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Posts Tagged ‘passado’

“And more, much more than this,
I did it my way.”
(Frank Sinatra / My Way)  

 .

Você vai me contar uma história. Onze da noite, garçons limpando o balcão, eu estou no lugar combinado e, de alguma forma, eu já sei disso. Você vai chegar, voz baixa. E vai olhar para os lados antes da primeira frase, por que essa é a sua maneira de procurar as palavras. Se respirar fundo, o assunto é longo, se gaguejar, é grave. Remexe no guardanapo, nas chaves, no cinzeiro. Descruza os braços. Pondera.

Uma vez, a professora pediu para cada aluno descrever a Branca de Neve. Escrevi órfã, pálida, envenenada. Ela mandou chamar a minha mãe. Desde sempre, este esforço para acompanhar o enredo dos textos, tantas vezes o que está escrito não interessa – só a mão suspensa sobre o teclado, as pausas. O interdito que escapa depois das reticências. O baixar dos olhos antes da resposta – o mundo do outro, essa terra estrangeira. Eu tenho tentado chegar mais perto. Sondar a tudo sem movimentos bruscos, sem tropeçar sobre esta ponte frágil. Faz de conta que estamos falando sobre Kant. Faz de conta que estamos falando sobre Bach. Dois centímetros e meio por ano é a acumulação média de detritos pelo tempo, num século muros e cercas dissipam-se em nada. Narramos sem defesa sobre qualquer memória passada e a poeira dos anos assenta sobre o mármore da mesa.

Tantas perguntas. Cada lembrança nos dá um lugar aonde ir quando precisamos continuar aonde estamos. Se não tivermos, em algum canto do coração, um quarto de brinquedos perdido, um pomar longínquo, o quê nesta vida ainda nos restaria? Fala, fala, fala, quase não respiro. Recolho um mosaico confuso, baú chinês, caixa de Pandora – nomes, mapas, segunda, terça, novembro, outono, 1985 – faria alguma diferença se eu dissesse agora que o que houver depois não fará nenhuma diferença? Você vacila antes de falar, te escapa o gesto. Adivinho a paisagem por trás da janela. As histórias banais, a nostalgia do novo – recordações alheias me matam de saudade. Faz de conta que não era longe. Faz de conta que não era tarde. Faz de conta que o futuro cumpriu com tudo o que foi prometido. Me conta sobre o seu cachorro, sobre o seu boneco, o quintal de casa. Agora eu era o seu diário, confessa uma travessura. Divide qualquer coisa antiga que você nunca se esqueceu. E o seu passado não será só seu. E a sua vida não será só sua.

Garçons limpando o balcão, eu aguardo no lugar de sempre. No futuro, talvez eu aguarde em algum lugar hipotético da sua memória. Se você soubesse que chegaria até aqui, teria feito tudo da mesma maneira?

Hoje, senta aqui comigo. Me apresenta o céu e o inferno. Me conta a sua história.

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O Passado

“O passado nunca conhece o seu lugar
O passado está sempre presente.”
(Mário Quintana)

 
Precisava lembrar de comprar fósforos. Empurrando o carrinho de compras, ela se perguntava por que sempre esquecia as coisas. Pensava também no jantar daquela noite, não poderia pedir pizza novamente, que sempre chegava fria e desarrumada. Hoje faria um filé com creme de queijo, receita sofisticada para alguém que jantaria sozinha num dia comum.

A dispensa vazia denunciava: nunca lembrava de fazer as compras. O delivery quase sempre salvando a noite, a pizza fria – mas não dessa vez. Seria um filé especial, porção bem apanhada, queijo mussarela, muito molho. Toalha de renda, talheres à mesa, guardanapo de pano. Tudo de primeira. Só pra ela.

Passando pela gôndola de frios, suspeitou: talvez não fosse culpa sua. Talvez esquecer das coisas de vez em quando tivesse sido seu escape para sobreviver a um passado que não conseguia enterrar. Pois sempre soube: não se pode fazer nada pelo passado. Mentalmente, foi enumerando episódios, circunstâncias, causas diversas. Mas, enfim, quando foi mesmo que começou a abandonar as próprias lembranças? Primeiro foram se apagando os fatos tristes, as más recordações. Era a memória se despoluindo, abrindo espaço no meio do lixo. Depois foram números de telefones, nomes de ruas e aquela receita que só ela sabia fazer. Tudo bem. Até que deu para perder as chaves de casa.
Chamava um chaveiro, arrombava a porta, entrava e quando ia buscar o pagamento do rapaz, onde é mesmo que estava a carteira? Os médicos garantiam que não havia nada de errado – talvez a vida moderna, tanto trabalho, tanto stress. Aceitou. Até aquele dia.
Nem comida nem fósforos em casa. Já era demais. No caminho para o mercado, decidiu: tomaria complementos de cálcio. Faria ioga, meditação, qualquer coisa que a centrasse sobre o próprio eixo. Teria cópias das chaves, agendas e mapas. E nesta nova fase não caberia mais o delivery, a pizza fria, a vida de improvisos que estava levando – atrasos, trapalhadas, anotações perdidas. Altiva, deslizava o carrinho pelos corredores – e assim iria conduzir a sua mente. Sem erro. Se seu passado confuso ressurgisse? Faria análise, terapia, regressão. Iria enfrentá-lo. E pronto.

Enquanto a moça do caixa passava as compras, concluiu – o jantar era só o começo.

– Carne, alho, queijo, extrato. Doze reais. Algo mais, senhora?
– Não, obrigada.

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