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Posts Tagged ‘literatura portuguesa’

“Liberdade também era isso, não voltar. O amor existia em todas as direções. Ela pressentia isso. Que o amor estava para lá de qualquer direção.”

(pág. 23)

“Os livros são objetos cardíacos. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. (…) Era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tanto tempo. A morte não importa muito para os livros.”

(págs. 58 e 59)

“Uma menina do colégio perguntava-me sempre se queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda noturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.”

(pág. 59)

“Puseram sobre o parapeito da janela principal uma fotografia da igreja nos tempos antigos. Quando alguém pensasse no que ia lá fora, veria a igreja na sua melhor multidão e pensaria que estava ali tudo. Tudo ali, como se, através das pessoas, todos os lugares do mundo estivessem juntos.”

(pág. 76)

“Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ver as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.”

(pág. 85)

(Valter Hugo Mãe / Contos de Cães e Maus Lobos, 2019)

  

Neste livro, houve um conto que me tocou profundamente. Vou contar de cabeça, não sei se correto. Fala de um casal de idosos que mora numa pequena aldeia e que é amigo de um outro casal de idosos há muitos anos. Os primeiros moram numa casa na fronteira da cidade, ao pé da montanha, à beira de um precipício. O segundo casal mora no alto, no centro da cidade. Um dia, os que moram embaixo propõem que a festa de fim de ano fosse feita na casa deles. O casal do alto não aceita bem a ideia e acaba havendo um desentendimento na noite de Natal. No dia seguinte, o casal de baixo sobe até a cidade para cumprimentar o casal amigo e desfazer aquela briga desimportante. Mas são ignorados pelos dois, que fingem estar ocupados. Decepcionados, os dois velhinhos descem a ladeira e voltam para casa pensativos. Sentados na varanda, ficam olhando o despenhadeiro. E, de repente, sentem o chão se mover como num terremoto. Como se a cidade aumentasse de altura atrás deles e acentuasse o declive da ladeira, inclinando a casa para o precipício. Eles se assustam. Seguram-se um no outro e abraçam o cachorro. E o conto acaba.

Achei comovente. Imagino que qualquer pessoa que, em algum momento da vida, tenha habitado a fronteira das relações, entende a delicadeza desta metáfora. Foi a coisa mais singela que eu li este ano.

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“Não a posso deixar aqui sozinha. Não estaria sozinha. Estaria sozinha de mim, que é a solidão que me interessa e a de que tenho medo.” (pág. 29)

“Estaria numa aniquilação imediata também, poupando-me a miséria de ver o sol que arde sem respeito por qualquer tragédia.” (pág. 36)

“Gosto desta maldade, não podemos ficar velhos e vulneráveis a todas as coisas, temos que nos rebelar aqui e acolá, caramba, temos que estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa tomar cuidado com as nossas dores.” (pág. 87)

“É um sentimento que fica escondido, à boca fechada, por quê sabemos que talvez não devesse existir, mas existe por quê o passado, neste sentido, é mais forte do que nós. Quem fomos há sempre de estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas.” (pág. 130)

“Eu, de fato, ainda adoro a Amália e ouço-a quase a chorar se for preciso e se tivesse que escolher um único português para entrar no paraíso, talvez quisesse que fosse ela, para eternizar de verdade aquela voz, a maior voz da desgraça e do engano dos portugueses. Pena não haver paraíso, já não haver Amália e ter havido e sobrar tanta desgraça e engano.” (pág. 147)

“Somos um país de cidadãos não praticantes. Somos um país de gente que se abstém.” (pág. 167)

“Havia uma morte para cada um. Alinhada como em fileiras do exército, aprumada em grande brio para vir colher quem lhe competia no momento certo. A morte era, afinal, a mais organizada das instituições. Cheia de afazeres e detalhes, mas muito competente e certeira.” (pág. 190)

“Deus é uma cobiça que temos dentro de nós. É um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. Deus é a inveja pelo que imaginamos. Como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida. Queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir.” (pág. 203)

“Sabes que os peixes têm uma memória de segundos. Aqueles peixes bonitos que vês dentro dos aquários pequenos, sabes que têm uma memória de segundos, três segundos, assim. É por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, por quê a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. Deveríamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, por quê a mais ridícula coisa na primeira viagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo.” (pág. 247)

(Valter Hugo Mãe / A Máquina de Fazer Espanhóis, 2010)

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