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Posts Tagged ‘guerra’

Hoje, há exatos dez anos atrás, eu estava na África, no deserto do Saara, na fronteira com a Mauritânia. A gente havia cruzado o Marrocos de jipe durante o dia e, quando a estrada acabou, continuamos o percurso de camelo. Cruzar a divisa de um país para o outro no meio da madrugada sobre um camelo já seria uma aventura por si só, mas não era só isso. O Saara estava em guerra.

Eu precisava de fotografias e depoimentos de como estavam as comunidades. Pessoalmente, acredito muito nos movimentos de descolonização, inclusive também apoiava o reconhecimento do Saara Ocidental enquanto país soberano, depois de anos de domínio espanhol e marroquino. Esse é um conflito antigo e a independência plena não aconteceu até hoje, mas em 26 de fevereiro de 2010, embalados pela Primavera Árabe, os confrontos recomeçaram e duraram até maio de 2011. Neste período, estive pelas mediações três vezes.

Naquela noite específica, os beduínos montaram uma tenda e ascenderam uma fogueira. O céu estava tão incrivelmente estrelado que me fez elaborar várias teorias aleatórias – tipo, deve ser por isso que a estrela e a lua são símbolos otomanos, observe que os países pós-otomanos estão em torno de desertos e quase todos têm estrelas em suas bandeiras (Marrocos, Mauritânia, Turquia, Paquistão, Jordânia, Argélia etc.) por que a noite num deserto é realmente cinematográfica, olha para isso, está tudo explicado.

Os beduínos estavam cantando e dançando à volta da fogueira, depois serviram um prato de cordeiro com cuscuz em quantidade obviamente insuficiente para doze pessoas e eu fiquei esperando para perguntar aonde a gente iria dormir. Era ali mesmo, na areia. Todos juntos. Estávamos no auge do inverno e, se os doze desconhecidos não dormissem fortemente abraçados, não sobreviveriam ao vento e ao frio. Apenas.

Foi uma noite insana.

A temperatura caiu de repente e eu não conseguia sentir nem os meus dentes. Não tenho ideia de quem eram as pessoas que eu abraçava com vigor e que me impediram de morrer de hipotermia. Eu estava usando todas as minhas roupas sobrepostas e, depois que todos dormiram, como se não houvesse problemas o bastante, eu precisei me levantar para procurar um banheiro. Não preciso dizer que não havia banheiro. Fui me desvencilhando de braços e pernas de estranhos até conseguir ficar de pé. Aí eu olhei em volta.

Eu nunca tinha visto nada parecido.

Uma madrugada clara e brilhante. Extraordinária. A noite no deserto não era de céu negro como a noite na cidade, era de um azul forte com manchas roxas, um emaranhado de galáxias. A lua cheia sobre aquele mar de dunas por todos os lados, como se grandes ondas tivessem virado areia um segundo antes de quebrarem na praia. Um enorme vácuo, só o vento forte indo do oriente para o ocidente, um silêncio de tudo. Se você se concentrasse por um minuto, poderia ouvir a respiração de Deus.

Depois que eu voltei a deitar, fiquei com os olhos abertos para o céu. Entregue no silêncio do vazio absoluto. Como James Joice, “Estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.

Levantamos antes do nascer do sol para desmontar a tenda, subir nos camelos e seguir para Ouarzazate, uma cidade feita de barro. No caminho, eu pedi para descer, queria tirar uma foto do grupo. Eu não contava que a areia estava batendo na minha coxa e que eu teria que ir nadando naquele mar de areia para acompanhar a fila de camelos que seguia sem nenhuma dificuldade. Tinha que ser rápida. Foi aí que fiz essa foto que está, hoje, ampliada num quadro da minha sala. Tanta coisa aconteceu nesta viagem, mas essa é a melhor recordação que eu trouxe de lá. Eu adoro essa foto.

Por coincidência, dez anos depois, eu estou exatamente diante deste quadro, trabalhando. O quadro está dentro de um apartamento comum, dentro de uma vida padrão. E eu estou escrevendo um artigo sobre um outro país africano, também em processo de descolonização – este outro, felizmente, num estágio mais avançado. Às vezes, eu interrompo o trabalho para levar o lixo lá fora. Ou para lavar os pratos. Ou para atender o interfone. E o porteiro que me interfona não imagina que a senhora do 802 estava na Guerra do Saara durante a Primavera Árabe.

Dizem que, depois que os primeiros astronautas voltaram da Lua, eles entraram em depressão até o fim da vida. Como se, depois de terem experimentado um evento tão extraordinário, a existência rotineira tivesse deixado de fazer sentido para eles. E eu entendo. Mesmo. A verdade é que eu vivenciei experiências incríveis durante quinze anos e, depois, fiz escolhas incompatíveis com aquele formato de vida. Eu deixei o trabalho de campo em 2016. Entendo que tudo o que eu produzo hoje, daqui do computador, também é importante e necessário. Que há muitas formas de contribuir com a engrenagem de um planeta em rede. E que ninguém pode ter tudo nessa vida. Eu sei.

Eu compreendo perfeitamente tudo isso.

Mas ainda há as noites de lua. E ainda há esse quadro pendurado na parede.

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“Quer conhecer o caráter de todos? Comece uma guerra.”

(Irène Némirovsky / Suíte Francesa)

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mais do que a própria guerra

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Então, a solução foi alugar um apartamento em Paris. O roteiro da viagem de estudo para Gaza tinha sido cancelado por causa da guerra, a gente já estava na França e precisava esperar até o dia de voltar para o Brasil. Nos classificados, havia um imóvel por um preço razoável na Champs-Élysées, alto, com vista para a Torre Eifel – ao menos, era assim no anúncio – mas tratava-se da casa de máquinas do elevador de um prédio caindo aos pedaços, de onde dava pra ver a Torre pelo basculante do banheiro. Cinco metros quadrados, sem aquecedor, sem janela, no sétimo andar de escada, dessas escadas de incêndio externas, de madeira, faltando degraus.

Enfim.

No térreo do prédio, tinha o bar do Antony, um cara que veio de Madagascar. O cardápio incluía um único sabor de pizza e dois tipos de bebidas, sendo uma delas água mineral. Vivia lotado. Era apertado o suficiente para que ouvíssemos as conversas de todas as mesas, a ponto de parecer que todos falavam sobre o mesmo assunto – e, de certa forma, falavam mesmo – era um bar de imigrantes que contavam sobre seus países. Refeição econômica, aquecedor, ficamos por lá.

De madrugada, voltávamos para o apartamento, subindo as escadas na chuva, vendo lá de cima uma Paris nublada – a gente foi parar lá para desviar de uma guerra e acabou conhecendo tanta gente que também estava lá, fugindo de outras guerras – e ficávamos conversando no quarto minúsculo, com uma lanterna acesa, lendo duas ou três páginas do Cortázar. No texto, ele dizia que havia um único ente de convergência internacional, mais do que a ONU ou a Cruz Vermelha, como “uma nuvem sem fronteiras que reconcilia mexicanos e noruegueses e russos e espanhóis”. O livro amanhecia aberto numa página qualquer e era necessário retomar a leitura voltando ao capítulo anterior, de forma que tudo era lido de novo e de novo como se o romance se esquivasse de chegar ao final.

Todo dia, voltávamos ao bar do Antony para ouvir outras histórias sobre um lugar, um povo, um mundo que alguém deixou para trás – e, apesar de não se falar nisso de forma clara, era como se Paris fosse uma sina irremediável, uma cilada de mosquitos à volta de uma lâmpada poderosa, a Cidade da Luz. Ninguém se encaixava perfeitamente ali, mas ninguém caberia mais dentro da sua cidade natal, então viviam nesta área cinzenta, os bairros étnicos. Ainda que houvesse o desfile de burcas, togas, turbantes e batinas diante das mesmas vitrines, seria ingênuo falar em integração, era uma tolerância higiênica. No fim do dia, todos voltavam para seus bairros devidamente segregados.

Ninguém naquela bodega tinha nada em comum – nem religião, nem time, nem partido – e, na falta de afinidades supérfluas, falavam sobre temas mais humanos. Antony servia outra rodada explicando que só um compatriota poderia compreender outro por que cada pessoa era a soma das ruas por onde andou, das esquisitices da cultura onde cresceu e que nenhum ideal ecumênico ou afinidade política aproximaria mais duas pessoas do que terem sido embaladas pela mesma canção infantil. Eu contei sobre a observação de uma amiga, em que a palavra para designar morada em português, em espanhol, em italiano e em romeno era sempre a mesma – casa! – mas, em francês, o código era outro – maison – e concluímos que os imigrantes de Paris dividiam a mesma maison, nunca a mesma casa. Alguém citou Babel, do Guillermo Arriaga. E brindamos à solidão de estarmos longe de casa.

É curioso pensar que, dias depois, perto dali, 12 pessoas morreriam no episódio que ficou conhecido como O Massacre de Charlie Hebdo. O crime de motivação político-religiosa foi o ato terrorista mais noticiado do ano. A verdade é que não adiantava ter mudado o roteiro, ter tentado desviar da guerra, os atalhos sempre fazem a volta, as coisas que a gente procura também estão procurando por nós. Mesmo que, no bar do Antony, parecesse haver uma ilha de integração possível. As noites eram alegres. Gaza parecia distante.

Nas leituras noturnas, Cortázar dizia que laços interculturais “eram contatos de galhos e folhas que se entrecruzam e se acariciam de árvore para árvore, enquanto os troncos erguem, desdenhosos, as suas paralelas inconciliáveis”. No quartinho, às vezes, chovia lá fora como se o mundo fosse se acabar novamente em água. Sentávamos na cama, lanterna acesa. Imagina que é o dilúvio. Imagina que é uma arca. Se o mundo começasse de novo, quem você levaria aqui dentro? Dois de cada etnia e duas pombinhas brancas. Se o mundo começar de novo, a gente faz um país: um único sabor de pizza, uma única canção infantil. E tudo seria diferente se o mundo começasse de novo? Ele já começou tantas vezes, melhor a gente ir dormir. Amanhã a gente decide sobre o futuro da humanidade. Ou a gente começa a remar. Ou a gente amanhece em Paris.

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