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Archive for the ‘vasto mundo (viagens)’ Category

Hoje, há exatos dez anos atrás, eu estava na África, no deserto do Saara, na fronteira com a Mauritânia. A gente havia cruzado o Marrocos de jipe durante o dia e, quando a estrada acabou, continuamos o percurso de camelo. Cruzar a divisa de um país para o outro no meio da madrugada sobre um camelo já seria uma aventura por si só, mas não era só isso. O Saara estava em guerra.

Eu precisava de fotografias e depoimentos de como estavam as comunidades. Pessoalmente, acredito muito nos movimentos de descolonização, inclusive também apoiava o reconhecimento do Saara Ocidental enquanto país soberano, depois de anos de domínio espanhol e marroquino. Esse é um conflito antigo e a independência plena não aconteceu até hoje, mas em 26 de fevereiro de 2010, embalados pela Primavera Árabe, os confrontos recomeçaram e duraram até maio de 2011. Neste período, estive pelas mediações três vezes.

Naquela noite específica, os beduínos montaram uma tenda e ascenderam uma fogueira. O céu estava tão incrivelmente estrelado que me fez elaborar várias teorias aleatórias – tipo, deve ser por isso que a estrela e a lua são símbolos otomanos, observe que os países pós-otomanos estão em torno de desertos e quase todos têm estrelas em suas bandeiras (Marrocos, Mauritânia, Turquia, Paquistão, Jordânia, Argélia etc.) por que a noite num deserto é realmente cinematográfica, olha para isso, está tudo explicado.

Os beduínos estavam cantando e dançando à volta da fogueira, depois serviram um prato de cordeiro com cuscuz em quantidade obviamente insuficiente para doze pessoas e eu fiquei esperando para perguntar aonde a gente iria dormir. Era ali mesmo, na areia. Todos juntos. Estávamos no auge do inverno e, se os doze desconhecidos não dormissem fortemente abraçados, não sobreviveriam ao vento e ao frio. Apenas.

Foi uma noite insana.

A temperatura caiu de repente e eu não conseguia sentir nem os meus dentes. Não tenho ideia de quem eram as pessoas que eu abraçava com vigor e que me impediram de morrer de hipotermia. Eu estava usando todas as minhas roupas sobrepostas e, depois que todos dormiram, como se não houvesse problemas o bastante, eu precisei me levantar para procurar um banheiro. Não preciso dizer que não havia banheiro. Fui me desvencilhando de braços e pernas de estranhos até conseguir ficar de pé. Aí eu olhei em volta.

Eu nunca tinha visto nada parecido.

Uma madrugada clara e brilhante. Extraordinária. A noite no deserto não era de céu negro como a noite na cidade, era de um azul forte com manchas roxas, um emaranhado de galáxias. A lua cheia sobre aquele mar de dunas por todos os lados, como se grandes ondas tivessem virado areia um segundo antes de quebrarem na praia. Um enorme vácuo, só o vento forte indo do oriente para o ocidente, um silêncio de tudo. Se você se concentrasse por um minuto, poderia ouvir a respiração de Deus.

Depois que eu voltei a deitar, fiquei com os olhos abertos para o céu. Entregue no silêncio do vazio absoluto. Como James Joice, “Estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.

Levantamos antes do nascer do sol para desmontar a tenda, subir nos camelos e seguir para Ouarzazate, uma cidade feita de barro. No caminho, eu pedi para descer, queria tirar uma foto do grupo. Eu não contava que a areia estava batendo na minha coxa e que eu teria que ir nadando naquele mar de areia para acompanhar a fila de camelos que seguia sem nenhuma dificuldade. Tinha que ser rápida. Foi aí que fiz essa foto que está, hoje, ampliada num quadro da minha sala. Tanta coisa aconteceu nesta viagem, mas essa é a melhor recordação que eu trouxe de lá. Eu adoro essa foto.

Por coincidência, dez anos depois, eu estou exatamente diante deste quadro, trabalhando. O quadro está dentro de um apartamento comum, dentro de uma vida padrão. E eu estou escrevendo um artigo sobre um outro país africano, também em processo de descolonização – este outro, felizmente, num estágio mais avançado. Às vezes, eu interrompo o trabalho para levar o lixo lá fora. Ou para lavar os pratos. Ou para atender o interfone. E o porteiro que me interfona não imagina que a senhora do 802 estava na Guerra do Saara durante a Primavera Árabe.

Dizem que, depois que os primeiros astronautas voltaram da Lua, eles entraram em depressão até o fim da vida. Como se, depois de terem experimentado um evento tão extraordinário, a existência rotineira tivesse deixado de fazer sentido para eles. E eu entendo. Mesmo. A verdade é que eu vivenciei experiências incríveis durante quinze anos e, depois, fiz escolhas incompatíveis com aquele formato de vida. Eu deixei o trabalho de campo em 2016. Entendo que tudo o que eu produzo hoje, daqui do computador, também é importante e necessário. Que há muitas formas de contribuir com a engrenagem de um planeta em rede. E que ninguém pode ter tudo nessa vida. Eu sei.

Eu compreendo perfeitamente tudo isso.

Mas ainda há as noites de lua. E ainda há esse quadro pendurado na parede.

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E agora Inês é morta.

Naquele momento em que eu tomava fôlego para dizer exatamente o contrário. Num contexto que nada tinha a ver com a sorte Inês de Castro nos jardins de Coimbra, essa expressão que eu também costumava ouvir no Brasil, ainda que a maioria dos brasileiros não tenha ideia de quem seria Inês e por qual motivo veio a falecer. Às vezes, ouvindo o modo de falar daqui, reparo nas frases que eu repetia sem ter ideia do significado.

Inês é morta.

Em Portugal, não se diz que alguém está morto, porque não se trata de uma situação temporária. Inês está juíza, está fumante, está corintiana e está católica por que ela pode, um dia, deixar de ser. Mas Inês é mãe, é filha, é negra e é alta para sempre. Está esposa de alguém, é viúva de alguém. Está amiga, é irmã. Está jovem, é velha. Está viva, é morta.

Eu não quero ficar.

Naquela fase em que o lugar começa a parecer seu. E já há um vagão preferido no metrô e planos para as férias com a família: não vai mais haver férias. Sem mais idas e vindas. Em inglês, o verbo to be não faz distinção entre ser e estar e eu nem imagino um mundo onde não haja diferença entre estar sozinho e ser sozinho, entre estar bêbado e ser bêbado. Só quem foi alfabetizado em português poderia entender, desde a primeira infância, que o lobo é mau e está com fome.

“O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”

Pareceu repentino. Ideias vão se amontoando pela casa, te arrastando para a rua, te puxando pelo braço e, quando você se dá conta, está na porta do aeroporto. Tirando os fins de semana, quantos dias faltam? Se eu fizer uma escala no México, são quantos dólares a mais? É preciso encerrar a conta no banco e na telefonia? Mas as portas do metrô abrem-se e aquele labirinto de gente e a claridade da rua fazem tudo parecer irreal. Subo Alfama levando o leite e o pão.

Faltam 20 dias e a escala no México custa 500 dólares.

A sua foto no passaporte me lembra um verso de Drummond: também já fui brasileiro, moreno como vocês. A foto do meu passaporte parece o cartaz de um cabaré no Alecrim: Valéria vai levar-te à miséria. Fiquei esperando no salão da embaixada, todas as estátuas olhavam para mim. Eu não precisei dizer nada. Depois de um silêncio devastador, você perguntou se eu estava fazendo a escolha certa. E quem neste mundo sabe se está fazendo a escolha certa??

“Se, em certa altura, tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita. Se, em certo momento, tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim. Se, em certa conversa, tivesse dito as frases que, só agora, no meio-sono, elaboro – se tudo isso tivesse sido assim, seria outro hoje e talvez o universo inteiro fosse insensivelmente levado a ser outro também”.

Em 1755, Lisboa passou por um terremoto. Que provocou um tsunami, que causou um incêndio, que contaminou a água e culminou na peste. O trágico não vem a conta-gotas, diria Guimarães Rosa. Hoje, olhando para essas ruas impecavelmente restauradas, penso que a gente se recupera de qualquer coisa. Ou não se recupera de nada e segue aquela lógica do Fitzgerald: um homem não se recupera de tais estremecimentos – ele se torna uma pessoa diferente e, eventualmente, a nova pessoa encontra coisas novas para se preocupar.

O problema de morar numa cidade indubitavelmente bonita é que você nunca sabe se realmente gosta do local ou se ele apenas te conecta com seus arquétipos de perfeição. É uma gaiola dourada. Meus dias de merda no último inverno pareciam cenários do Pinterest. Uma vez, no muro de um país do norte, havia um grafite: coisas extraordinárias estão sempre acontecendo em outro lugar. A sentença parecia deslocada por que estava escrita numa paisagem fabulosa, num país de primeiro mundo, como alguém poderia desejar estar em outro lugar? Vejo que, em qualquer cenário, a frase cabe tranquilamente.

Foucault diz que Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação. O coitado não precisava saber de tanto. As frases mais difíceis que ouvi na vida tinham conjunções adversativas de moer o espírito e, no final das contas, nem eram necessárias. Decisões ruins já falam por si, mas uma frase errada num momento crítico só fixa legenda à tragédia, nos dá material para mastigar neuroses pelo resto da vida. Recuei para não pronunciar nenhuma idiotice. Talvez, um dia, eu saiba exatamente o que deveria ter dito no salão da embaixada. Dispomos de uma gramática com mais de 400 mil palavras e, até hoje, eu não consigo pensar em nenhuma que não quebrasse o coração de alguém.

“Quer morrer no mar, mas o mar secou.

Quer ir para Minas, Minas não há mais.”

Quando cheguei, eu nunca tinha ouvido falar de Sintra. Fui conhecer com duas colegas também novatas. O desembarque do trem foi um arrebatamento eufórico: as casas, as lojas, tudo parecia incrível, corremos por aquela praça a tarde inteira. No dia seguinte, nos explicaram que a gente não havia chegado à Sintra, aquela era a praça do desembarque, uma área de serviços, a cidade ficava mais à frente. Adorando o engano, respondi rindo: queridos, parem, a gente não precisava saber disso!

“Vou passar a noite em Sintra por não poder passá-la em Lisboa, 

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. 

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência 

Sempre, sempre, sempre

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma. 

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida.”

Não sou boa em abrir o jogo. Arregalo os olhos, aceno sinais, mas não consigo dizer ao outro que o chapéu dele está pegando fogo. Em francês, não é possível construir uma frase sem que o sujeito esteja exposto: je, tu, il. Mas, em português, dá pra escrever uma enciclopédia usando apenas o sujeito oculto: descobri tarde, tentou muito, quebramos a cara. Quem? Eu, ele, nós. O interlocutor compreende.

Ou assim a gente supõe.

Em árabe, há mais de 100 palavras para designar camelo. Em inglês, o substantivo mais repetido é tempo. Em português, a palavra mais falada é coisa, que pode ser usada para definir camelo, tempo, dinossauro, asteróide ou qualquer outro substantivo do nosso idioma. A nossa palavra mais importante não tem significado próprio, ela sinaliza algo que já estaria evidente no contexto.

Ou assim a gente supõe.

Num dos nossos primeiros passeios, eu tirei uma foto sua na Regaleira. Você tinha 25 anos. Todos os anos em que voltei, refiz a foto no mesmo lugar. Vi aparecerem os seus primeiros óculos, os primeiros fios brancos, as primeiras preocupações. Sempre um perfil fugidio, dessas belezas que vão mudando com a paisagem, num fluxo imprevisível de dilúvio, calor, granizo, primavera. Ajusto o foco, de novo. Dessas metamorfoses que a gente não sabe aonde vão dar e quer estar ali para ver.

Quando ainda cursava Antropologia, me falou sobre o conceito de não-lugar, de Marc Augé. Espaços que não são um destino em si, mas um local de trânsito: um corredor, um elevador, uma rodoviária, uma sala de espera. Ninguém diz que está saindo de casa para ir ao viaduto, eles são um preâmbulo, um hiato. Como esta ponte onde estamos passando agora? Sim. E por quê você quis pesquisar sobre isso? Não sei. Na Guerra Fria, quando a União Soviética e os americanos resolveram travar uma guerra, não o fizeram em suas casas, mas no Vietnã, na Alemanha, no Afeganistão. Acho que países inteiros já foram considerados um não-lugar. E penso que todo mundo já foi um hiato na vida de alguém.

“Quando estão juntos, satisfaz-se em fitá-la, em ouvi-la, em observar-lhe as pupilas e o movimento dos lábios a um metro de distância dos seus olhos. Enquanto fala com ele, Mariana pertence-lhe.”

Hugo Mãe conta num romance que conheceu o Esteves num asilo, aquele que é citado por Fernando Pessoa no poema Tabacaria: é o Esteves sem metafísica. Esteves seria um rapaz de entregas que trabalhava na rua onde o poeta costumava fumar e, anos depois, ele teria ficado orgulhoso de ter sido citado, ainda que de maneira irônica: sem metafísica? Que inverdade! Achei o caso engraçado. Parei um minuto para pesquisar se era mesmo real este encontro no asilo e o que teria acontecido depois, mas algo me deteve. A história era ótima. Tão portuguesa. Carregar esta dúvida seria um privilégio.

“Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais”

Encantos deste inverno: uma película de gelo sobre a janela de manhã. O sótão alugado, a experiência de viver dentro de um telhado. Todos os reencontros, mesmo os inesperados e constrangedores. Hambúrguer com cerveja no café da manhã. A biblioteca da universidade.

Tristezas deste inverno: saudades da família. Uma noite de chuva dentro do transporte público sublinhando o desconforto burguês de não possuir um carro. Xenofobia nas lojas, nos bares, no trânsito. O aquecedor que vazava gás e fazia sonhar com o Terceiro Reich. Uma frase do filme de Curtis Hanson: Esta é a cidade dos anjos e você não tem asas.

Sento-me sobre o telhado, de madrugada. Fito o Tejo lá embaixo, como um deus que descansa no sétimo dia da criação. Acho que tenho com essa cidade uma dessas relações obsessivas que possuímos com todo mundo que já nos deu o fora. Faculdades que nos reprovaram, festas em que fomos barrados, empregos que nos dispensaram, filhos da puta em geral. Me pergunto se não voltei só pra ter a oportunidade de mandar tudo isso à merda. É possível. Sou capaz de apontar um canhão para matar um mosquito.

But I’m a creep, I’m a weirdo. 

What the hell am I doing here?

I don’t belong here”

Desculpa por não querer ficar. Desculpa por ter chegado tão longe para, no final, dizer que preciso da minha aldeia. O que a gente é e o que a gente está são coisas diferentes, então eu também entendo o seu silêncio – nós somos próximos, mas estamos distantes. Agora, da janela do táxi, a avenida da Liberdade passa tranquila, até amistosa e, mesmo o aeroporto – onde já embarquei mais de vinte vezes e nunca me pareceu um lugar fácil ou familiar – já não assusta. Todas as coisas parecem acessíveis quando a gente já não precisa mais delas.

“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.”

É o fim de uma era, gajo. Aqui se acaba a nossa década de Lisboa.

É a última chamada.

E agora Inês é morta.

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(11 de março de 2018, 35 graus)

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A maior caverna do mundo foi descoberta recentemente no sudoeste da Ásia. Você sabia disso? Provavelmente, não.

Passei dias pesquisando sobre ela. Sei tudo sobre ela, perderia horas falando sobre ela. Mas, com quem? Quem quer saber sobre isso? Como se chama esse tipo de pessoa que não sabe NADA sobre cavernas e nem quer entender NADA sobre quaisquer crateras obscuras localizadas na remota fronteira entre o Laos e o Vietnã?? É um tipo de gente conhecida como: pessoa normal.

– Mas é um buraco de 5 quilômetros!

– Que bacana. Bora no cinema amanhã?

Talvez seja essa a solidão dos produtores de conteúdo e dos especialistas em geral, esse ofício ermitão de aprofundar conhecimentos sem nenhum eco na própria vida. Eu vivo mergulhada em dados aleatórios. Mês passado estudei sobe a relação dos pré-colombianos com a prata. Antes, sobre variações do gótico e do mouro na arquitetura manuelina.

fodase ninguem quer saber

Eu acho tudo tão interessante, gente. Acho o mundo fabuloso. E o quê dizer desta caverna? Vontade de contar para a humanidade o quanto ela é ma. ra. vi. lho. sa.

É isso.

Lamento informar, mas sobrou pra você, caro leitor:

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A Hang Son Doong possui 3 milhões de anos.

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Ela recebe apenas 250 visitantes por ano, em acampamentos turísticos que custam 3 mil dólares por pessoa.

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São rios, praias e florestas tropicais debaixo da terra, inclusive com vida animal própria. Ela serviu de esconderijo na guerra do Vietnã e só não foi mais explorada por quê, segundo os nativos, produzia um uivo estranho que afastava os curiosos. É um ambiente que possui o próprio sistema meteorológico. Desde a sua descoberta, ficou conhecida como a Rainha Subterrânea.

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Pronto. Eu precisava falar. Sinto que a existência volta a fazer sentido.

Obrigada a todos pela oportunidade. Pela compreensão. Retornamos agora com a programação normal. Voltem sempre.

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A Pensão do Amor é um bar de Lisboa inspirado nas casas de baixo meretrício da década de 30. Na porta, não há nenhuma placa indicativa. Nem precisa: como não reconhecer a luz vermelha e a fachada aos pedaços? Depois de sobreviver ao terremoto de 1755, o edifício passou a ter quartos alugados à hora a prostitutas e marinheiros de todo o mundo. Depois, foi ocupado por moradores de rua. Por fim, passou a acumular lixo, muito lixo. Até que uma empresa chamada Mainside decidiu comprar e esvaziar o imóvel.

Reconstruíram ambientes, restauraram balcões, espelhos e adereços da época. Uma proposta interessante por não forçar nenhum tipo de glamour – tudo continua decadente e caricato, com aquela aura melancólica e turva que estes lugares carregam. Desde as poltronas de veludo, às cortinas de lantejoulas até à recriação dos cartazes de cabaret: “Judite será implacável” ou “Valéria vai levá-lo à miséria”.

Hoje, no salão principal, há um palco minúsculo onde acontecem shows de cancan e apresentações burlescas. Artistas reúnem-se e turistas frequentam o local. Agora, nos quartos dos fundos funcionam escritórios, galerias, agências e estúdios. Tudo é limpo, calmo e bem frequentado. Quase como qualquer outro bar.

Porém, as casas têm alma. E, se é verdade que a energia de um lugar segue latente nas suas paredes, ecoando pelos corredores, existe ali qualquer coisa. Uma melancolia fina, uma tristeza antiga.

Muitos museus da Europa expõem as casas de reis e rainhas, os quartos de duques e duquesas. Esse é uma pequena mostra dedicada aos casais não-colunáveis. Um passeio ao submundo dos pobres e clandestinos, um turismo da vida real. Enfim, um museu sobre a verdadeira história do amor em Lisboa.

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Pensão do Amor, Rua do Alecrim, 19 – Lisboa, Portugal

(Foto: Lisboa, 02 de janeiro de 2017, 10 graus)

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Um país que não tem aeroporto, nem trem, nem cais para aportar. Escondido no fim de uma estrada de dois mil metros de subida sobre granito e gelo até aquele que foi o feudo mais isolado da Europa. Cercada pela Cordilheira dos Pirineus, ninguém chegava até Andorra: foram 800 anos de paz inabalável. Distante demais, difícil demais. Diria Pascal, no século XVII: “As leis que valem para o lado de cá dos Pirineus não valem para o lado de lá”.

Ficou de fora das grandes revoluções. Napoleão não quis conquistar por que o acesso era muito complicado. Não fez parte do Tratado de Versalhes simplesmente por que foi esquecida. Não quis fazer parte da União Européia. Escolheu um idioma oficial diferente de todos os outros países do mundo. Nem sempre compareceu às Olimpíadas. É a nação do vizinho casmurro que prefere não socializar.

Além de distante, devo dizer que este universo paralelo é lindo, gelado e minúsculo. Possui a maior longevidade do mundo – as pessoas vão morrer de quê num lugar desses? Sem presídio, sem exército, no jornal deles nem existe página policial. A nação inteira é menor que a população do bairro onde eu nasci, Brotas, em Salvador. Tem menos gente que um Maracanã. Dá pra imaginar o recenseamento sendo feito por lista de chamada, com o pessoal levantando a mão.

O território é governado por dois príncipes e o antigo parlamento fica num castelo. Há uma lei que padroniza as edificações: são todas de pedra, como nas aldeias ancestrais. No último século, o país se transformou em paraíso fiscal e foi inundado por magnatas – já há limousines estacionando ao lado das carruagens de ovelhas e anúncios de neon sobre as chaminés de barro, existem até ruas inteiras espelhadas com vitrines. Mas, para além deste lampejo de luxo, a nação segue desconhecida e desinteressada pelo resto do mundo. Um feudo medieval com trenós sobre as montanhas de neve, no segundo ponto mais alto do continente, atrás de uma cordilheira de pedra. Bem longe de tudo. Bem perto do céu.

Andorra é um lugar para poucos, tem a aura das coisas raras. Das histórias antigas, dos objetivos inalcançáveis. Tem o charme dos lugares e pessoas difíceis. É o país dos antissociais.

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Outro post sobre o tema aqui.

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Numa dessas jukeboxs dos EUA, encontrei uma música em português e coloquei para tocar. Vi do outro lado uma moça dançando e fui até lá, feliz, para puxar assunto. Notei que ela usava fones de ouvido e dançava outra música, uma música que só ela escutava. Voltei para minha mesa.

Encontros são raros. É uma sorte isso de se encontrar.

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Mas, finalmente, aquilo era documento ou ficção? O diário de Hemingway citava despretensiosamente um país chamado Andorra, que eu julguei não existir. Minúsculo, entre a França e a Espanha, sem aeroporto, sem estação de trem, isolado entre as montanhas dos Pirineus. Desde os chalés de pedra cobertos de neve, os trenós puxados por cães e iglus com banhos térmicos: tudo parecia ficção. Das melhores. Mas não era.

(Desconfiei que não era quando não encontrei nenhuma referência no Dicionário de Lugares Imaginários. Conhece esse livro? 700 páginas com todos os cenários utópicos do cinema e da literatura, de Oz à Springfield, de Hogwarts à Passárgada, com mapas e referências das paisagens reais que os inspiraram. O guia de viagens do sonhos. Já conhecia? De nada.)

Fiquei obcecadamente lendo sobre o assunto, como é que eu nunca tinha ouvido falar desse país? Tão próximo da cidade onde eu morei, estive duas vezes naquela divisa, andei a pé por aquela estrada. Pesquisei fotos na internet e mostrei para alguns amigos: ninguém conhecia. Andorra virou nossa metáfora para oportunidade desperdiçada.

Dizem que, do ponto de vista da Semiótica, as coisas passam a existir de uma maneira mais sólida depois que ganham um nome. A ideia de ter caminhado ali ignorando a existência de Andorra me fez pensar sobre tudo o que eu ainda não sei – e que pode me parecer um vacilo imperdoável daqui até, sei lá, 2030. Me aflijo pelas descobertas futuras, pelas coisas que eu julgo conhecer muito bem. Talvez não conheça. Envelhecer é descobrir que a gente estava errado.

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(Fonte: Google)

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Ironicamente, neste ano de pessimismo generalizado, o lugar que eu mais gostei de visitar é conhecido como O Inferno de Dante.

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Ele fica debaixo da terra. Só é possível sobreviver por lá por algumas horas e recomenda-se o aluguel de roupas especiais. Sobre a existência de seres chifrudos com pé de bode eu não sei dizer, mas posso afirmar que não é fácil visitar a casa do sete pele.

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O lugar se chama Postajona e fica na Eslovênia. Fui parar neste abismo insólito graças a um roteiro de viagem baseado nos locais que inspiraram a obra de Dante Alighiere, em A Divina Comédia – começando pelo Inferno (Postajona), seguindo para o Purgatório (precipício em Santorini) e chegando ao Paraíso (catedral na Itália). Quer criar um roteiro poético, complicado e sem nenhuma praticidade? Pergunte-me como.

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Desce-se ao inferno por um trem em alta velocidade. Mas sair é diferente: é a pé, por conta própria, subindo sozinho por pontes estreitas e vertiginosas. Você fica no escuro, ouvindo o eco dos próprios passos, pequeno e perdido naquele labirinto de pedra. Um verme solitário no meio do nada. São 5 km até encontrar um facho de luz e ir reconhecendo os sons da superfície. E outras vozes humanas.

Ah, vozes humanas! Ali, naquele momento, o inferno não são os outros.

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Nem sei quanto tempo passei lá. Depois de achar a saída, demorou para eu conseguir abrir os olhos por causa do sol e voltar a reconhecer as árvores, a estrada, os carros passando. Uma casa, um cachorro, um cesto de lixo. Um grupo de pessoas num banco de praça. O mundo parecia uma festa.

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Como, de fato, ele é.

Foi o local mais bacana deste ano.

É isso aí. Feliz 2016.

 

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Uma vila perdida ao pé dos Alpes, com borboletas, esquilos e criancinhas correndo pelo gramado, jardins de alfazema, amor no coração, onde ocasionalmente faço planos de morar pra sempre, plantar morangos e viver de vender geleia.

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(30 de maio de 2015, Arboretum Volčji Potok, Kamnik, Eslovênia, 13 graus)

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