década).

Voltemos a 2010. Devo lembrar que, naquela fase do período cretáceo, possuíamos poucas redes sociais, os celulares dispunham de fotos com baixíssima resolução e nenhuma internet móvel. Época horrível. Eu estava vivendo momentos de altos e baixos financeiros que, quando altos, tocavam as nuvens, quando baixos, mergulhavam no magma da Terra. Atribuo esta turbulência monetária ao fato de ter uma personalidade otimista – irresponsavelmente otimista – somada à certa ingenuidade juvenil. Até então, eu desconhecia esse abismo cognitivo que existe entre pessoas com menos de 30 anos e as que possuem mais de 30, esse portal que só se revela depois que você atravessa para o lado de cá e te faz rever os filmes da sua adolescência apenas para descobrir que os pais do mocinho estavam com razão o tempo todo. Eu era muito ingênua. Essa iluminação ainda não havia chegado a mim. Só lembro de, em junho de 2010, estar bem feliz vestida de vermelho na Champs-Elysees, jantando numa esplanada à luz de velas. Em julho, de ter levado um calote memorável. Em agosto, de estar vendendo os meus móveis na feira para pagar o aluguel.

Final trágico para uma bancarrota épica, sim?

na verdade, não. Era só o começo.

Infelizmente, os móveis não valiam tanto e, no fim do verão, fomos despejados. Pensei em desistir de tudo, mas eu estava obstinada por um projeto pessoal importante, era a chance da minha vida. Consegui alugar um porão num prédio histórico caindo aos pedaços, um depósito subterrâneo sem janelas, uma única lâmpada. Eu não sabia como seria o inverno ali. Ter vendido o tapete foi uma decisão errada, por que o piso foi ficando mais gelado a cada dia. A lareira não funcionava, muito mofo. As chuvas foram chegando, as infiltrações inundavam tudo e não dava mais para dormir no chão. Mas eu ainda estava otimista. Irresponsavelmente otimista. Eu achava que ia passar.

Não passou.

Meses depois, fomos despejados de lá também e embarcamos para a África – pela terceira vez – porém a África estava em guerra – de novo – e isso representou problemas ainda piores, mas o episódio que eu quero narrar foi um pouco antes. Foi naquele dia. O momento exato em que eu entendi que não dava mais para ser otimista. Aquilo não ia passar.

Era uma dessas tardes tristíssimas em que eu estava chegando do trabalho. Eu me perguntava o que ia acontecer com a gente naquele inverno. Me curvei para entrar no porão, tranquei a porta, tirei o casaco, acendi o fogareiro e fui ver o que restava na dispensa. Eu administrava as compras e percebi que havia algo errado. Os biscoitos tinham acabado, mas ainda havia arroz e sardinha. Enumerei os itens de novo e me dei conta do que estava acontecendo:

Meu namorado estava, há semanas, ALMOÇANDO BISCOITO DE COCO para que eu tivesse o que comer.

GENTE.

MEU MUNDO CAIU.

Eu estava causando problemas a outra pessoa. Eu fiquei paralisada com essa informação.

Eu não havia percebido antes. Entre todas as aquelas privações, por algum motivo, essa mudou tudo. Por que eu percebi que a culpa era minha. Do meu projeto de vida, da minha obsessão, do meu otimismo. Não falei nada sobre o assunto. Mas este dia marcou uma série de mudanças: eu entendi que precisava fazer algo, que aquela fase ruim não ia, magicamente, passar.

E devo dizer que nunca mais na vida eu comi biscoito de coco. Tomei horror. Arroz com sardinha também passou a me causar aflição. Enfim.

Depois de uma labuta colossal, finalmente, os meus planos deram certo. E tudo se ajeitou. Hoje, seria elegante concluir que todos estes episódios mudaram completamente a minha maneira de ser e que eu me tornei uma pessoa madura e ponderada, que não alimenta quaisquer projetos aventureiros irresponsáveis – mas a quem estamos tentando enganar, não é mesmo??? EU NÃO ME IMPORTO. Provavelmente ainda passarei por perrengues incríveis nesta vida, mas aprendi que não posso arrastar ninguém comigo para o fundo do poço. Meu coraçãozinho é bem Saint-Exupéry: a gente é responsável pelo que cativa.

Final feliz, vejam só. E dez verões e invernos sucederam-se no calendário gregoriano.

Em março deste ano, quando começou a quarentena, eu fui uma cidadã exemplar. Mantive uma calma celestial desde o início, ajudei a todos. Vai parecer louco o que eu vou dizer, mas, ao menos, foi apaziguador estar diante de uma crise que não fui eu quem criou. E não sou eu quem precisa administrar, conduzir, solucionar. Estamos vivendo uma pandemia, é um problema mundial. A dispensa está vazia de novo, mas é um alívio saber que a culpa não é minha.

Então, hoje à noite, em episódio não relacionado, fui resgatar uns alimentos no armário e encontrei algo surpreendente. BISCOITO DE COCO. Socorro! Ninguém sabe de onde veio. Concluí que ele foi trazido pelo Bukowski em pessoa, que levantou da cova catando os próprios pedaços e dirigiu-se pessoalmente à minha cozinha só para me lembrar que uma década já se passou. Que está começando outra. E que eu não posso deixar aquele cavalo me derrubar de novo.

Por absoluta falta de opção, o café de amanhã será esse mesmo, biscoito de coco. No almoço, teremos um cardápio sofisticado composto por salsichas em cubos acompanhadas de milho em lata. No mais, seguirei tocando violino no convés do Titanic, escrevendo diários sobre um futuro melhor. Vendendo otimismo nesta quarentena.

Isso vai passar. É claro que vai.

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Estou do lado de fora da sala de aula. O professor já entrou. Eu perdi na avaliação desta disciplina por que enviei um documento errado. Não bastava estar apanhando miseravelmente da bibliografia em francês, eu mandei o documento errado. Fui reprovada. Todo mundo soube. Eu não quero entrar.

Sei que constrangimento é uma forma de vaidade e fico aqui pensando em um episódio de Machado de Assis, que li há muitos anos. É quando o pai de Capitu, o Sr. Pádua, empregado numa repartição, assume temporariamente o cargo do seu superior. O chefe precisava ir para a Europa e, naquela época, esta era uma odisseia que durava meses. Enquanto administrador interino, ele passou a ganhar o salário do diretor. Comprou carro, roupas, joias, incorporou um novo estilo de vida para a família, passou a ser reconhecido nos lugares. Vinte e dois meses depois, com o retorno no chefe, o Sr. Pádua entra em desespero:

– Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?

– Que público, Sr. Pádua?

Na época, este diálogo, tão periférico na trama, me fez rir muito. Acho que foi de nervoso.

Houve um dia, ano passado, em que eu acordei num lugar desconhecido. Não conseguia levantar. Apalpando as coisas no escuro, entendi que estava numa maca e que talvez aquilo fosse um ambulatório. Ao invés de chamar alguém e fazer perguntas, eu simplesmente me deixei ficar ali. Era a primeira vez em meses em que eu estava completamente sozinha. Achei inacreditável aquele silêncio.

(Eu tive um problema no cérebro causado por exaustão).

Mais do que nunca, imagino que mudanças importantes desenrolam-se em hiatos. Casulos, cascas de ovo, ritos de passagem que transcorrem nos bastidores. Veja só, pela tradição, o que é um casamento? Os noivos fazem uma celebração, viajam em lua de mel e retornam à sociedade como pessoas casadas. Se alguém que perde o cônjuge, fecha-se em luto e retorna como viúvo. Um casal engravida, tira uma licença e retorna como família. Se até o Divino precisou de 40 dias no deserto para se preparar para uma vida nova, quem sou eu para desmerecer uma fuga? Apenas reservem. Meu lugar. Nesse foguete.

Estou na porta da sala. Cansada e constrangida. Estou lembrando de um filme de James Bond, quando o informam que a cabeça dele estava valendo uma recompensa de um milhão de dólares. Antes de fugir, ele duvida da informação: um milhão? Ninguém vale tudo isso.

Constrangimento é vaidade. Que público, Sr. Pádua? Ninguém vale tudo isso.

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– Você encaminhou esses papéis junto com o resto?

– Não.

– Hum.

Às vezes, eu me lembro dos hipopótamos de Pablo. Talvez você já conheça essa história. Com certeza, conhece a história de Pablo Escobar. Ele morreu há mais de vinte anos e continua dando trabalho para a polícia de um jeito que nem ele mesmo poderia imaginar. E olha que ele era um cara bem imaginativo quando se tratava de dar trabalho à polícia.

No auge do Cartel de Medellín, Escobar criou um rancho. E achou que cães de guarda não dariam conta de fazer a segurança da propriedade. Procurou uma solução mais eficaz. O que poderia ser mais feroz e violento e sanguinário do que um doberman faminto? Um hipopótamo, é claro. Importou quatro da África. Na ocasião, empolgou-se com a ideia e trouxe também girafa, hiena, rinoceronte, criou logo um zoológico e, na impossibilidade de importar dinossauros diretamente do período Cretáceo, mandou fazer uns de concreto.

Quando Escobar morreu, os animais foram removidos para os zoológicos de Medellín e Bogotá, com exceção dos dinossauros de concreto e… dos hipopótamos. Por que foram esquecidos. Ou, talvez, por que fossem igualmente pesados. Os quatro ficaram no rancho abandonado. Três fêmeas e um macho. E eles foram se multiplicando. De vez em quando saía no jornal uma notícia misteriosa sobre vacas que apareciam esmagadas ou casas destruídas, depois sobre filhotinhos redondinhos e fofos que apareciam perto das escolas e eram a alegria das crianças. Teve pai que levou hipopótamo para casa, teve outro que levou três e alimentava com leite na mamadeira, a maioria da população criava afeto sem saber do problema em que estava se metendo (quem nunca?). Não demorou para aparecerem hipopótamos adultos soltos nas cidades, atravessando a faixa de pedestre, destruindo carros, correndo atrás das pessoas – tudo bem Jurassic Park, Pablo iria adorar. E começou a caçada aos hipopótamos. Um comeu o braço de alguém, abateram o bicho e a população protestou. Falaram em castração, o povo levantou faixas: que castrem os políticos. Além de onerosa, a castração em massa seria insegura para os veterinários e bastaria um macho ficar de fora para começar tudo de novo. Não poderiam ser removidos para a África, pois levariam doenças diferentes para lá. Não caberiam mais num zoológico. Tentaram cercas elétricas e um hipopótamo morreu eletrocutado e eles realmente não queriam matar o coitado. A população comeu o hipopótamo morto, mas a carne não era confiável, podia transmitir doenças perigosas, houve um rebuliço na segurança sanitária e na diplomacia internacional, que não entendeu a morte do animal e questionou publicando cartas e fotos nos jornais do mundo inteiro. No meio disso, um bando deles interditou as estradas e invadiu bairros residenciais – e os mesmos policiais que passaram a vida correndo atrás do Escobar agora passam a vida correndo atrás dos hipopótamos do Escobar e esta história não tem final por que eles continuam se multiplicando e sendo perseguidos e, até hoje, ninguém sabe o que vai acontecer.

O curioso é que aqueles quatro primeiros hipopótamos que foram esquecidos ainda existem – e vivem bem tranquilos num lago. O macho se chama “O Velho” e eu fico aqui pensando, peraí, será que o maluco do Escobar reencarnou no bicho, olhou em volta e pensou: A PORRA DA COLÔMBIA É MINHA e partiu para reconquistar o país? Ou será que é mesmo sina daquele povo ficar brigando por umas entidades que metade da população admira e a outra metade quer ver morta, numa polarização bem brasileira – enfim, cada nação com o *excêntrico* que merece – insira aqui o nome do político lunático da sua preferência. De fato, talvez por todas essas semelhanças, devo mais do que nunca declarar a minha eterna simpatia pela Colômbia e seus acontecimentos desbaratados, notícias cabulosas, indubitavelmente o berço do Realismo Fantástico, cheia de gente doida, muito amor.

Mas eu só comecei a contar essa história toda para dizer que hoje eu estava na paz da minha residência quando me ligaram para perguntar sobre um pequeno deslize que cometi. Algo desimportante. Um lapso banal. Toda vez que eu cometo uma falha que eu já sei QUE VAI VIRAR UMA PATIFARIA OLÍMPICA E EMBORQUILHAR NUM CATACLISMA ÉPICO eu paro, respiro fundo e penso comigo mesma: olha aí a porra do hipopótamo de Pablo.

Ainda não deu merda.

Mas vai dar.

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Fontes: Super Interessante, @KarlFelippe, National Geographic

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