Perdoem-me a heresia da comparação, mas hoje eu lembrei de George Orwell.
Durante a Guerra Civil Espanhola, o ainda jovem Orwell alistou-se voluntariamente para lutar contra o fascismo. Foi enviado para os arredores da cidade de Huesca, vivendo numa trincheira feita de lama e detritos. Nas ofensivas, o general costumava apontar para a muralha e gritar: amanhã tomaremos café em Huesca! O que nunca aconteceu, visto que eles nunca conseguiram tomar a cidade, mas, para Orwell, foi aquela promessa de banquete que o manteve vivo e permitiu sua volta para casa.
Note que o general não prometeu medalhas e condecorações, não afiançou que iria erigir um monumento com o nome de cada soldado. Ele prometeu bolos e croissants numa cidade a 900 metros deles. Cabe reconhecer, não era um projeto descabido.
Nestes últimos anos, em que o fantasma do fascismo voltou a assombrar, noto que cada um adotou sua própria estratégia de sobrevivência e eu acho que encontrei a minha. Fugir.

Nem que seja por algumas semanas.
Outro dia, no Airbnb, eu vi a imagem de um lugar. Uma cabana de madeira da década de trinta. Piano e lareira, renas e ovelhas, um desses cenários que ilustrariam o paraíso em folhetos evangélicos, mas com um acréscimo: ela estava rodeada por montanhas de neve de onde despencavam SETENTA E DUAS cachoeiras. E a água se dissipava antes de tocar o chão, criando uma poeira d’água que formava um ARCO-ÍRIS PERENE.
Uma das imagens mais idílicas que eu já vi na vida, nem os protestantes imaginaram algo tão celestial.

No site de hospedagem, achei graça dos comentários dos hóspedes anteriores. Depois de pernoitarem naquele pedaço do Olimpo, lamentavam não haver lá um roupão de banho ou um cinzeiro ou qualquer outra banalidade que me pareceria irrelevante quando se está habitando o eldorado platinado. Se aquele oásis não agradou a todos, o quê neste mundo agradaria??

Por fim, para minha surpresa, a casa me era acessível. Eu poderia alugá-la, se quisesse. Eu não esperava por isso. Tive um momento de hesitação, como alguém que recebe mais do que deveria aceitar. Tudo naquela paisagem era esplendoroso demais para uma vida prosaica demais. Eu fiquei mesmo hesitante.
Mas lembrei de Orwell. E, sem nenhum tipo de planejamento, aluguei a casa das 72 cachoeiras.
Dentro ou fora da guerra civil, soldados precisam de um sonho para viver. Amanhã eu vou tomar café em Huesca e seja o que Deus quiser.