








(07 de março de 2025)
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(01 de outubro de 2021, 30 graus. Só não vou dar a localização para ninguém porque eu quero esse lugar só para mim)
Posted in raspas e restos (crônicas), vasto mundo (viagens), tagged guerra, mariana, marianamiranda, marrocos, miranda, reportagem, saara, viagem on março 2, 2021| 3 Comments »
Hoje, há exatos dez anos atrás, eu estava na África, no deserto do Saara, na fronteira com a Mauritânia. A gente havia cruzado o Marrocos de jipe durante o dia e, quando a estrada acabou, continuamos o percurso de camelo. Cruzar a divisa de um país para o outro no meio da madrugada sobre um camelo já seria uma aventura por si só, mas não era só isso. O Saara estava em guerra.
Eu precisava de fotografias e depoimentos de como estavam as comunidades. Pessoalmente, acredito muito nos movimentos de descolonização, inclusive também apoiava o reconhecimento do Saara Ocidental enquanto país soberano, depois de anos de domínio espanhol e marroquino. Esse é um conflito antigo e a independência plena não aconteceu até hoje, mas em 26 de fevereiro de 2010, embalados pela Primavera Árabe, os confrontos recomeçaram e duraram até maio de 2011. Neste período, estive pelas mediações três vezes.
Naquela noite específica, os beduínos montaram uma tenda e ascenderam uma fogueira. O céu estava tão incrivelmente estrelado que me fez elaborar várias teorias aleatórias – tipo, deve ser por isso que a estrela e a lua são símbolos otomanos, observe que os países pós-otomanos estão em torno de desertos e quase todos têm estrelas em suas bandeiras (Marrocos, Mauritânia, Turquia, Paquistão, Jordânia, Argélia etc.) por que a noite num deserto é realmente cinematográfica, olha para isso, está tudo explicado.
Os beduínos estavam cantando e dançando à volta da fogueira, depois serviram um prato de cordeiro com cuscuz em quantidade obviamente insuficiente para doze pessoas e eu fiquei esperando para perguntar aonde a gente iria dormir. Era ali mesmo, na areia. Todos juntos. Estávamos no auge do inverno e, se os doze desconhecidos não dormissem fortemente abraçados, não sobreviveriam ao vento e ao frio. Apenas.
Foi uma noite insana.
A temperatura caiu de repente e eu não conseguia sentir nem os meus dentes. Não tenho ideia de quem eram as pessoas que eu abraçava com vigor e que me impediram de morrer de hipotermia. Eu estava usando todas as minhas roupas sobrepostas e, depois que todos dormiram, como se não houvesse problemas o bastante, eu precisei me levantar para procurar um banheiro. Não preciso dizer que não havia banheiro. Fui me desvencilhando de braços e pernas de estranhos até conseguir ficar de pé. Aí eu olhei em volta.
Eu nunca tinha visto nada parecido.
Uma madrugada clara e brilhante. Extraordinária. A noite no deserto não era de céu negro como a noite na cidade, era de um azul forte com manchas roxas, um emaranhado de galáxias. A lua cheia sobre aquele mar de dunas por todos os lados, como se grandes ondas tivessem virado areia um segundo antes de quebrarem na praia. Um enorme vácuo, só o vento forte indo do oriente para o ocidente, um silêncio de tudo. Se você se concentrasse por um minuto, poderia ouvir a respiração de Deus.
Depois que eu voltei a deitar, fiquei com os olhos abertos para o céu. Entregue no silêncio do vazio absoluto. Como James Joice, “Estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.
Levantamos antes do nascer do sol para desmontar a tenda, subir nos camelos e seguir para Ouarzazate, uma cidade feita de barro. No caminho, eu pedi para descer, queria tirar uma foto do grupo. Eu não contava que a areia estava batendo na minha coxa e que eu teria que ir nadando naquele mar de areia para acompanhar a fila de camelos que seguia sem nenhuma dificuldade. Tinha que ser rápida. Foi aí que fiz essa foto que está, hoje, ampliada num quadro da minha sala. Tanta coisa aconteceu nesta viagem, mas essa é a melhor recordação que eu trouxe de lá. Eu adoro essa foto.
Por coincidência, dez anos depois, eu estou exatamente diante deste quadro, trabalhando. O quadro está dentro de um apartamento comum, dentro de uma vida padrão. E eu estou escrevendo um artigo sobre um outro país africano, também em processo de descolonização – este outro, felizmente, num estágio mais avançado. Às vezes, eu interrompo o trabalho para levar o lixo lá fora. Ou para lavar os pratos. Ou para atender o interfone. E o porteiro que me interfona não imagina que a senhora do 802 estava na Guerra do Saara durante a Primavera Árabe.
Dizem que, depois que os primeiros astronautas voltaram da Lua, eles entraram em depressão até o fim da vida. Como se, depois de terem experimentado um evento tão extraordinário, a existência rotineira tivesse deixado de fazer sentido para eles. E eu entendo. Mesmo. A verdade é que eu vivenciei experiências incríveis durante quinze anos e, depois, fiz escolhas incompatíveis com aquele formato de vida. Eu deixei o trabalho de campo em 2016. Entendo que tudo o que eu produzo hoje, daqui do computador, também é importante e necessário. Que há muitas formas de contribuir com a engrenagem de um planeta em rede. E que ninguém pode ter tudo nessa vida. Eu sei.
Eu compreendo perfeitamente tudo isso.
Mas ainda há as noites de lua. E ainda há esse quadro pendurado na parede.

Posted in havaiana de pau (day life), tagged confinamento, covid, mariana miranda, quarentena, sem assunto, tédio, trabalho, viagem on julho 28, 2020| 1 Comment »
Hoje, eu estou sem assunto. Digo isso com uma tristeza certamente maior do que a sua, que também deve estar isolado e sem assunto. Por que me dou conta de que não cultivei outras habilidades. Sei que cada pessoa potencializa o que tem de melhor – alguns são belos, outros ricos, outros atletas – e há quem, como eu, não tenha pontuado em nenhum dos gabaritos. Eu aprendi a puxar assunto. Apenas.
Foi uma estratégia típica de qualquer criança gordinha sem maiores atributos para ganhar a afeição dos mais velhos: ser simpática. Eu me equilibrava sobre os silêncios mais constrangedores e podia transformar qualquer diálogo em entretenimento. Cresci sendo convidada para festas de adulto aonde não conhecia ninguém, só para entrar em ação caso o ambiente ficasse chato. Voluntários me levavam para os asilos para alegrar o dia dos residentes. Quando virei professora da faculdade, me chamavam de stand up comedy e ganhei até o crachá de Miss Simpatia no escritório. Se falar bobagem fosse profissão, eu seria presidente do sindicato. Era isso o que eu sabia fazer.
Mas, hoje, eu estou sem assunto.
Sei lá, acho que as notícias terríveis do jornal e a sobrecarga de trabalho andam esvaziando a minha mente. A solidão também. Como assim, meu alecrim dourado? – pode perguntar o leitor confuso, já que eu não fiquei sozinha NEM UM MINUTO em ambiente NENHUM nos últimos anos. Explico. Mentira, não explico. Não sei dizer por que estou me sentindo sozinha. Talvez eu não tenha nada de novo para falar e repetir as mesmas coisas seja o mesmo que ficar calada.
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Estou tendo problemas com isso por que eu vivo de criar conteúdo. Acredite, estou tendo dificuldade até para colocar as crianças para dormir. Faz tempo que eu desisti de ler os clássicos – não sei como explicar como a vovó da Chapeuzinho Vermelho foi arrancada da barriga do lobo vivo sem que tudo pareça sangrento e macabro, a cena dos três porquinhos preparando um caldeirão para escalpelar o lobo também não me parece muito pedagógica – então eu simplesmente contava como foi o meu dia. Contava do meu trabalho, dos meus amigos, contava que eu corri atrás do caminhão de lixo para fazer selfie com os garis, que me emprestaram um patinete para procurar meu carro no estacionamento do shopping. Elas adoravam. Mas acabou. Quando chega a hora da historinha, eu não tenho mais o que falar. Agora eu conto carneirinhos
lentamente
até o número
du
zen
tos.
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Com algum atraso, estou me dando conta que tinha uma vida até interessante. Repleta de todos os problemas do mundo, menos o tédio. Não há malabarismo cognitivo que preencha uma agenda sem acontecimentos, o que tem para conversar se você não fez nada de doido a semana inteira?
– como vai você?
– bem, e você?
– bem também.
– que bom.
– …
(Silêncio, no hay banda).
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Por fim, o meu diário do confinamento está sendo um fiasco, não passei da décima página, me recuso a ficar narrando que, hoje, fez frio e a roupa do varal não secou. Que eu trabalhei bastante no computador. Que inclusive, hoje, eu até fiz um bolo!
(Essa parte do bolo foi figurativa. Eu nem sei ligar o forno).
Imagino uma vida paralela, acontecendo em algum lugar. Misturo passado e futuro, um futuro maravilhoso. Inverno de 2023, um dia de chuva em Amã. Uma vida dinâmica, cheia de acontecimentos. As vidraças embaçadas por causa do fumo e da lareira, eu tomando um chá e conversando sobre os mouros, sobre a Greta, sobre a Florbela, ouvindo o moreno narrar sobre Salinger – quem quer flores depois de morto? – sorrindo com 38 dentes brilhantes para mim, todo aquele ambiente de ruas milenares lá fora e uns carros para queimar, por que revoluções não se deflagram sozinhas. Nos jornais, notícias de um mundo melhor acontecendo. Outra xícara de chá, outra pauta despachada. Olha, a chuva parou agora. Pega a mochila. Vamos voltar para a estrada.
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E, aí, eu faria um bom diário. E trabalharia bastante, solta pelo mundo. Prometo em breve voltar a fazer a única coisa que eu sei fazer. Lamento por hoje, meu amigo, mas eu estou completamente sem assunto.
Posted in havaiana de pau (day life), vasto mundo (viagens), tagged falamarimiranda, Lisboa, mariana miranda, Portugal, viagem on abril 22, 2019| 3 Comments »
E agora Inês é morta.
Naquele momento em que eu tomava fôlego para dizer exatamente o contrário. Num contexto que nada tinha a ver com a sorte Inês de Castro nos jardins de Coimbra, essa expressão que eu também costumava ouvir no Brasil, ainda que a maioria dos brasileiros não tenha ideia de quem seria Inês e por qual motivo veio a falecer. Às vezes, ouvindo o modo de falar daqui, reparo nas frases que eu repetia sem ter ideia do significado.
Inês é morta.
Em Portugal, não se diz que alguém está morto, porque não se trata de uma situação temporária. Inês está juíza, está fumante, está corintiana e está católica por que ela pode, um dia, deixar de ser. Mas Inês é mãe, é filha, é negra e é alta para sempre. Está esposa de alguém, é viúva de alguém. Está amiga, é irmã. Está jovem, é velha. Está viva, é morta.
Eu não quero ficar.
Naquela fase em que o lugar começa a parecer seu. E já há um vagão preferido no metrô e planos para as férias com a família: não vai mais haver férias. Sem mais idas e vindas. Em inglês, o verbo to be não faz distinção entre ser e estar e eu nem imagino um mundo onde não haja diferença entre estar sozinho e ser sozinho, entre estar bêbado e ser bêbado. Só quem foi alfabetizado em português poderia entender, desde a primeira infância, que o lobo é mau e está com fome.
“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”
Pareceu repentino. Ideias vão se amontoando pela casa, te arrastando para a rua, te puxando pelo braço e, quando você se dá conta, está na porta do aeroporto. Tirando os fins de semana, quantos dias faltam? Se eu fizer uma escala no México, são quantos dólares a mais? É preciso encerrar a conta no banco e na telefonia? Mas as portas do metrô abrem-se e aquele labirinto de gente e a claridade da rua fazem tudo parecer irreal. Subo Alfama levando o leite e o pão.
Faltam 20 dias e a escala no México custa 500 dólares.
A sua foto no passaporte me lembra um verso de Drummond: também já fui brasileiro, moreno como vocês. A foto do meu passaporte parece o cartaz de um cabaré no Alecrim: Valéria vai levar-te à miséria. Fiquei esperando no salão da embaixada, todas as estátuas olhavam para mim. Eu não precisei dizer nada. Depois de um silêncio devastador, você perguntou se eu estava fazendo a escolha certa. E quem neste mundo sabe se está fazendo a escolha certa??
“Se, em certa altura, tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita. Se, em certo momento, tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim. Se, em certa conversa, tivesse dito as frases que, só agora, no meio-sono, elaboro – se tudo isso tivesse sido assim, seria outro hoje e talvez o universo inteiro fosse insensivelmente levado a ser outro também”.
Em 1755, Lisboa passou por um terremoto. Que provocou um tsunami, que causou um incêndio, que contaminou a água e culminou na peste. O trágico não vem a conta-gotas, diria Guimarães Rosa. Hoje, olhando para essas ruas impecavelmente restauradas, penso que a gente se recupera de qualquer coisa. Ou não se recupera de nada e segue aquela lógica do Fitzgerald: um homem não se recupera de tais estremecimentos – ele se torna uma pessoa diferente e, eventualmente, a nova pessoa encontra coisas novas para se preocupar.
O problema de morar numa cidade indubitavelmente bonita é que você nunca sabe se realmente gosta do local ou se ele apenas te conecta com seus arquétipos de perfeição. É uma gaiola dourada. Meus dias de merda no último inverno pareciam cenários do Pinterest. Uma vez, no muro de um país do norte, havia um grafite: coisas extraordinárias estão sempre acontecendo em outro lugar. A sentença parecia deslocada por que estava escrita numa paisagem fabulosa, num país de primeiro mundo, como alguém poderia desejar estar em outro lugar? Vejo que, em qualquer cenário, a frase cabe tranquilamente.
Foucault diz que Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação. O coitado não precisava saber de tanto. As frases mais difíceis que ouvi na vida tinham conjunções adversativas de moer o espírito e, no final das contas, nem eram necessárias. Decisões ruins já falam por si, mas uma frase errada num momento crítico só fixa legenda à tragédia, nos dá material para mastigar neuroses pelo resto da vida. Recuei para não pronunciar nenhuma idiotice. Talvez, um dia, eu saiba exatamente o que deveria ter dito no salão da embaixada. Dispomos de uma gramática com mais de 400 mil palavras e, até hoje, eu não consigo pensar em nenhuma que não quebrasse o coração de alguém.
“Quer morrer no mar, mas o mar secou.
Quer ir para Minas, Minas não há mais.”
Quando cheguei, eu nunca tinha ouvido falar de Sintra. Fui conhecer com duas colegas também novatas. O desembarque do trem foi um arrebatamento eufórico: as casas, as lojas, tudo parecia incrível, corremos por aquela praça a tarde inteira. No dia seguinte, nos explicaram que a gente não havia chegado à Sintra, aquela era a praça do desembarque, uma área de serviços, a cidade ficava mais à frente. Adorando o engano, respondi rindo: queridos, parem, a gente não precisava saber disso!
“Vou passar a noite em Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência
Sempre, sempre, sempre
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma.
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida.”
Não sou boa em abrir o jogo. Arregalo os olhos, aceno sinais, mas não consigo dizer ao outro que o chapéu dele está pegando fogo. Em francês, não é possível construir uma frase sem que o sujeito esteja exposto: je, tu, il. Mas, em português, dá pra escrever uma enciclopédia usando apenas o sujeito oculto: descobri tarde, tentou muito, quebramos a cara. Quem? Eu, ele, nós. O interlocutor compreende.
Ou assim a gente supõe.
Em árabe, há mais de 100 palavras para designar camelo. Em inglês, o substantivo mais repetido é tempo. Em português, a palavra mais falada é coisa, que pode ser usada para definir camelo, tempo, dinossauro, asteróide ou qualquer outro substantivo do nosso idioma. A nossa palavra mais importante não tem significado próprio, ela sinaliza algo que já estaria evidente no contexto.
Ou assim a gente supõe.
Num dos nossos primeiros passeios, eu tirei uma foto sua na Regaleira. Você tinha 25 anos. Todos os anos em que voltei, refiz a foto no mesmo lugar. Vi aparecerem os seus primeiros óculos, os primeiros fios brancos, as primeiras preocupações. Sempre um perfil fugidio, dessas belezas que vão mudando com a paisagem, num fluxo imprevisível de dilúvio, calor, granizo, primavera. Ajusto o foco, de novo. Dessas metamorfoses que a gente não sabe aonde vão dar e quer estar ali para ver.
Quando ainda cursava Antropologia, me falou sobre o conceito de não-lugar, de Marc Augé. Espaços que não são um destino em si, mas um local de trânsito: um corredor, um elevador, uma rodoviária, uma sala de espera. Ninguém diz que está saindo de casa para ir ao viaduto, eles são um preâmbulo, um hiato. Como esta ponte onde estamos passando agora? Sim. E por quê você quis pesquisar sobre isso? Não sei. Na Guerra Fria, quando a União Soviética e os americanos resolveram travar uma guerra, não o fizeram em suas casas, mas no Vietnã, na Alemanha, no Afeganistão. Acho que países inteiros já foram considerados um não-lugar. E penso que todo mundo já foi um hiato na vida de alguém.
“Quando estão juntos, satisfaz-se em fitá-la, em ouvi-la, em observar-lhe as pupilas e o movimento dos lábios a um metro de distância dos seus olhos. Enquanto fala com ele, Mariana pertence-lhe.”
Hugo Mãe conta num romance que conheceu o Esteves num asilo, aquele que é citado por Fernando Pessoa no poema Tabacaria: é o Esteves sem metafísica. Esteves seria um rapaz de entregas que trabalhava na rua onde o poeta costumava fumar e, anos depois, ele teria ficado orgulhoso de ter sido citado, ainda que de maneira irônica: sem metafísica? Que inverdade! Achei o caso engraçado. Parei um minuto para pesquisar se era mesmo real este encontro no asilo e o que teria acontecido depois, mas algo me deteve. A história era ótima. Tão portuguesa. Carregar esta dúvida seria um privilégio.
“Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais”
Encantos deste inverno: uma película de gelo sobre a janela de manhã. O sótão alugado, a experiência de viver dentro de um telhado. Todos os reencontros, mesmo os inesperados e constrangedores. Hambúrguer com cerveja no café da manhã. A biblioteca da universidade.
Tristezas deste inverno: saudades da família. Uma noite de chuva dentro do transporte público sublinhando o desconforto burguês de não possuir um carro. Xenofobia nas lojas, nos bares, no trânsito. O aquecedor que vazava gás e fazia sonhar com o Terceiro Reich. Uma frase do filme de Curtis Hanson: Esta é a cidade dos anjos e você não tem asas.
Sento-me sobre o telhado, de madrugada. Fito o Tejo lá embaixo, como um deus que descansa no sétimo dia da criação. Acho que tenho com essa cidade uma dessas relações obsessivas que possuímos com todo mundo que já nos deu o fora. Faculdades que nos reprovaram, festas em que fomos barrados, empregos que nos dispensaram, filhos da puta em geral. Me pergunto se não voltei só pra ter a oportunidade de mandar tudo isso à merda. É possível. Sou capaz de apontar um canhão para matar um mosquito.
“But I’m a creep, I’m a weirdo.
What the hell am I doing here?
I don’t belong here”
Desculpa por não querer ficar. Desculpa por ter chegado tão longe para, no final, dizer que preciso da minha aldeia. O que a gente é e o que a gente está são coisas diferentes, então eu também entendo o seu silêncio – nós somos próximos, mas estamos distantes. Agora, da janela do táxi, a avenida da Liberdade passa tranquila, até amistosa e, mesmo o aeroporto – onde já embarquei mais de vinte vezes e nunca me pareceu um lugar fácil ou familiar – já não assusta. Todas as coisas parecem acessíveis quando a gente já não precisa mais delas.
“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”
É o fim de uma era, gajo. Aqui se acaba a nossa década de Lisboa.
É a última chamada.
E agora Inês é morta.