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Uma singela festividade

Ontem, os correios deixaram aqui um lote de guardanapos de linho. Quarta, uma caixa de velas azuis. Semana passada, deixaram um lote de envelopes e cada encomenda entregue na minha porta me faz lembrar de todas as coisas que não chegaram a acontecer. Olha, que desgosto.

Sei que pandemia atrapalhou os planos de todo mundo. Mas, talvez por possuir um repertório robusto de cancelamentos inexplicáveis, eu fiquei especialmente decepcionada pela suspensão de um pequeno evento meu. Já contei para vocês que eu já me formei QUATRO VEZES e não estive presente em NENHUMA das minhas festas de formatura? Pois. Eu já escolhi vestido e ensaiei discurso em QUATRO momentos diferentes da minha vida e estive dramaticamente ausente de todos eles por motivos inspirados em realismo fantástico. Fatos inacreditáveis. Nem vou tentar explicar.

Então, este ano, surgiu a oportunidade de fazer uma festa. E isso me pegou de surpresa. Seria o destino me oferecendo uma redentora quinta oportunidade? Seria finalmente a minha chance de protagonizar um modesto festim? Talvez. E o que foi que eu fiz em janeiro de 2020? Escolhi vestido e ensaiei discurso.

HUAHUAHUA

HUAHUAHUAHUA

HUAHUAHUAHUAHUA

HUAHUAHUAHUAHUAHUA

HUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHA

O meu otimismo é a minha derrota, gente.

HUAHUAHUAHUAHUAHUA

(Tenham paciência comigo. O humor é a delicadeza do desespero, diria Boris Vian).

E aí a pandemia chegou. Mas não dava para simplesmente adiar o evento, querida? Não. Inclusive, já devolveram o dinheiro, pois a igreja foi interditada para uma longa reforma e o hotel da festa FALIU E FECHOU. Apenas. E o que me sobrou de tudo isso foram essas encomendas sendo soturnamente deixadas na minha porta, numa espécie de metáfora mal assombrada de tudo na minha vida que poderia ter sido e não foi.

Hoje, ciente de que nem toda teimosia do mundo pode mudar o destino, eu cheguei à conclusão de que esta singela festividade NÃO ACONTECERÁ JAMAIS e resolvi mostrar para vocês um pouco de tudo o que eu tinha planejado. Era uma festa tão linda, poxa. Vamos comemorar comigo? Você é meu convidado.

Seja bem-vindo ao meu lugar preferido de Salvador (não me perguntem por que esse hotel lindo fechou, eu também não sei). Vamos à área da piscina, onde estão todos esperando.

Agora você pode escolher um dos vinte lugares na grande mesa do jardim (essas velas azuis estão aqui encaixotadas, não sei o que fazer com elas. Os candelabros dourados eu devolvi).

Eu estarei te esperando perfumadíssima vestindo esse traje de linho rústico. Dessas roupas ligeiramente épicas, mas confortáveis como um pijama. Eu estarei feliz e falante. Vou perguntar se você quer uma bebida.

O garçom vai te servir um drink lilás que eu aprendi a fazer no Youtube: ele é feito com lavanda, coco e limão. O gelo é decorado com flores comestíveis.

E vão te servir uma fatia do bolo feito com flores de açúcar que imitam as pinturas de Monet.

Será uma noite leve e divertida. Eu vou reunir a todos para agradecer a presença e fazer piadas. Vou contar da noite em que fecharam os portões e eu fiquei trancada dentro da faculdade. Vou contar dos congressos e viagens. Vamos brindar cantando na beira da piscina e você vai gostar de estar ali.

Numa certa hora, você vai até cantar comigo. A gente vai gargalhar.

E, quando ficar tarde, por fim, a gente vai se despedir. Na saída, será entregue uma lembrancinha: são fotos de cada convidado que foram feitas em segredo durante o evento. Espontâneas, capturadas de longe. Naturais, como tudo que é bom nessa vida.

E todo mundo vai voltar para casa feliz.

Enfim, essa seria a minha festinha. Tomara que você tenha gostado.

Obrigada por ter vindo, caro leitor. Que bom dividir ela com você. Um brinde aos planos impossíveis, a tudo que a gente guarda só para si quando queria tanto compartilhar.

E aos sonhos que resistem por pura teimosia. Obrigada pela presença e volte sempre.

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Não que fosse consumista. Muito pelo contrário: a família do interior nunca lhe incutira devaneios econômicos, só um pouco distinção no vestir e pronto.  “Por que uma aparência bem cuidada é sinal de respeito”, diziam. Nunca esquecera. Sapatos limpos, meias alvas, unhas curtas, tudo nela era tão natural que tinha sua graça, o charme tímido da cara lavada sem malícia. E era fácil ser assim, simples. Até conhecer o vestido da vitrine.

Um luxo. Um luxo antes só imaginado, por que, naquela época, roupas assim não circulavam na cidade de onde veio, só existiam em ilustrações de contos infantis. Cinderela, talvez. Traje de gala dourado, longo, suntuoso, exuberante demais para a vida real. Ou para a vida dela. Aquela peça era seu oposto extremo, seu antônimo, seu convexo. Era a outra metade.

Reinando sozinho na vitrine, devia ser caríssimo, pensou. E era. Quanto do seu ordenado? Calculou só por curiosidade: metade do aluguel ou metade da mensalidade ou o custo das compras de supermercado e da conta de energia somados. Tudo por um vestido? Absurdo, absurdo, resmungou baixinho, quem daria isso tudo por uma roupa? Absurdo. Refez o cálculo, afinal, ele tinha saias sobrepostas, majestoso em tudo. Onde usaria um traje desses? Como ela mesma, sua rotina era simples. Não precisava de tanto. Ou precisava? Talvez fosse um caro possível, poderia dividir o pagamento – relativizou sem segurança, procurando outros parâmetros. Sim, poderia fazer aquela compra, com algum sacrifício. Mas, a troco de quê? Era custo demais por um vestido esplendoroso demais. Tudo nele era demais para aquela mulher sem excessos. Encolheu-se, resignada. Deixou a loja, tomou a rua.  Dissipou-se.

Na volta pra casa, a chuva rala de um inverno urbano, cinza, cinza. O guarda-chuva preto, as botas de borracha. O asfalto, o cimento, os edifícios de concreto, o cair da noite escura. Um mundo opaco – como nunca havia notado. Da janela, ruminou sozinha pensamentos dispersos: seu quarto apagado. Depois, o desbotado do quarto ofuscado pelo dourado do vestido. Depois, tudo mais que ele traria consigo: o vermelho do batom, o brilho dos anéis, a pérola dos brincos, pingentes, pulseiras, unhas escarlate, o colorido das festividades que poderia vir a freqüentar só para merecê-lo. Sim, precisava merecê-lo. Precisava de salões amplos, escadarias, lustres barrocos. Precisava de valsa. Orquestra, violino, essas coisas. E também de um cavalheiro de fraque para acompanhá-la na dança, as anáguas balançariam lentas, perfeitas, foram feitas para isso. Eles deslizariam entre os casais e já era possível imaginar o reflexo dos dois multiplicando-se nos espelhos emoldurados, nas taças de cristal, na prata dos castiçais. Dentro de um vestido dourado mulher nenhuma é despretensiosa, riu-se involuntária, irônica – todo grande sonho beira mesmo o ridículo. Descobriu-se perplexa. Riu-se novamente. Abriu os olhos, o quarto escuro à sua volta, impassível. Já não pertencia àquele lugar.

Anda, anda, anda. A manhã fria na cidade louca e a velha bolsa apertada contra o corpo, ela atravessando as ruas apressada, a loja a três quarteirões. As folhas de cheque num envelope pardo, era muito, era demais e sua fome pedia enormidades. Ofegava. Na contra-mão do mar de pedestres sonolentos, ela abria caminho. Eram os primeiros passos na direção contrária das coisas. Sabia que iniciara algo irreversível e corria, corria, por que, às vezes, não há mais volta e só nos resta mesmo seguir em frente até o fim. Ela estava pronta.

Enfim, a rua. A loja, a vitrine, o vestido sozinho em seu reinado, em sua espera. Sob a luz do sol tudo era mais belo e mesmo o manequim de madeira perecia lhe sorrir estático. Sorriu também. O reflexo da própria imagem no vidro sobreposto à do tecido, visão da sua pele matizada em seda dourada. Era o princípio das cores. Aproximou-se com a cerimônia dos grandes encontros e, então, reconheceu nele um detalhe novo. Uma etiqueta discreta: vendido.

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