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Posts Tagged ‘mariana miranda’

“Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo, outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.”

(Mia Couto / Raiz de Orvalho)

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Um país que não tem aeroporto, nem trem, nem cais para aportar. Escondido no fim de uma estrada de dois mil metros de subida sobre granito e gelo até aquele que foi o feudo mais isolado da Europa. Cercada pela Cordilheira dos Pirineus, ninguém chegava até Andorra: foram 800 anos de paz inabalável. Distante demais, difícil demais. Diria Pascal, no século XVII: “As leis que valem para o lado de cá dos Pirineus não valem para o lado de lá”.

Ficou de fora das grandes revoluções. Napoleão não quis conquistar por que o acesso era muito complicado. Não fez parte do Tratado de Versalhes simplesmente por que foi esquecida. Não quis fazer parte da União Européia. Escolheu um idioma oficial diferente de todos os outros países do mundo. Nem sempre compareceu às Olimpíadas. É a nação do vizinho casmurro que prefere não socializar.

Além de distante, devo dizer que este universo paralelo é lindo, gelado e minúsculo. Possui a maior longevidade do mundo – as pessoas vão morrer de quê num lugar desses? Sem presídio, sem exército, no jornal deles nem existe página policial. A nação inteira é menor que a população do bairro onde eu nasci, Brotas, em Salvador. Tem menos gente que um Maracanã. Dá pra imaginar o recenseamento sendo feito por lista de chamada, com o pessoal levantando a mão.

O território é governado por dois príncipes e o antigo parlamento fica num castelo. Há uma lei que padroniza as edificações: são todas de pedra, como nas aldeias ancestrais. No último século, o país se transformou em paraíso fiscal e foi inundado por magnatas – já há limousines estacionando ao lado das carruagens de ovelhas e anúncios de neon sobre as chaminés de barro, existem até ruas inteiras espelhadas com vitrines. Mas, para além deste lampejo de luxo, a nação segue desconhecida e desinteressada pelo resto do mundo. Um feudo medieval com trenós sobre as montanhas de neve, no segundo ponto mais alto do continente, atrás de uma cordilheira de pedra. Bem longe de tudo. Bem perto do céu.

Andorra é um lugar para poucos, tem a aura das coisas raras. Das histórias antigas, dos objetivos inalcançáveis. Tem o charme dos lugares e pessoas difíceis. É o país dos antissociais.

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andorra-e-portugal-01-699

Outro post sobre o tema aqui.

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“A humanidade está vivendo uma situação de apocalipse, entendendo a palavra apocalipse como revelação. Há algo desmoronando e há também algo que está nascendo. Nós escutamos o barulho do carvalho que cai, mas não escutamos o barulho da floresta que brota. Ouvimos o ruído das torres desmoronando, mas não escutamos a consciência que desperta. Em geral, falamos das coisas que fazem ruído, mas o importante é aquilo que não se ouve. É preciso prestar atenção às sementes que estão brotando.”

(Jean-Yves Leloup / A Arte da Atenção)

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Um filme pode ser classificado em todos os gêneros ao mesmo tempo? Se o meu ano de 2016 virasse cinema, seria um caso para se estudar.

Poderia começar como um típico filme iraniano, bem lento e complexo, onde doutores dissertam por dias sobre filosofia debaixo de uma árvore. Depois, migra para filme americano dos anos 70, bem Woodstock, com música, protesto, bomba e estudante apanhando da polícia.

Aí, de repente, vira comédia. Comédia romântica, com cena clássica de festinha retrô, reencontro em aeroporto, de grávida tendo parto dentro do taxi e criança abraçada com cachorro. Humor hollywoodiano e final feliz.

Mas aí não era o final. Continua e vira um filme policial. Ataque cibernético, rastreamento online. Perseguição, bandidos, corredores cheios de gente, mulher fugindo de sequestro, correndo entre os carros e se escondendo numa cabine. Encolhida no chão. Chorando. Com um bebê nos braços. Então, para coisa ficar ainda mais surreal, o drama vira ficção científica: do nada, humanos embarcam com roupa de astronauta. Sobem 2 mil metros abissais, numa paisagem de gelo, deslizam num trenó puxado por cachorros. Última cena: protagonista entra num iglu. Aí acaba.

Seria um sucesso de bilheteria. Certamente 2016 teria uma classificação para maiores de 18 anos, por que não foi um ano para iniciantes. Aliás, acho que os menores de idade deveriam continuar em 2015 aguardando chamarem a senha para o reveillon.

Trilha sonora: Ed Sheeran (Photograph) e Maria Bethânia (Mortal Loucura). Fotografia: Yann Arthus-Bertrand, diretor do filme Humano. Cenografia: Luiz Fernando Carvalho, diretor de Velho Chico. Arte: Emma Watson. Argumento: Papa Francisco. Efeitos especiais: jogadora Marta. Participação especial: José Mijuca.

Agradecimentos: ao Divino, que caprichou no roteiro. Nada a pedir. Só a agradecer.

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– A internet só fala desse tal Heroine, da Mac. Lindo.
– O batom novo? Eu tenho um.
– E eu nunca te vi usando??
– Usei uma vez para ir ao escritório. E outra vez na faculdade.
– Usou para ir ao escritório? É um Heroine!
– Pois é. É o que dá ter uma maquiagem melhor do que a própria vida. Quer ele emprestado?
– …
– Quer ou não quer?
– Quero não. Batom dos infernos. Amo Jequiti.

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“A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra. Ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras e prossegue assim de dominação em dominação.” (69)

“Temos diante dos olhos cidades em ruínas e monumentos enigmáticos. Detemo-nos diante das muralhas abertas, perguntamo-nos que deuses puderam habitar aqueles templos vazios. As grandes épocas não tinham tais curiosidades nem tão grandes respeitos, elas não reconheciam predecessores: o classicismo ignorava Shakespeare.” (79)

“Por que não é com ideias que se faz avançar a história, mas com uma força material, a do povo que se reunifica nas ruas.” (115)

“A lição é a velha ideia de Marx: o novo nasce a partir do antigo.” (119)

“No primeiro estágio da revolução ideológica, sou pela pilhagem, sou pelos excessos. É preciso inverter a dominação, não se pode destruir um mundo delicadamente.” (123)

“Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso prática para atravessar o muro.” (130)

“Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante… É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. (…) É curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e, se eles não lhe servem, consigam outros, consigam vocês mesmos seus instrumentos, que é forçosamente um instrumento de combate.” (132)

“É preciso ouvir a exclamação de Reich: não, as massas não foram enganadas, em determinado momento elas desejaram o fascismo!” (140)

“No exército do século XVII, os indivíduos estavam amontoados. O exército era um aglomerado de pessoas com as mais fortes e mais hábeis na frente, nos lados e, no meio, as que não sabiam lutar, eram covardes, tinham vontade de fugir. A força de um corpo de tropa era o efeito da densidade dessa massa.” (180)

“No fundo da Prática Científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro, mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar.” (190)

“A característica destas instituições (escola, usina, hospital) é uma separação decidida entre aqueles que têm o poder e aqueles que não o têm.” (206)

“Convêm desvencilhar as cronologias e as sucessões históricas de qualquer perspectiva de sucesso.” (228)

“A partir do momento em que se atinge o poder, deixa-se de saber: o poder enlouquece, os que governam estão cegos. E somente aqueles que estão à distância, que não estão em nada ligados à tirania, fechados em suas estufas, em seus quartos, em suas meditações, podem descobrir a verdade.” (230)

“Parafraseando Astruc, que dizia: ‘o cinema americano, este pleonasmo’, poderíamos dizer: o historiador marxista, este pleonasmo.” (232)

“Na realidade, a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares… e a batalha continua.” (235)

“A política é a guerra prolongada por outros meios.” (275)

(Microfísica do Poder / Michel Foucaut)

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Em 2015, eu arranjei um emaranhado de problemas para a minha própria vida. Veja bem. Daí, naquele momento insalubre, tudo que eu considerava minimamente razoável é que os céus convergissem magicamente numa solução. Eficiente. E rápida.

Porém, os céus não se abalaram. Fui solenemente ignorada. E toda pessoa incorrigivelmente egocêntrica sabe que os astros não possuem esse direito, não é mesmo? Mas o Divino bancou a egípcia. Fiquei chocada com o descaso do universo.

Então, logo depois, em novembro, num evento não relacionado, aconteceu a maior tragédia social e ambiental do país: a queda da barragem do Fundão, em Minas Gerais. Um incidente terrível. Por coincidência, numa cidade que se chamava Mariana. Do dia para a noite, o cosmos inteiro parecia interessadíssimo pelos problemas de Mariana.

Em todas as manchetes: a tragédia de Mariana. No telejornal: saiba mais sobre Mariana. Nos portais, nos blogs, nos memes: Mariana precisa de nós, todos por Mariana, jamais esqueceremos Mariana. Gente na rua andando com a camisa “vamos salvar Mariana” só me dava gastura e o dia inteiro ouvindo os gritos dos locutores de rádio: o que vai acontecer com Mariana? E o drama de Mariana?? Haverá saída para Mariana?? Precisamos falar sobre Mariana!!!

Eu. estava. enlouquecendo.

O que eu chamei de “descaso do universo” se transformou numa turba de milhares de pessoas oferecendo socorro e auxílio e consolo ao mesmo tempo por todos os lados num pesadelo claustrofóbico e eu já nem queria mais ajuda nenhuma, eu só queria que PARASSEM DE ME CHAMAR E ESQUECESSEM O MEU MALDITO NOME E ME DEIXASSEM EM PAZ PELO AMOR DE DEEEUS.

Gente, que fase.

Mas, temos que reconhecer, o Divino tem senso de humor.

Por fim, com o tempo, o nome mais repetido do ano foi sendo deixado em paz. E outras notícias entraram em cena, felizmente. Então, passaram a divulgar a reaproximação de um ciclone sobre a costa do Atlântico Norte. Era a volta de um furacão antigo. E ele se chama Katrina.

Mas, gente, quem é essa Katrina? Por que se chama Katrina?? De novo notícias de Katrina?? Quem é essa maldita Katrina???

Odeio ouvir falar sobre o furacão Katrina. Não é nada fácil ser o centro do universo.

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Os bebês enxergam mal. Eu não sabia disso. Quando nascem, eles só enxergam o que está a alguns centímetros de distância. Dizem que é comum que os adultos estejam ansiosos para mostrar o mundo aos recém-nascidos: abrem as janelas da casa, ligam a televisão, vão ao parque mostrar as árvores. E a criança vai olhar a tudo e sorrir, mas ela não está vendo nada. No máximo, vendo você. Ela está rindo da euforia que aquela paisagem causa em você.

A percepção de profundidade chega aos quatro meses. A gradação de cores, aos cinco. Aos oito meses, já dá pra reconhecer alguém do outro lado da sala, mas as ruas, os carros, tudo ainda parece nublado e confuso. Como no Mito da Caverna, de Platão, quando ouve um ruído, o bebê procura o seu rosto para saber o que se passa lá fora. Se o seu olhar for de encantamento, ele vai acreditar num mundo encantador.

Os bebês enxergam mal, mas reconhecem vozes e odores desde a gestação. É a nossa memória mais remota: música e perfume. Enxergar é uma conquista gradativa – num dia, a descoberta fabulosa do formato da própria mão, veja só. No outro, horas de hipnose por um ventilador ligado. De repente, o milagre epifânico de um guarda-roupas aberto: tecidos e estampas e cores inacreditáveis, texturas confusas, uma explosão de informações sem definição que se abre e se fecha miraculosamente. Bebês te olham pedindo explicações. Eles buscam em você legenda para tudo.

Porém, com um ano, a criança passa a enxergar plenamente. E aquele deslumbramento pelo banal vai ficando mais raro. Não sei dizer exatamente quando a gente deixa de se surpreender com o mundo e se torna mais um adulto entediado. Quantas variáveis precisam convergir para que um adulto se sinta eufórico? Houve um tempo em que assistir o ventilador era realmente um programa legal.

Às vezes, penso que só os bebês são felizes. A gente nasce enxergando mal e, quando passamos a ter uma visão plena sobre as coisas, elas começam a ficar desinteressantes. Vai ver a alegria não esteja nas coisas em si. Bebês não podem enxergar as belezas do mundo, precisam encontrá-las na expressão de outra pessoa. Talvez um rosto em festa seja melhor do que a festa. E a vida seja mais bonita pelos olhos dos outros.

Os bebês só enxergam a paisagem de dentro. Cultive em seu olhar um mundo maravilhoso.

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“Olhando para ele na praia até você poderia entender a graça dele para as moças: era bonito, mas logo ficaria feio. Isso o deixava ainda mais bonito. Era muito branco e trazia a pele acabada de sol e álcool e privação de sono, a cara sempre meio inchada de ressaca. Tinha sardas nos ombros e pele já fina e flácida logo abaixo do pescoço, de um jeito que poucos têm aos trinta. Tinha rugas ao redor dos olhos, também muito antes da idade, e uma espinha ou outra. Tudo nele era deslocado. Parecia além e aquém de seus anos, feio e bonito. Parecia mal tratado, uma pessoa que não se preservava. Enquanto todos se guardavam numa mesquinharia sem fim, ele se gastava. Era uma beleza que seria arruinada em cinco anos, você queria estar ali para ver.”

(Juliana Cunha / Reação no Mundo)

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