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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

Minha geração anda pagando caro por objetos retrô. Uma cadeira Eiffel vale mais do que uma cadeira moderna, uma poltrona Charles & Ray Eams custa o dobro de outras mais confortáveis. A primeira edição de uma revista, um vídeo-game Atari, uma máquina de escrever de ferro: nenhuma relíquia é fácil. A prova maior desta relação irracional é a tolerância aos defeitos destas antiguidades – as formas desproporcionais da geladeira vintage ganham status de charme e até o chiado típico dos discos de vinil vira um benefício. Na contramão do consumismo, a busca pelos objetos “insubstituíveis” é trabalhosa. E eu entendo. Memória afetiva é isso. As pessoas pagam caro para resgatar qualquer testemunha da sua própria história.

Minha geração também anda pagando caro por pessoas retrô. Reaver laços antigos torna-se difícil quando há tantas novas opções que parecem mais fáceis e adequadas às necessidades de agora. E mais acessíveis também. Dá trabalho descer aos sebos empoeirados, garimpar porões que a gente nem sabia que ainda existiam. Procurar a edição original de um romance, colar fotografias, reencontrar velhos defeitos que, agora, parecem até benefícios. Só por que são únicos. Mas tanto esforço para colocar aquela máquina antiga para funcionar vale a pena? O afinco de restaurar tanta velharia é um bom negócio? 

As vitrines seguem frescas, fáceis, disponíveis. E esse fetichismo pelos complicados corredores de antiquário denuncia qualquer coisa que eu não sei explicar. 

Minha geração anda pagando caro pelo luxo singelo de ter uma história em comum. Seja com pessoas ou com poltronas. Nenhuma relíquia é fácil.

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Um encontro marcado para hoje mesmo dificilmente será produtivo. Melhor deixar para amanhã. A antecedência de uma semana é o ideal. Acredito que um pouco de inacessibilidade é necessária para peneirar a qualidade dos encontros – discerne o interlocutor que deseja conversar com alguém e o interlocutor que deseja conversar com você.

Talvez seja esse o último degrau para a idade adulta: evitar uma vida rodeada de figurantes. Você se economiza numa mesquinhez discreta, ponderada. Não confundir com se colocar numa ilha deserta: ocasionalmente, é importante ter com quem comentar as notícias do jornal, ouvir uma piada, aceitar sugestões sobre um novo modo de picar cebolas. Você até comparece às festas, cumprimenta a todos, mas escolhe uma mesa na varanda. Longe da pista, longe da confusão, do som alto. Longe da festa. Você prefere uma operadora de celular pouco conhecida, decide morar num bairro difícil e a sua casa não tem wi-fi. Mas a porta segue aberta.

Não digo que a pessoa se ponha num pedestal – pode dar a impressão errada e talvez você não valha o esforço da subida. Mas acredito que seja esse o preço por um passado de extrema sociabilidade – certa impaciência para diferenciar amigos, conhecidos e o resto da raça humana. É muita gente e você nunca sabe quem veio para ficar. Na dúvida, aceite todos os convites. Jamais seja evasivo, sugira local e data. Deixe o outro decidir se ele quer mesmo que aconteça. Esteja sempre disponível – pra daqui a uma semana.

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Poltrona de veludo, tapete felpudo e música ambiente. Capuccino, conforto e tranquilidade. Ando frequentando um salão de beleza só pra ter um minuto de sossego.

Descobri que este é um argumento razoavelmente aceito para quem precisa se esquivar de um emaranhado de compromissos. Reunião? Palestra? Balanço? Infelizmente, hoje tenho hora marcada no salão de beleza. E pronto. Foi uma descoberta tão boa que deu vontade de voltar no tempo só pra ter usado desde sempre.

E como é bom respirar naquela bolha de tranquilidade. Mesmo que, às vezes, com alguma dificuldade para entender o que se fala lá dentro. Passo boa parte do tempo balançando a cabeça bovinamente sem saber a diferença entre cauterização, ionização e queratinização, me afligindo por ter que escolher entre blindagem, frisagem e balaiagem. Sabia que existem 105 tipos catalogados de tintura vermelha? Descobri decepcionada que o manjar de tapioca que me ofereceram era o nome de um esmalte e que a famosa francesinha nunca foi uma das funcionárias.

Mas estou gostando da experiência. A ignorância é uma bênção. É incrível como todas ali sabem exatamente o que é melhor pra mim: o melhor creme, a melhor selagem. Como num clã onde as irmãs mais velhas preparam a novata para uma espécie de rito de passagem, elas debatem entre si sobre qual o melhor formato para o desenho da minha sobrancelha. Eu nunca havia me dado conta de que possuo sobrancelha. Conferem o tom da pele numa tabela cromática, rascunham com grafite, ponderam. Acho solene. Quase aristocrata. Deito no divã e espero o veredicto como quem aguarda a escolha do próximo papa.

A verdade é que, como tantas outras mulheres nesta fase da vida, eu estou cansada. Atolada numa rotina onde é necessário ter iniciativa o tempo todo. É bom recostar num lugar onde não preciso ter todas as respostas. Ao menos por 50 minutos. Descobri no salão de beleza, para além das engrenagens históricas de objetificação feminina e precarização do trabalho, um reduto onde mulheres cuidam e se deixam cuidar. Onde tocam e se deixam tocar. Onde se perpetuam os rituais da tribo.

Desde então, como uma escoteira obediente, eu aceito todos os conselhos. E acato o protocolo inteiro desta pequena maçonaria. Poltrona de veludo, tapete felpudo e música ambiente. Às vezes, penso que todas as clientes compartilham do meu segredo.

Eu nem quero procedimento nenhum. Eu só quero um minuto de sossego.

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Em 2015, eu arranjei um emaranhado de problemas para a minha própria vida. Veja bem. Daí, naquele momento insalubre, tudo que eu considerava minimamente razoável é que os céus convergissem magicamente numa solução. Eficiente. E rápida.

Porém, os céus não se abalaram. Fui solenemente ignorada. E toda pessoa incorrigivelmente egocêntrica sabe que os astros não possuem esse direito, não é mesmo? Mas o Divino bancou a egípcia. Fiquei chocada com o descaso do universo.

Então, logo depois, em novembro, num evento não relacionado, aconteceu a maior tragédia social e ambiental do país: a queda da barragem do Fundão, em Minas Gerais. Um incidente terrível. Por coincidência, numa cidade que se chamava Mariana. Do dia para a noite, o cosmos inteiro parecia interessadíssimo pelos problemas de Mariana.

Em todas as manchetes: a tragédia de Mariana. No telejornal: saiba mais sobre Mariana. Nos portais, nos blogs, nos memes: Mariana precisa de nós, todos por Mariana, jamais esqueceremos Mariana. Gente na rua andando com a camisa “vamos salvar Mariana” só me dava gastura e o dia inteiro ouvindo os gritos dos locutores de rádio: o que vai acontecer com Mariana? E o drama de Mariana?? Haverá saída para Mariana?? Precisamos falar sobre Mariana!!!

Eu. estava. enlouquecendo.

O que eu chamei de “descaso do universo” se transformou numa turba de milhares de pessoas oferecendo socorro e auxílio e consolo ao mesmo tempo por todos os lados num pesadelo claustrofóbico e eu já nem queria mais ajuda nenhuma, eu só queria que PARASSEM DE ME CHAMAR E ESQUECESSEM O MEU MALDITO NOME E ME DEIXASSEM EM PAZ PELO AMOR DE DEEEUS.

Gente, que fase.

Mas, temos que reconhecer, o Divino tem senso de humor.

Por fim, com o tempo, o nome mais repetido do ano foi sendo deixado em paz. E outras notícias entraram em cena, felizmente. Então, passaram a divulgar a reaproximação de um ciclone sobre a costa do Atlântico Norte. Era a volta de um furacão antigo. E ele se chama Katrina.

Mas, gente, quem é essa Katrina? Por que se chama Katrina?? De novo notícias de Katrina?? Quem é essa maldita Katrina???

Odeio ouvir falar sobre o furacão Katrina. Não é nada fácil ser o centro do universo.

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Os bebês enxergam mal. Eu não sabia disso. Quando nascem, eles só enxergam o que está a alguns centímetros de distância. Dizem que é comum que os adultos estejam ansiosos para mostrar o mundo aos recém-nascidos: abrem as janelas da casa, ligam a televisão, vão ao parque mostrar as árvores. E a criança vai olhar a tudo e sorrir, mas ela não está vendo nada. No máximo, vendo você. Ela está rindo da euforia que aquela paisagem causa em você.

A percepção de profundidade chega aos quatro meses. A gradação de cores, aos cinco. Aos oito meses, já dá pra reconhecer alguém do outro lado da sala, mas as ruas, os carros, tudo ainda parece nublado e confuso. Como no Mito da Caverna, de Platão, quando ouve um ruído, o bebê procura o seu rosto para saber o que se passa lá fora. Se o seu olhar for de encantamento, ele vai acreditar num mundo encantador.

Os bebês enxergam mal, mas reconhecem vozes e odores desde a gestação. É a nossa memória mais remota: música e perfume. Enxergar é uma conquista gradativa – num dia, a descoberta fabulosa do formato da própria mão, veja só. No outro, horas de hipnose por um ventilador ligado. De repente, o milagre epifânico de um guarda-roupas aberto: tecidos e estampas e cores inacreditáveis, texturas confusas, uma explosão de informações sem definição que se abre e se fecha miraculosamente. Bebês te olham pedindo explicações. Eles buscam em você legenda para tudo.

Porém, com um ano, a criança passa a enxergar plenamente. E aquele deslumbramento pelo banal vai ficando mais raro. Não sei dizer exatamente quando a gente deixa de se surpreender com o mundo e se torna mais um adulto entediado. Quantas variáveis precisam convergir para que um adulto se sinta eufórico? Houve um tempo em que assistir o ventilador era realmente um programa legal.

Às vezes, penso que só os bebês são felizes. A gente nasce enxergando mal e, quando passamos a ter uma visão plena sobre as coisas, elas começam a ficar desinteressantes. Vai ver a alegria não esteja nas coisas em si. Bebês não podem enxergar as belezas do mundo, precisam encontrá-las na expressão de outra pessoa. Talvez um rosto em festa seja melhor do que a festa. E a vida seja mais bonita pelos olhos dos outros.

Os bebês só enxergam a paisagem de dentro. Cultive em seu olhar um mundo maravilhoso.

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Hoje, ela publicou uma foto da Vivian Maier. Ontem, um artigo sobre Tolstói. Na semana passada, uma tirinha de Laerte que me deu vontade de pedir o endereço dela só pra ir lá dar um abraço. Dessas pessoas que tiveram uma passagem especialmente inexpressiva pela minha vida, mas que, duas década depois, fazem com que eu me arrependa de não ter trocado mais papéis de carta ou emprestado a caneta de 12 cores só para poder, sei lá, puxar assunto na posteridade.

Mas nem todo mundo faz bonito nas redes sociais. Tem gente que era prodigiosa aos 13, mas que a convivência online revelou uma inexplicável decadência intelectual, numa gradação variável entre o extremismo político-religioso, o consumismo ostentação e as frases motivacionais /Nicholas Sparks /piada do pavê. Interações que já me fizeram repensar muitas escolhas da juventude e que, certamente, vão fazer todas as minhas decisões de hoje parecerem absolutamente babacas em 2027. Esquecer é uma dádiva. É aquela história bíblica da esposa de Ló: quem olhar para trás vira estátua de sal.

Mas alguém segura a porta do elevador para você em 2006 e vocês passam o resto da vida recebendo notícias dispersas um do outro, foto das férias, dia da formatura. Para sempre. Casamentos acabam, nações se desintegram, só seus contatos do Orkut migram para o Facebook, que migram para o Snapchat e persistem pela eternidade. A rede mundial de computadores é o nosso Zaratustra, de Nietzsche: a lei do eterno retorno. Se as pessoas entravam e saíam da sua vida, agora elas simplesmente se acumulam e não há nenhuma possibilidade real de renovação de ambiente. Tanto faz mudar de emprego, de cidade, de planeta em busca de novas paisagens se, de lá, você vai acessar as mesmas redes sociais – e toda publicação será avaliada pelo seu chefe da época do estágio, pela sua avó, pela sua ex e pelo seu dentista. Ou seja, pela mesma platéia de 1990. Não importa onde você vá, você nunca saiu de casa.

Na sua timeline não existe público x ou y, há o grande público – e escrever para todos é sempre escrever mal. Se você quer ser popular na internet, será necessário emitir opinião sobre todas as coisas sem se comprometer com nenhuma. Como na publicidade ou nas gravadoras ou no cinema hollywoodiano, a necessidade de atrair uma platéia excessivamente heterogênea faz o criador optar por uma linguagem fácil, inteligível a qualquer retardado. Não arrisque dizendo algo novo. Toda interseção é estreita, é preciso caminhar com cuidado.

E tente agradar a todo mundo. Isso vai te enlouquecer. Nas mesas de bar, quando o assunto resvalava para as nossas burradas nesta estrada longa da vida, eu costumava dizer que minha existência começou a dar errado depois que eu deixei de apresentar o meu boletim para minha mãe. Observe, era um paradigma de sucesso palpável – um objetivo plenamente realizável e destinado a um público específico. E talvez seja essa a mágica da vida acadêmica, o progresso em cadência ordenada – tipo, se este ano eu estou na sétima série, veja só, no ano que vem devo ir para a oitava. Que sensação alentadora. Que paz de espírito essa ideia de crescimento gradual e administrável: primário /ginásio /segundo grau + graduação /mestrado /doutorado. Uma vida dentro dos trilhos. Fora da sala de aula, a rotina adulta segue um fluxo de perdas e ganhos emaranhados que não nos transmite nenhuma sensação de crescimento e você nunca sabe exatamente o que mudou de 2014 para 2015. Às vezes, desconfio que essa lacuna deixada pelo boletim escolar faz muita gente buscar parâmetros financeiros de progressão – há dez anos eu tinha um Uno, hoje eu tenho um Jeep, antes eu era um solteiro numa kitnet, hoje eu levo minha família para um resort – de um jeito que a gente tem vontade de interromper o interlocutor e ir ali buscar uma medalhinha de Aprovado com Louvor.

Em gigabytes, os critérios de aprovação também são numéricos, basta calcular os compartilhamentos, acessos, conversões. Certa vez, participei de um congresso que abordava a maneira como dispersamos informações na rede e como elas poderão ser reagrupadas num futuro distante. Era um debate sério sobre banco de dados e políticas de privacidade que ajudariam a compor a biografia de autoridades e pessoas célebres no porvir, mas, veja só, esta minha alma irresistivelmente atraída pelo desimportante só conseguia imaginar as futuras gerações tentando recompor a história de seus próprios antepassados, que não eram ninguém na fila do pão: gente, em 13 outubro de 2016, a minha tataravó publicou a foto de um prato de sushi. Olha, na biografia do meu bisavô existem 154 referências a um tal de Candy Crush. Seria o papiro do constrangimento, que trauma descobrir que a matriarca da família tinha compulsão por selfies no espelho do banheiro e, o tio-avô, por poses na academia. Os novos jovens jamais compreenderão. Assunto para anos de terapia.

Nietzsche que nos perdoe. Há horas em que a gente precisa decidir se quer fazer sucesso na internet ou apenas não causar vergonha em 2098.

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Vivian Maier Self-Portrait

Vivian Maier, 1956

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Ironicamente, tudo o que eu sei hoje sobre política começou na escola, numa aula sobre as crueldades da ditadura militar. Eu fiquei impressionada. Meu avô foi me buscar no colégio e eu fui logo perguntando sobre onde ele esteve em 64: como eram as passeatas, se ele também correu da polícia, se algum amigo dele tinha desaparecido. Mas meu avô sorriu e explicou que tinha sido um simpatizante dos militares: naquela época, a economia prosperava. O Brasil era o país do futuro. Que tinha sido um tempo bom.

Eu fiquei perplexa como só uma criança poderia ficar.

Meu avô era uma boa pessoa. Ele pensava como a maioria das pessoas da geração dele. Ele não percebeu que a geração dele estava errada.

A gente precisa desconfiar o tempo inteiro de tudo o que é considerado normal pela nossa geração.

Hoje, acho que eu faço política só por quê, daqui a 50 anos, as crianças podem me perguntar se eu participei de algum movimento de vanguarda. Se eu lutei por algo, se perdi amigos. Se eu corri da polícia em alguma passeata. Talvez elas perguntem se eu fiz campanha pela igualdade racial ou aonde eu estava no dia do Orgulho Gay. Podem perguntar se eu também fui chamada de feminazi na internet, se também me mandaram pilotar fogão, se eu conheci o spray pimenta ou se só assisti pela televisão. Vão querer saber se eu fazia coleta seletiva, se andava de bicicleta, se apoiei o movimento antimanicomial, se tive amigos travestis. Talvez questionem se fui contra a criminalização do aborto, se fui doadora de sangue, se apoiei o estado laico, se namorei algum cadeirante. Vão perguntar se eu sabia da escravidão na China, no Estado Islâmico, aonde eu estava nos dias de guerra. Se alguém se tornou meu inimigo por causa disso. Em quem eu votei em 2018.

As crianças vão perguntar por conquistas que parecerão óbvias para a geração delas, mas que não parecem óbvias agora.

É bom estar preparada. Não basta ser uma boa pessoa.

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Pensar na sua chegada me faz lembrar a história de um amigo meu que tinha carro, mas não tinha carteira de motorista. Por falta de tempo, de dinheiro, de paciência: trabalhava perto, era caseiro. Bastava sair pouco, fazer trajetos curtos, em horários de pouco fluxo. Sem problemas. Ficou assim por anos.

Não é que ele detestasse dirigir. Gostava de guiar, por exemplo, depois da última sessão de cinema, de madrugada, com os vidros abertos. Numa dessas noites, voltando pra casa, tocou uma música no rádio: era uma música antiga que ele adorava. Linda. Ele já estava chegando, aí aumentou o volume e resolveu dar mais uma volta no próprio quarteirão só para ouvir até o fim. Até a música acabar. E ela acabou.

Aí tinha uma blitz.

Infração grave, cinco pontos na carteira, apreensão do veículo, multa e penalidades diversas.

Ridiculamente traído pelo acaso, meu amigo precisou frequentar a auto escola para aprender algo que ele sempre soube: dirigir. Gastou tempo e dinheiro. Pelo menos agora já podia sair em qualquer hora e lugar. Naquele ano, ele foi visitar um colega nosso em outra cidade e fez um passeio de férias. E começou a viajar sempre que podia, conhecendo tudo pelas estradas. O mundo dele ficou maior. Ia cada vez mais longe.

Meu amigo já não mora mais aqui. Quando a gente se reencontra, sempre alguém fala sobre a história da carteira de motorista e ele dá risada. Diz que, às vezes, a gente se acomoda com pouco, mas que se você estiver aberto a mudar de rota, coisas fantásticas podem acontecer. São os sinais do universo. Como eu acredito que aconteceu para mim.

Tenho pensado muito em você, que entrou na minha vida como uma música linda.

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Leonid Afremov (born in Vitebsk, 1955) is a Belarusian

Faz um tempo que eu acompanho o trabalho de Leonid Afremov. É aquele pintor de origem bielorrussa que usa cores berrantes para retratar paisagens de inverno. Gosto dos quadros dele, mas, principalmente, gosto dos nomes que ele escolhe para os quadros dele. Queda de Ouro, O Fim da Paciência, Juntos na Tempestade, Antecipação, Jogos Perigosos, Mágica Antiga etc. Uma tela, quando ganha um título assim, faz a gente imaginar histórias por trás da cena.

Na música, acho que o campeão em títulos poéticos é o Chopin: Noturno, Tristesse, Valsa Minuto, Fantasia de Improviso. Acho que Grande Valsa Brilhante faz pensar num romance vitoriano.

Imagino cenários e enredos também no supermercado, na lanchonete, já reparou em como batizam as tortas de doceria? Pecado de Damasco, Merengue à Moda Antiga, Cabelo de Anjo Dourado sob Pêssegos da Macedônia. Acho lindo. E os rótulos de vinho? Tributo Vintage Reserva, Um Sonho Espanhol, Lágrima Cristã dos Feudos Rosados de São Gregório. Há nomes de condomínios residenciais, de pacotes de viagem, slogans de iogurte importado – tantos títulos interessantes esperando por uma história.

É um mundo de hipóteses discretas. Eu vejo literatura em todas as coisas.

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Ele nunca se parece com as músicas que compõe. Nesse documentário novo, do Miguel Faria Jr., observe. Um cidadão todo almofadinha, contido, num apartamento monocromático com vista para o mar. Você olha, olha e nada. Ouve aquele cara falar e nada. Fica procurando o poeta, palhaço, pirata. Que era bedel e era também juiz. Das lutas contra o rei e das discussões com Deus. E não encontra. Nunca aceitei o fato de que, desde jovem, Chico Buarque se expressa como um funcionário público e se veste como o tio da Sukita. Mas é o cara que compôs Apesar de Você. Repare que tem alguma coisa errada nisso aí.

O documentário é cuidadoso, é muito bem feito. Tem até umas cenas legais – aquelas em que ele não aparece. Maria Bethânia sorri para a câmera – me pego cantando, sem mais nem por quê. Adriana Calcanhoto sobe ao palco – e me sobe às faces e me faz corar. Carminho e Milton Nascimento fazem a gente querer largar tudo e ir sofrer baixinho debaixo da mesa – estrelas percorrendo o firmamento em carrossel – e é bonito e é triste quando, miraculosamente, Ney Matogrosso profetiza – eu te vi suspirar de aflição e sair da sessão frouxa de rir. Mas aí já é tarde. Todo mundo saindo da sessão aos soluços. O filme acaba, as luzes se acendem – me diz, agora, como hei de partir?

Minha teoria é de que Chico Buarque não existe, é o nome que deram a um vírus de laboratório. Aquele tio da Sukita que dá entrevista é um ator contratado para ilustrar as capas de disco, nunca compôs uma linha, só conta historinhas de sofá – ditadura, futebol, Marieta – faz uns 50 anos. Os sintomas do vírus são imprevisíveis – levam à bebedeira, apertam o peito, fazem chorar. O Brasil foi enganado por todos estes anos. O Chico de verdade mora num tubo de ensaio.

Já faz décadas que tentam criar uma vacina, um antídoto e nada: a epidemia voltou para fazer estrago. Recomendo o documentário, mas com moderação. Em caso de recaída, um médico deverá ser consultado.

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