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Posts Tagged ‘história’

Encontrei-o morto na sala. Tranquei a porta antes que as crianças entrassem, cobri com um pano, enxuguei a poça de sangue. O gato estava duro, os olhos vidrados, devia estar há uns 3 dias ali na sala do sítio, coloquei o corpo dentro de um saco plástico. As malas ainda estavam no carro, duas da tarde, eu de pé com aquilo na mão sem saber que destino dar. Não costumo encontrar cadáveres dentro de casa, não tenho intimidade com o protocolo.

Aquele era um bichano que aparecia no sítio em noites de sábado. Ele ficava arranhando a porta, exigia leite de um jeito orgulhoso, as crianças o alimentavam e ele sumia logo depois. Me lembrava os austeros gatos egípcios e batizei-o de Pedante, mas ele não era meu. Personalidades assim nunca têm um dono. Será que passou mal? Morreu de frio? Jamais saberei o destino do bichano.

Saí da casa pelos fundos e fui abrindo caminho no mato com o embrulho. Jogar fora ou enterrar? Enterrar seria mais respeitoso e evitaria que os urubus ficassem rondando a casa. A voz das crianças jogando bola com o pai ao longe, talvez desse tempo de terminar o serviço sem ninguém perceber. Eu nunca havia usado uma pá. Também não costumo enterrar cadáveres no jardim, outra vez sem intimidade com o protocolo.

Pedante estava pesando dentro do saco, dizem que corpos mortos sempre parecem pesar mais. E parecem maiores. E, principalmente, nunca deixam dúvidas. Olhando de longe você sabe quando um corpo está sem vida, acho que, nos filmes, os personagens sacolejam o defunto tentando reanimá-lo apenas para dar mais ênfase ao drama, obviamente sabem que não há mais nada ali. Era como carregar um boneco. E como era difícil fazer uma cova. Não entendia a expressão – “confio muito em fulano, seria quem eu chamaria para enterrar um cadáver comigo” – afinal, por que alguém chamaria outra pessoa para um programa tão macabro? Agora, me parece claro que perfurar uma cova sozinho é quase impossível, você cava, deixa a camisa ensopada e não consegue abrir um palmo de terra. Imagine sete. Fiquei preocupada de algum trabalhador da fazenda vizinha me vir ali e achar estranho, sei lá, uma mulher de cabelos longos e vestido cor de rosa abrindo uma cova perto do rio merecia uma legenda do Nelson Rodrigues. Pedante estava rígido com as pernas esticadas, não cabia no buraco. Era preciso cavar mais. Os urubus começaram a rondar. Eu precisava terminar aquilo.

Voltei com o rosto coberto de terra e sangue seco, tomei um banho – casa vazia, chão limpo, cheiro de água sanitária, fiquei lendo uma revista na varanda. Ninguém daria conta do que houve, economizaríamos lágrimas e traumas infantis. Fiquei refletindo sobre porque raios eu fui enterrar o gato. Não precisava. Eu podia tê-lo jogado no mato ou no rio, não sei o quê em mim precisa encerrar os assuntos de maneira definitiva, a ideia de deixar o corpo no rio era abandonar a questão inacabada, eu encontrei o gato morto, então era eu quem deveria sepultá-lo no meu próprio terreno, era minha responsabilidade. Ao menos, depois de morto, Pedante era meu.

Fim de tarde. As meninas chegaram eufóricas do jogo, arrumaram-se para o jantar, meu esposo fez uma pizza e projetou um filme no muro. Ninguém desconfiou de nada. A noite correu leve com histórias sobre pipas, bicicletas e baleias jubarte que eram do tamanho de um ônibus, com os insetos zunindo à volta da fogueira e árvores crescendo à volta do lago. Estava tudo sob controle. Naturalmente cansados, todos foram se recolhendo para dormir, eu fui trancando as janelas, músculos distendendo-se aliviados. Enfim. Antes de apagar todas as luzes, ainda pude ouvir as últimas conversas no corredor:

– Filha, hoje é noite de sábado, não vai deixar leite para o Pedante?

– Não precisa. Ele não vai mais voltar. 

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A verdade é que eu só me interessei por essa história depois que disseram que eu teria que prestar depoimento ao juiz sobre o assunto, explicar como tudo começou e eu – bem, eu não tinha ideia do que se tratava. Como naquele livro do Kafka em que o cara é convocado pela Justiça e passa as 300 páginas da trama tentando descobrir, afinal, por qual crime mesmo ele estava respondendo – meu nome constava no inventário, eu não sabia como, nem o motivo. Pedi para ler o processo, novos documentos foram aparecendo, algumas cartas e cada página descortinava sobre pessoas conhecidas um passado que eu ignorava por completo. O mar não é só o que se vê da praia, veja bem.

Desde então, tive conhecimento de episódios familiares dos quais tomarei a liberdade de contar apenas este simplesmente por que ele virá a público frente ao juiz dentro de alguns dias – ou seja, não há mais motivo de segredo, todos saberão. Além de que ele é apenas um parêntese isolado dentro do enredo complexo do clã. No mais, não tenho interesse em cultivar fantasmas puxando meu pé pelas próximas madrugadas.

A parte em que eu entro nesta história aconteceu há uns dez anos atrás.

Eu estava desembarcando em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Inverno escuro, neblina fechada, eu subindo a serra para ir à casa de um tio-avô que ainda não conhecia. O plano era morar lá para terminar os estudos. Eu tinha por volta de 25 anos – aquela idade em que tudo parece definitivo: ontem você tinha 18, amanhã fará 40 e sua vida precisa desesperadamente de um rumo assertivo – e eu achava que sair de Salvador mudaria algo. Foi uma das tantas vezes em que eu achei que sair de Salvador mudaria alguma coisa. Nunca mudou nada. Mas eu ainda não sabia disso.

A porta do apartamento estava aberta. Encontrei um senhor quieto na varanda lendo o jornal. Uma bengala, uns olhos azuis, um sotaque português e um papagaio com o costume macabro de chamar pelo nome de pessoas que já morreram. O nome do papagaio era Inácio e o nome do meu tio – bem, não vem ao caso. Mas vamos chamá-lo de Tristão. Tristão recebeu-me com fotografias antigas, velhos casos da nossa família e conselhos sobre o sentido da vida. Foi uma tarde agradável, cheia de nomes e datas, dormi no quarto de hóspedes e sonhei em preto e branco. Os pedaços da conversa que eu não compreendia, atribuí ao jeito não-linear que os idosos têm de narrar suas coisas, mas me enganei – foram lacunas que só começaram a fazer sentido agora. Só quem nasceu numa família engendrada como a minha entende que há coisas que jamais serão faladas – todos podem passar gerações explicando sobre como as paredes andam desgastadas, sobre como o telhado já não é o mesmo, sobre como tem chovido nos últimos anos, mas ninguém anuncia que a casa vai cair. Até que a casa caia. No meio de uma frase que me parecia completamente desimportante, ele fez uma pausa para dizer que o que a gente se esforça para esquecer é o que domina a nossa vida. E deixou ficar um silêncio.

Foram apenas 24 horas em Petrópolis. Tudo que ouvi sobre a inutilidade de se tentar escapar do próprio destino parecia fatalmente direcionado a mim e eu decidi voltar para Salvador. Me despedi realmente agradecida. Dentro de algum tempo, soube que Inácio estava chamando o nome de Tristão junto com o de outros falecidos dentro da varanda vazia. Achei triste. E foi a última notícia que tive de lá.

Uma década depois, os advogados bateram na minha porta. Uma convocação para depoimento, perguntas que eu não sabia responder. Há seis meses estou montando este quebra-cabeça.

Pelo que entendi, foi assim.

Tristão nasceu em Portugal durante a guerra. Cresceu na Ilha de Madeira e emigrou ainda rapaz para morar com um tio do Rio de Janeiro. As cartas narram o seu deslumbramento com a cidade. As ondas quebrando no bairro de Laranjeiras, o verão que não terminava nunca – um calor de derreter catedrais, diria Nelson Rodrigues. Mas nada lhe tirava mais a respiração quanto os olhos verdes da esposa do seu tio.

Nós vamos chamá-la de Isolda. E devo dizer que não há uma linha sobre ela nas cartas à família, mas há no depoimento de uma ex-funcionária da casa: uma esposa muito alva com olhos muito verdes. Como num grifo de Machado: “aqueles olhos eram duas esmeraldas nadando em leite”. Segundo a funcionária, foi uma convivência que durou anos – as conversas depois do jantar não terminavam nunca, talvez como em A Missa do Galo: Isolda cogitando trocar os quadros da parede, sugerindo gravuras, ele comentando sobre personagens de ópera – num suplício silencioso, de cortar o coração. O tio não percebia, ocupado demais com negócios, política e amantes. Tristão pensava em fugir com ela. Um dia, de repente, o tio percebeu. Expulsou-o de casa depois de uma surra.

Nunca voltou a Portugal, não saberia como explicar o acontecido à família, seria um escândalo. Não tinha ninguém no Brasil. Morando num quarto de aluguel, Tristão trabalhou por muitos anos e, segundo ele, foram décadas que passaram como dias. Comprou um apartamento em Petrópolis, casou-se tarde e, na época, talvez por quê não tivessem filhos, meu pai, ainda criança, morou com eles por dois anos, onde o batizaram. Quando voltou para casa de minha avó, meu pai contava histórias sobre o papagaio Inácio. Só depois chegou ao apartamento de Tristão um telegrama que mudaria as coisas: anunciava que o velho tio havia falecido com dívidas e que Isolda havia sido despejada da casa de Laranjeiras.

Neste momento, caro leitor, devo fazer uma pausa retórica para perguntar: sabe qual a diferença entre uma novela e uma tragédia? É que, na novela, há um vilão. Já, na tragédia, o vilão é o acaso. São os reveses desbaratados do destino o grande antagonista de uma tragédia. E “o acaso é um deus e um diabo ao mesmo tempo”, não é mesmo? Pois bem.

Ele não dormiu naquela noite. Estava exasperado – escreveu a um amigo próximo. Passou a amanhã escolhendo as palavras. Na mesa do almoço, num tom moderado, leu o telegrama à esposa e sugeriu que acolhessem a tia em casa para que fosse morar com eles. Argumentou que a boa senhora o havia abrigado nos dias de juventude. Que o apartamento era grande. Que seria boa companhia.

Insistiu no assunto, mas sabia que aquilo estava errado. Sabia que era possível, inclusive, ajudar Isolda de alguma outra forma. O amigo, ciente do que estava acontecendo, escreveu desaprovando da ideia. Mas ele não podia escapar à tentação de tê-la novamente à mesa de jantar. Duas esmeraldas nadando em leite. Era a oportunidade de uma vida inteira. A esposa cedeu, inocente de tudo. E a chegada de Isolda iluminou a vida dele como um sol entrando num quarto.

“Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos”. As conversas depois do jantar eram as mesmas. Não eram jovens e estavam vivendo o auge de suas vidas numa fase em que a maioria das pessoas “vive com o verdadeiro rosto na nuca, olhando desesperadamente para trás”. Mas havia, outra vez, um triângulo. E, infelizmente ou felizmente, é dada à natureza feminina uma perspicácia que os homens desconhecem. A mesma paixão que cresceu durante anos invisível sob as barbas do tio de Tristão foi logo percebida pela esposa dele. Ela investigou o passado e a ex-funcionária da casa de Laranjeiras entregou tudo. Uma aberração. Uma imoralidade. Persuasão, Jane Austen, décimo capítulo. Dizem que, naquele momento, a emoção corroeu os nervos da esposa, lhe causou um mal súbito. Morreu pouco depois. Parentes diziam: morreu de desgosto.

E era o segundo escândalo que atravessava a vida dos dois.

Cartas desenrolam um novelo de culpa e tristeza. Eram duas pessoas sozinhas, não tinham ninguém. Continuaram no apartamento de Petrópolis. Os vizinhos comentaram a notícia, as pessoas do bairro espalharam boatos e, com o passar dos anos, o assunto foi caindo no esquecimento. Sempre há intrigas mais frescas e vexatórias a serem contatas. As antigas vão perdendo força e, de resto, a velhice cobre a todos com um manto de dignidade acima de qualquer suspeita. Todo pacato casal de idosos merece simplesmente ser deixado em paz.

Eles viveram juntos durante trinta anos.

Ele morreu em 2009 e, ela, em 2017. Na época em que estive lá, conheci Isolda na hora do jantar – mais idosa do que ele, mais disposta do que eu. Nunca oficializaram a união e até hoje há problemas com o inventário por causa disso. Perguntei por Inácio, o papagaio: depois da morte dela, teimava em voar sem destino pelas redondezas e, um dia, não voltou mais. Dizem que chamou tanto pelos mortos que os fantasmas vieram buscar. Ainda não sei exatamente por que apareci no testamento como herdeira do apartamento de Petrópolis e certamente o juiz irá questionar qual o meu laço com o casal em vida – será ridículo informar que foram apenas 24 horas de convivência, mas é a verdade.

Bem, ao menos até onde sei, esta é a história do meu tio Tristão. A história dos outros parentes eu não posso contar, mas são simplesmente inacreditáveis.

Às vezes, me pergunto se as coisas poderiam ter sido diferentes pra eles. E se ele tivesse voltado sozinho para a Ilha de Madeira? E se se aquele telegrama nunca tivesse chegado até Petrópolis? Jamais saberemos.

Confesso que, desde que esta Caixa de Pandora foi aberta, o que mais tem comovido esta minha alma irremediavelmente inclinada ao romanesco tem sido reconhecer o enredo dos clássicos em memórias de família. Hobin Hood, Os Maias, Os Belos e os Malditos, Tristão e Isolda. Como se tudo que já li na vida fosse um presságio da minha ascendência e não fosse necessário à ficção inventar mais nada, já que nenhuma criação pôde superar a realidade.

“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que os meus pais faziam antes que eu nascesse”. “Venho de longe, de uma pesada ancestralidade”. “As estirpes condenadas a cem anos de solidão não têm uma segunda oportunidade sobre a terra”. “Infelizmente, todo poder do mundo não pode mudar um destino”.

É isso.

Sinto que todos os meus dramas estão justificados. A minha genética é pura literatura.

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Minha mãe me apresentou uma música chamada Perto do Coração, de Nelson Ayres. Li que a canção seria inspirada no livro de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem. Por sua vez, sei que o título Perto do Coração Selvagem foi inspirado por um trecho de um romance de James Joyce, que até virou epígrafe da obra: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida”. Foi Joyce quem escreveu Ulisses, uma adaptação do poema Odisseia, composta por Homero. E a Odisseia é uma releitura de lendas primitivas relativas à Ítaca, ilha do Mar Jônico. Elas originaram-se da união dos mitos dóricos e micênicos, repletos de criaturas fantásticas.

O que existe em comum entre todas essas obras? Uma certa fusão do humano com o animal. Nesta mitologia ancestral havia uma criatura que era metade humano e metade cavalo: o centauro. Em Homero, o centauro Quiron é sinônimo de força e coragem. O herói Heitor, mesmo não sendo visto com equino nenhum, é chamado “domador de cavalos” e um importante episódio histórico é a Guerra de Troia, onde uma enorme escultura animal surpreende por estar repleta de homens por dentro. Em Joyce, o cavalo é referenciado no azarão que, mesmo fraturado, vence a competição: “As únicas pessoas descentes que vi em locais de corrida eram cavalos”. Em Lispector: “Sentia o cavalo perto de mim, como uma continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes e novos.” (1986, p. 75) Em outra obra da autora – onde o personagem, não por acaso, se chama Ulisses: “Existe um ser que mora dentro de mim, um cavalo preto e lustroso… inteiramente selvagem.” (1988, p.28)

Na História e na Literatura, o centauro representa o religamento do humano com o seu instinto, um retorno ao impulso, à essência, à verdade. É o regresso à Arcádia. Ouço Perto do Coração pensando neste monstro antigo. E lamentando, às vezes, a falta da outra metade.

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“E nesses dias tão estranhos
Fica a poeira se escondendo pelos cantos…”

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Ex-freira inglesa, uma das maiores historiadoras do nosso tempo, estuda a raiz dos conflitos religiosos entre os povos do mundo inteiro. Minha aposta para o Nobel da Paz de 2016.

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“Deus, Brahma, Nirvana. Não importa quais sejam as nossas opiniões teológicas, todos experimentamos algo semelhante quando ouvimos uma grande peça musical ou lemos um belo poema, e nos sentimos tocados por dentro, guindados para cima de nós mesmos. Tendemos a procurar esta experiência e, se não a encontramos em um local – numa igreja, por exemplo, ou numa sinagoga – buscamos em outro.”
Pág. 14

“Isso se deve, em parte, a nossa visão do mundo como um vale de lágrimas. Somos vítimas de desastres naturais, mortalidade, extinção, injustiça, crueldade. A busca religiosa geralmente começa com a constatação de que, como disse Buda, ‘a existência é errônea’. (…) Esta sensação de perda já foi expressa de muitas maneiras, evidencia-se na imagem platônica da alma gêmea da qual fomos separados ao nascer e no mito universal do paraíso perdido.”
Pág. 15

“Essa busca pelo sagrado e o culto a um local santo se relacionava com a nostalgia do paraíso. Quase todas as culturas possuem o mito da Idade de Ouro no começo dos tempos, quando a comunicação com os deuses era fácil e íntima.”
Pág. 32

“A história das religiões mostra que, em épocas de crise ou se convulsão social, as pessoas se voltam mais prontamente para o mito do que para as formas mais racionais de fé. Como uma espécie de psicologia, o mito consegue penetrar mais fundo que o discurso cerebral e tocar a causa obscura do sofrimento nas esferas íntimas do nosso ser. Mesmo hoje, vemos que o exílio vai além da simples mudança de endereço. É também um deslocamento espiritual. Tendo perdido seu lugar no mundo, os exilados podem sentir-se à deriva num mundo que, de repente, se tornou estranho. Sem o ponto fixo da ‘pátria’, uma desorientação fundamental faz tudo parecer relativo e sem sentido.”
Pág. 114

“Quando vemos um lugar onde ocorreu alguma coisa importante para nós, desaparece a lacuna entre o passado e o presente, que as simples informações verbais não conseguem eliminar.”
Pág. 232

“O processo de cavar o solo e chegar a uma santidade enterrada, então inacessível, constituía em si mesmo um importante símbolo de busca de cura psíquica. (…) Freud logo percebeu a relação entre a Arqueologia e a Psicanálise.”
Pág. 490

“Todavia, como demonstra a longa e trágica história de Jerusalém, nada é permanente ou garantido. As sociedades que sobreviveram por mais tempo foram as que se dispuseram a algum tipo de tolerância.”
Pág. 514

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(Karen Armstrong / Uma Cidade, Três Religiões)

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“And more, much more than this,
I did it my way.”
(Frank Sinatra / My Way)  

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Você vai me contar uma história. Onze da noite, garçons limpando o balcão, eu estou no lugar combinado e, de alguma forma, eu já sei disso. Você vai chegar, voz baixa. E vai olhar para os lados antes da primeira frase, por que essa é a sua maneira de procurar as palavras. Se respirar fundo, o assunto é longo, se gaguejar, é grave. Remexe no guardanapo, nas chaves, no cinzeiro. Descruza os braços. Pondera.

Uma vez, a professora pediu para cada aluno descrever a Branca de Neve. Escrevi órfã, pálida, envenenada. Ela mandou chamar a minha mãe. Desde sempre, este esforço para acompanhar o enredo dos textos, tantas vezes o que está escrito não interessa – só a mão suspensa sobre o teclado, as pausas. O interdito que escapa depois das reticências. O baixar dos olhos antes da resposta – o mundo do outro, essa terra estrangeira. Eu tenho tentado chegar mais perto. Sondar a tudo sem movimentos bruscos, sem tropeçar sobre esta ponte frágil. Faz de conta que estamos falando sobre Kant. Faz de conta que estamos falando sobre Bach. Dois centímetros e meio por ano é a acumulação média de detritos pelo tempo, num século muros e cercas dissipam-se em nada. Narramos sem defesa sobre qualquer memória passada e a poeira dos anos assenta sobre o mármore da mesa.

Tantas perguntas. Cada lembrança nos dá um lugar aonde ir quando precisamos continuar aonde estamos. Se não tivermos, em algum canto do coração, um quarto de brinquedos perdido, um pomar longínquo, o quê nesta vida ainda nos restaria? Fala, fala, fala, quase não respiro. Recolho um mosaico confuso, baú chinês, caixa de Pandora – nomes, mapas, segunda, terça, novembro, outono, 1985 – faria alguma diferença se eu dissesse agora que o que houver depois não fará nenhuma diferença? Você vacila antes de falar, te escapa o gesto. Adivinho a paisagem por trás da janela. As histórias banais, a nostalgia do novo – recordações alheias me matam de saudade. Faz de conta que não era longe. Faz de conta que não era tarde. Faz de conta que o futuro cumpriu com tudo o que foi prometido. Me conta sobre o seu cachorro, sobre o seu boneco, o quintal de casa. Agora eu era o seu diário, confessa uma travessura. Divide qualquer coisa antiga que você nunca se esqueceu. E o seu passado não será só seu. E a sua vida não será só sua.

Garçons limpando o balcão, eu aguardo no lugar de sempre. No futuro, talvez eu aguarde em algum lugar hipotético da sua memória. Se você soubesse que chegaria até aqui, teria feito tudo da mesma maneira?

Hoje, senta aqui comigo. Me apresenta o céu e o inferno. Me conta a sua história.

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