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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

 

Nem me lembro como aquilo começou. Estávamos num café em Santos quando meu amigo português implicou que os americanos ao lado estavam falando mal da gente.

– Nos chamaram de idiotas.
– Tem certeza?
– Tenho.

E lá se foi até a mesa deles, indignado. E com seu tosco vocábulo inglês, começou um discurso anti-imperialista, anti-Bush, anti-cinema-enlatado-hollywoodiano, anti qualquer coisa que atingisse em cheio o orgulho e o brio dos forasteiros inoportunos que, pasmos, tentavam contra-argumentar com frases que eu – e nem ele – entendíamos. Até que um deles, o de boné, pediu a palavra em tom de explicação:

– Hey, boy, you don’t understand. We don’t speak stupids, but students.

Resumindo: foi tudo um engano. Um bobo e constrangedor mal-entendido. Sem graça, o portuguesinho tentou pedir desculpas, quis dizer qualquer coisa mas as palavras não vinham. De repente todo o seu léxico britânico sumiu da mente e só lhe restou pedir desculpas em português mesmo. E, como vergonha tem gramática própria, eles entederam e ficou tudo bem.

Só não ficou para mim. É que já me vi nesta cena milhares de vezes: hábil para demonstrar meus desafetos e completamente incompetente para pedir desculpas. Alguém já havia me dito: falar com raiva é a forma mais fácil de fazer um discurso lindo do qual se arrepender depois. E arrependimento não mata, mas deixa uma cicatriz horrível.

E o pior é que eu falo mesmo bonito quando falo pra machucar. Incrível como pula um exu-palestra-pronta de dentro de mim e, num minuto, lá estou eu discursando brilhantemente contra algo ou alguém com o meu melhor vernáculo letal. Um talento nato. Tenho quase certeza de que fui Bocage na encarnação passada. E Diógenes na anterior.

No entanto, reconciliação: dialeto desconhecido. Olho para a pessoa, rumino, guaguejo e nada. Mas não acredito que seja por aminésia ou por toc. Como é mesmo que se chama este lapso que só atinge a pessoa quando ela precisa pedir desculpas? Ah, lembrei… estupidez.

E no meio de tantas farpas ocasionais, de tantos silêncios desnecessários, de tanto afeto desperdiçado, tento preservar os amigos que me sobraram e não sei o que fazer dos que se foram. Por fim, coloco nomes, fotos, vestígios de cada um na parte mais funda do baú, onde eles me doam menos. Tento esquecer de tudo. E morro de medo de que eles façam o mesmo.

E, enquanto eu penso na vida, o portuguesinho volta para a mesa cabisbaixo:

– Mas gaja, que massada! Como pode? Apagou-me a palavra! Não recordo de como pedir desculpas em inglês…
– Nem eu. Nem em inglês, nem em português, nem em mandarim. Nunca aprendi.

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“Yo adivino el parpadeo
De las luces que a lo lejos
Van marcando mi retorno.”
(Carlos Gardel / Volver)

Portugal, 26 de março de 2009,

Faz tanto tempo, mas eu me lembro. No início do ginásio, eu era a única aluna da minha classe que sabia andar de ônibus. Em parte por que eu gostava, em parte por força das diferenças econômicas mesmo: a maioria dos colegas tinha motorista, um luxo que eu, definitivamente, não dispunha. Mas dispunha daquela liberdade rara. Como esquecer o olhar dos colegas, nariz contra o vidro, cada um dentro do seu carro. Todos seguindo-me de longe pegar o meu próprio ônibus, com o meu próprio arbítrio, com as minhas próprias pernas. Se, aos 11 anos, eu tinha alguma vaidade na vida, era esta. Mochila nas costas, passe no bolso e um ar de quem sabe como, onde e de que jeito. Dona da rua e dona do mundo. Até que chegou o inverno.

Um dilúvio bíblico. Eu não esperava. As meias encharcadas dentro do tênis, o uniforme cheio de barro e eu escorregando sobre as poças enquanto veículos caros levantavam ondas de lama. Ensopada e suja, a dona da rua era agora um pavão molhado, uma criatura miúda com jeito de cachorro sem dono procurando abrigo sob qualquer marquise. Enquanto os colegas passavam mudos, nariz contra o vidro, cada um dentro do seu carro.

Lembro de entrar revoltada na cozinha do velho edifício Lisboa, casa de minha avó materna, preguejando contra tudo: a meteorologia louca do Nordeste, o transporte público lotado, as ruas sem calçamento, sem esgoto, sem guarida, e, principalmente, contra a minha infeliz condição de proletária andarilha naquela maldita cidade tropical onde eu precisava andar trezentos milhões de metros para chegar a qualquer lugar. E minha avó, serena, trazendo uma toalha e perguntando – mas, minha filha, me diga, isso não era tudo o que você queria?

E era. Eu havia passado as férias inteiras pedindo, suplicando, usando todo tipo de argumento emocional e financeiro para convencer minha mãe a me deixar andar sozinha de ônibus. Dizendo que era a ordem natural das coisas, um degrau, uma sina biológica e inevitável, uma casca de ovo quebrada. E lá estava agora, um semestre depois, tentando remendar os pedacinhos daquela cápsula onde eu, certamente, já não caberia mais.

Não sei se por isso ou por alguma outra razão – há tantas razões possíveis para o inexplicável – mas, desde então, a cada dia de chuva me invade um sentimento ancestral de desamparo. Uma certeza dura e corrosiva de ser a responsável por mim mesma, por cada degrau vencido, por cada queda na lama. Bicho adulto andando sozinho, mesmo que perdido, mesmo que ensopado. É quando chove que me vem essa vontade urgente de entrar pela mesma cozinha, de praguejar de novo, de pedir abrigo. De ouvir outra vez qualquer coisa que me acalme o peito ainda machucado. De não ter crescido. De voltar.

Agora chove. E eu acho que, no fundo, eu sempre soube que voltaria para Lisboa.

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Eu poderia dizer que o que houve foi um destes casos de afinidade à primeira vista, empatia recíproca, conspiração universal ou qualquer outra coisa que desse certa aura dourada a este primeiro encontro, seria bonito dizer, por exemplo, que nos ligamos instantaneamente por determinação cósmica. Mas não. Catando na memória cada gesto de aproximação, cada palavra de hospitalidade, de troca, esta arte delicada e cansativa de conhecer o outro e se fazer conhecido pelo outro, penso  que o laço denso que nos uniu tão imediatamente era outra coisa, não menos nobre que a empatia imediata, mas um outro laço, talvez mais primário e estreito, que é a capacidade de um ser humano identificar no próximo a sua maior lacuna, de reconhecer no outro exatamente o que mais lhe dói. No nosso caso, a solidão.

Por solidão ou por empatia, talvez nem importe, éramos estranhos uns aos outros e ao meio – e quem olhasse de fora saberia, por que os recém-chegados todos do mundo, desde os tempos de Adão, trazem nos olhos esta mesma mistura de encantamento e desamparo diante do comum, esta surpresa eufórica diante do banal – e o brilho dos nossos olhos era o mesmo. Também comuns e banais, falávamos sobre nossas vidas, tateando personalidades, gostos, passados, descobrindo aos poucos trilhas parecidas, histórias quase próximas narradas por sotaques longínquos entre si. Éramos quatro estrangeiros tentando mapear não só as ruas da cidade confusa, mas uma outra rede de caminhos entrecortados –  os nossos. E a esta conhecidência de destinos chamamos, apressadamente, de amizade.

Passávamos pela Baixa, próximos ao Elevador de Santa Justa, numa tarde gelada onde uma multidão dividia espaço: portugueses vendendo doces gigantes, árabes tocando alaúdes, nigerianos enormes em seus casacos de pele e, por fim, os indianos. Sempre em grupos, descendo as ladeiras com suas túnicas, batas e véus, como se não pisassem no chão, aquela revoada de tecidos coloridos e fios de ouro que dá a qualquer ser humano um ar sagrado de entidade mística e inatingível. Paramos para olhar, ofuscados. Depois que os indianos passam, todas as ruas do mundo parecem cinzas e sem graça.

Logo estávamos no Carmo. E, no meio de tanta gente, de tantas vozes, de tantas luzes, por que tudo parecia ter a perfeição do cinema ou por que aquele emaranhado de avenidas foi mesmo o cenário de alguns, surgiu a idéia:

– Um filme para cada rua, ok?
Era fácil. Na primeira rua um casarão anunciava quartos:
– Gand’Hotel!
Os homens conversando nos bancos da praça:
– Forrest Gump!
As ruas de calçamento amarelado:
– O mágico de Oz!

Entrávamos e saíamos por becos, esquinas, atalhos, distraídos em encontrar pistas, símbolos, vestígios de nossa única memória em comum: o cinema. Depois de citar títulos, descrever cenas e lembrar atores, já era noite quando chegamos a uma rua deserta:

– Lost.
– Não tem nada a ver. Ainda mais, esse é seriado, não é filme.
– É sério. Acho que estamos perdidos.

E estávamos. E, como ninguém havia lembrado de jogar pedaços de pão pelo caminho, o que era comédia foi virando suspense. Era inútil pedir informações, todos os pontos de referência nos eram desconhecidos. Uma hora depois já andávamos de metrô, achados e seguros, mas antes, um pouco antes, enquanto ainda estávamos ali, naquele momento, sentados na calçada, perdidos naquela noite fria, falando de nós e do nosso encontro tão casual, dessa sensação dura de sermos assim anônimos num continente estranho, num planeta ao acaso, repleto de tantas gentes, de tantos mares, de tantas terras, diminutos na imensidão, irrelevantes na paisagem, caminhando do pó ao pó absolutamente sozinhos, absolutamente primários, absolutamente humanos, foi que olhei para cima buscando por Deus no mais profundo daqueles céus e me perdi num escuro de mim que até hoje me procuro por lá.

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E tudo aquilo que eu entendia como saudade, exílio, a falta da minha terra, das minhas ruas, da minha gente, esta dor quase física de membro arrancado que ardia a cada esquina daquela cidade estranha, tudo isso na fala daquela moça era uma certeza mansa, uma sina, um destino simples, duro, pródigo, uma aceitação plena de caber-se inteira em seu lugar a qualquer tempo, hoje, amanhã ou depois, sendo ela mesma o pedaço prometido da terra que a aguardava – não hei de morrer sem voltar aos meus, gaja, ao chão dos meus pais, ao pó do chão natal. E ia tirando do bolso uns papéis, mostrou-me num mapa uma ilhota no Atlântico, São Tomé de Príncipe, perto da Nigéria – é longe daqui, muito longe. Também abri minha bolsa, mostrei-lhe fotos, postais, registros, fósseis de uma civilização inteira que agora vive sem mim, tudo sobre a mesa, a alma exposta. Com a mão negra escolheu um objeto, trouxe a mim e apontou para perguntar:
– Mas, diz-me, e essas chaves? São do teu alojamento?
– Não. São da minha casa.
– Acaso levas em punho as chaves de tua morada no Brasil?
– Pois é, esqueci de guardar.
– Ah, sei. Entendo que leve-as assim, rapariga. A nós, estrangeiros, nunca sabe-se quando há o ponto de regressar. Tens sorte, gaja. Ainda tens as chaves de tua casa.

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Vocação

Dengue, irregularidades nas eleições, desemprego em 13% e um calor amazônico de 35º. Quem mora em Salvador vai concordar: 2008 foi um ano difícil. Pra quem lê e pra quem faz os jornais. Em outubro, no meio desta confusão, parei para me perguntar se a minha missão era mesmo esta: comunicar. E a resposta não demorou. Estava em João 12:49: “o Pai que me enviou me deu mandamento sobre o que hei de dizer e sobre como hei de falar”.

A gente sabe que a principal meta da imprensa é informar. E o cidadão moderno, de maneira geral, está bem informado – mas não sabe opinar sobre o que lê. A maioria das pessoas ignora as causas, as circunstâncias, a influência de cada fato na engrenagem da História. E narrar os fatos já não me bastava. Mas como fazer uma análise mais profunda sobre qualquer assunto numa notícia de 15 centímetros? Era preciso ser subjetiva em uma abordagem objetiva. Mas como? Tudo que se quer na vida é comer o bolo e, ao mesmo tempo, guardar o bolo – e quem souber conciliar as duas coisas, por favor, cartas à redação.

Certa vez, li uma reportagem que narrava uma experiência: quando o cientista colocava um sapo numa panela de água fervente, ele pulava para fora imediatamente. Mas, quando o cientista colocava o mesmo sapo numa panela em temperatura amena e ia esquentando a água aos poucos, ele não notava. Ele se deixava cozinhar. Simplesmente o sapo não percebia a mudança que estava acontecendo no ambiente à sua volta e acabava morrendo. Sem reagir.

Se esta experiência é real eu não sei – e, talvez, nem precise saber. Mas ela me ajudou a entender o que aconteceu comigo. Pois 2008 foi exatamente isso: o ano em que Deus elevou a temperatura do ambiente para o último grau, assim, de repente. E eu, é claro, fui forçada a pular fora. Hoje estou arrumando as malas para estudar longe de casa e acho que estou pronta para esta nova vocação – seja lá o que queira dizer ‘estar pronta’. Vou para aprofundar este tema que talvez seja a tônica da minha caminhada profissional: o jornalismo de opinião. Não dava mais para esperar. Já era hora de aprender como transformar a imprensa em voz de mudança, em ferramenta de Deus, em arma de desenvolvimento social e libertação. Dar poder à palavra. E, quem sabe, transformar o verbo em carne – mais uma vez.

Vou com fé, com esperança e com uma vontade enorme de mudar o mundo. E “orando para que Deus nos abra a porta da palavra, a fim de falarmos do mistério de Cristo.” (Cl 4:3).

* Depoimento publicado no Jornal São Salvador em 03 de fevereiro de 2009.

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Encontro

– Mas você precisa conhecer Porto Seguro, ele ia falando enquanto puxava a cadeira, distraído, agitado, pedindo um cardápio ao garçom, aquele bar lotado, aquelas mesas, tudo bem. Mais por ritual do que por gosto ela freqüentava lugares assim – copos batendo, tumulto, som alto – talvez por que aquele encontro numa mesa apertada num boteco da moda numa esquina qualquer fosse tudo o que restasse a duas pessoas urbanas, adultas, sozinhas e que há algum tempo tentavam se conhecer melhor. Ela senta, respira, bolsa no colo, sorri – É? E o que é que tem lá?

Era um bar mexicano ou indiano ou algo assim – Buda de gesso, maraca, leque oriental, chapéu de touro, tudo pendurado nas paredes mais por caracterização do que por decoração, gente falando muito e rindo e gesticulando e ele dizendo ainda – Porto tem o melhor caldo de sururu que eu já experimentei, olha, é sério, você precisa conhecer aquela praia. E era verdade. Ela precisava de tanta coisa, de tantas praias, de tantos mares, de tantos desertos de areia e silêncio que, naquele bar lotado, ele não poderia mesmo suspeitar. Mão sob o queixo, um suspiro fundo, ouvidos para uma história longa sobre peixes, drinks, hotéis, barracas de praia e pontos turísticos enquanto a outra mão desenhava num guardanapo uns círculos lentos, anéis de Tlaloc, o deus do tempo, espera. Nas mesas tão próximas – mas isso merece um brinde! Não, batata frita engorda. Como assim eles voltaram? Seu troco, senhor – uma multidão alheia, satélites barulhentos girando em volta, náusea, excesso. E sobre esse nó no peito, como é que se fala? E sobre isso doendo aqui dentro? – Vou pedir outra bebida, você quer? Não, obrigada.

– Você devia ter conhecido também a ilha da Pedra Furada. Onde fica? Mais ao norte, bem antes de Ilhéus. Ah, sei. Mas ela não existe mais, acho que afundou. E uma ilha afundada não pode emergir de novo? Acho que não, desaparece mesmo. Ah, eu queria ir para lá. – Ele sorri sem entender, pede um copo com gelo, uns burritos. Ruído de garrafa quebrando no chão, música entrecortada: existimos, a que será que se destina? O garçom retorna, mais gelo, mais gelo. – Boiando na água, não parece a tal ilha? Hum? Esta pedra de gelo, não parece a tal ilha afundando? Ah, é mesmo.

E ela coloca a mão direita sobre a mesa. Tão fácil, tão perto. Quem sabe ele a tome. Quem sabe ele a guie, a conduza para fora do poço, para longe desta noite vã naquele boteco confuso. E lhe diga – vamos embora deste lugar estúpido esquecer essa gente vazia e essa cidade suja, o mundo é tão grande e tão bom e tão lindo e a gente é tão jovem e a gente se quer tanto olha vem comigo pra um lugar novo e não solta a minha mão nunca mais, nunca mais. Quem sabe ele intua, pressinta, entenda, quem sabe ele veja a mão dela estendida.

– O nome desta música é Cajuína. É, eu conheço. Caetano a compôs para Torquato Neto depois que ele morreu. Foi mesmo? O garçom traz o pedido, o ventilador girando e dizendo que não, o pêndulo do relógio dizendo que não, nove placas de gesso no teto, treze parafusos na janela. A mão ainda em cima da mesa, estátua de sal, de bronze, de carne, castelo de areia, Tróia, ilusão, jeito de lágrima querendo rolar e agora esse nó apertando no peito, meu Deus, enfim, de quem é a culpa quando todas as coisas nos gritam que não? Pois se aquele moço quisesse fugir num barco, ela faria um barco, se ele quisesse um balão,  faria um balão, faria trenó, moto, foguete, teceria com os próprios cabelos um tapete enorme pra aquele moço voar até por que a vida, ela lhe diria, até por que a vida é a arte do encontro embora, você sabe, é claro que você sabe, olha, não deixe isso se perder.

– É uma canção bonita, né? Sim, é linda. Pois é. Eu não sei, nem você e talvez ninguém saiba, enfim: a que será que se destina? E destino é coisa incerta, você traça um, a vida te desvia, não tem jeito. Mas talvez nem importe o destino, mas a viagem em si, talvez. É mesmo, é tanto caminho, a gente escolhe um e nunca sabe dos outros, onde iriam dar. Mas um dia eles se encontram, depois, no fim, eu acho.  É, talvez, um dia.

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O Passado

“O passado nunca conhece o seu lugar
O passado está sempre presente.”
(Mário Quintana)

 
Precisava lembrar de comprar fósforos. Empurrando o carrinho de compras, ela se perguntava por que sempre esquecia as coisas. Pensava também no jantar daquela noite, não poderia pedir pizza novamente, que sempre chegava fria e desarrumada. Hoje faria um filé com creme de queijo, receita sofisticada para alguém que jantaria sozinha num dia comum.

A dispensa vazia denunciava: nunca lembrava de fazer as compras. O delivery quase sempre salvando a noite, a pizza fria – mas não dessa vez. Seria um filé especial, porção bem apanhada, queijo mussarela, muito molho. Toalha de renda, talheres à mesa, guardanapo de pano. Tudo de primeira. Só pra ela.

Passando pela gôndola de frios, suspeitou: talvez não fosse culpa sua. Talvez esquecer das coisas de vez em quando tivesse sido seu escape para sobreviver a um passado que não conseguia enterrar. Pois sempre soube: não se pode fazer nada pelo passado. Mentalmente, foi enumerando episódios, circunstâncias, causas diversas. Mas, enfim, quando foi mesmo que começou a abandonar as próprias lembranças? Primeiro foram se apagando os fatos tristes, as más recordações. Era a memória se despoluindo, abrindo espaço no meio do lixo. Depois foram números de telefones, nomes de ruas e aquela receita que só ela sabia fazer. Tudo bem. Até que deu para perder as chaves de casa.
Chamava um chaveiro, arrombava a porta, entrava e quando ia buscar o pagamento do rapaz, onde é mesmo que estava a carteira? Os médicos garantiam que não havia nada de errado – talvez a vida moderna, tanto trabalho, tanto stress. Aceitou. Até aquele dia.
Nem comida nem fósforos em casa. Já era demais. No caminho para o mercado, decidiu: tomaria complementos de cálcio. Faria ioga, meditação, qualquer coisa que a centrasse sobre o próprio eixo. Teria cópias das chaves, agendas e mapas. E nesta nova fase não caberia mais o delivery, a pizza fria, a vida de improvisos que estava levando – atrasos, trapalhadas, anotações perdidas. Altiva, deslizava o carrinho pelos corredores – e assim iria conduzir a sua mente. Sem erro. Se seu passado confuso ressurgisse? Faria análise, terapia, regressão. Iria enfrentá-lo. E pronto.

Enquanto a moça do caixa passava as compras, concluiu – o jantar era só o começo.

– Carne, alho, queijo, extrato. Doze reais. Algo mais, senhora?
– Não, obrigada.

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No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra.
No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca esquecerei deste acontecimento
Na vida de minhas andanças ensimesmadas
Se era rubi, se era esmeralda
Tanto faz, era uma pedra
Era só uma maldita pedra
Para mim, para Drummond
E pra nossas retinas fatigadas.

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Subi um segundo antes do motorista arrancar e ainda senti o sopro da porta fechando nas minhas costas, o cobrador olhando, eu estendendo uma nota amassada de dois reais. Pensei que ele diria algo, e ele disse, mas eu estava com fones de ouvido, só havia o Renato Russo com sua voz pesada, mudaram as estações, nada mudou. Sentei no último banco, o cobrador ainda perguntando algo, qualquer coisa do tipo alguém troca dez reais ou alguém tem horas aí ou alguém perdeu um chaveiro, um burburinho vai se formando nos bancos da frente, meus olhos de paisagem acompanhando a tudo como num cinema mudo, o Renato insistindo, está tudo assim, tão diferente. Encosto a cabeça na vidraça, suor, calor, poeira, vento na cara. Abraçado à mochila vou lembrando, esse lugar, qual foi mesmo a última vez em que estive aqui? Quando chegar em casa vou fazer um suco e tomar um banho e abrir as janelas, esse verão abafado – fui pensando assim, dispersivo, calado, inconclusivo, rastejando os olhos por aquelas ruas de latas de lixo viradas, calçadas gastas, muros riscados, o ônibus sacolejando e o cobrador entregando o tal chaveiro a um dos passageiros enquanto um senhor de barba branca, tipo um Papai Noel magrinho, começa um discurso no corredor, fico quieto, olhando pra ele, talvez seja um evangélico citando trechos terríveis do Apocalipse ou seja alguém que pede esmola para os treze netinhos carentes que moram lá em Itapetinga ou um hare krishna vendendo incensos e balas de gengibre, eu não posso escutar, mas, agora, olhando bem – olhando bem, meu Deus, ele está cantando.
A canção dele também é triste, todos baixam os olhos. Sem ouvir, imagino rimas, adivinho versos, o pra sempre sempre acaba. A mochila contra o peito, o sol na cabeça, confiro o celular, nenhuma chamada perdida. E é nessa hora, dobrando a última avenida, num calor amazônico de 35 graus que eu passo os dedos sobre o teclado do telefone como um cego procurando a luz em braile e penso e sofro e mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está, por pouco, por muito pouco, não digito o seu número de repente e ligo pra perguntar qualquer coisa boba, besta, banal, qualquer coisa do tipo – tudo bem ou como vai você?

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“Não haverá mais morte, nem tristeza,
nem choro, nem dor.”
(Ap 21:4)

 

Apesar de tudo, existe a cura. Não esta cura que nós conhecemos, contra os males do corpo ou da alma, mas uma outra, remédio para estes dias de fúria consumidos por buzinas, sirenes, mentiras, britadeiras e solidão dentro da multidão perdida. Mesmo que a fé e a vontade tateiem desorientadas dentro do lixo urbano e que Salvador também te pareça a cidade mais suja do país mais pobre do planeta mais desassistido. Estamos tristes e cansados, eu sei. Mas ainda é necessário falar sobre ela – sobre a cura.

A nós, povo enganado pelos reis, pelos búzios e pelos astros, resta a cura. Há cura para aquele pedestre passando sobre a passarela do transbordo. Para a moça vendendo flores num balde de plástico e para o religioso pregando aos gritos na estação da Lapa. Há salvação para as crianças que fogem de casa, para os loucos falando sozinhos nas ruas, para os torcedores de futebol e para os palhaços tirando e recolocando a maquiagem todos os dias no Picolino.

Desde antes, já havia cura. Para Dulce e para a quadrilha de ciganos roubando ouro na Parafuso, para a saudade, para Maria Quitéria, para os maratonistas de 1970. E, mesmo hoje, ainda há chance para o artista amador que não tem a quem mostrar as suas criações e para os namorados que usam os adjetivos no diminutivo. Alguém avise àquele garçom que resiste acordado até o último cliente do Pub´s, ele não sabe, ele precisa tanto saber. E também à professora do supletivo voltando em pé no circular, aos médicos plantonistas em Cajazeiras, às damas da noite, aos garis. Avisem a eles que há cura, antes que eles esqueçam, antes que todos esqueçam, inclusive nós mesmos.

Digam aos idosos jogando baralho na Penha e aos jovens rodando nos shoppings por vício e por tédio. Ao retirante recém-chegado que não sabe aonde ir, às baianas de acarajé, às famílias racistas da Pituba e aos peixes do dique. Antes da embriaguez do carnaval, antes do fervor das novenas, esta paz virá sobre a Baía de Todos os Santos, mesmo que eles já nem sejam tantos. Mística. Plena.

Pense na cura mesmo enquanto a capital enlouquece – enquanto há caos no tráfego das seis, enquanto corre sangue nas pedras do Pelourinho e o Governo inventa novos impostos. Enquanto os meninos pedem nas sinaleiras, tão escravos quanto antes. Enquanto crescem os degraus entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa.

Pense na cura e reze baixinho por todos nós que aqui vivemos. Ou até procure nos céus um sinal – ele pode ser uma estrela, uma luz, qualquer coisa. Se ele estiver lá, agradeça muito a Deus: é a cura que descerá qualquer dia sobre todos nós livrando-nos do mal, da miséria e da corrupção, é a salvação prometida que chegará a qualquer hora, a qualquer momento e para todos.

Mas, se ele não estiver lá, agradeça ainda mais. Foi a cura que, enfim, desceu do alto sobre Salvador pouco antes de você observar. Num milagre absurdo. Como quase tudo que acontece por aqui.

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