No dia em que eu decidi ir embora de Salvador, passava na tv um programa sobre as ondas de rádio. Falava que os sinais de celular, de aviões, programas de tv, tudo transita por ondas invisíveis que, muitas vezes, se perdem do curso e ficam pairando no ar. E que, no futuro, com uma antena, será possível captar dados eletrônicos do passado que ficaram perdidos no tempo e no espaço. Imaginei a arqueologia do futuro tentando colar este quebra-cabeça de átomos: palavras soltas, notícias, canções, frases ditas há anos atrás, assim, voltando no meio de expediente. Num futuro longínquo, que nem imaginamos ainda, o passado ecoando de novo e de novo e de novo.
Hoje, talvez seja exatamente essa a nossa relação, Salvador. O contato de uma antena distante, sem nenhuma sintonia. Aguda, incompreendida, replicando mensagens loucas – buzinas, britadeiras, sirenes, estampidos. Um grande desencontro. Vozes do passado, que vêm e vão, aos berros.
Oh, minha terra, céu azul da minha infância. Meu amor despedaçado, repisado e dolorido. Quantas vezes eu te odiei um pouco, Salvador. Você que me faz igual a todo mundo, por que eu também sou de algum lugar e levo esse lugar comigo. O que fazer desta linha cruzada, dessa relação mal resolvida com uma cidade como se ela fosse um mal elemento a quem já se amou muito e, um dia, se decide abandonar por que, céus, o que mais eu poderia fazer? Eu, que nunca a preferi por causa das suas belezas. Nem pela sua pele de asfalto gasto, nem pela sua tez de muro sujo, tampouco a amei turística e enquadrada por Verger, mas sim como se ama a um filho feio ou a um pai triste, alguém que é bom o suficiente só por ser o seu igual, sangue do mesmo sangue. Mas Salvador pisou demais, forçou demais, abusou. Me comprimindo até o limite, dura, difícil. Cuspindo fuligem e gás carbônico, eu arranquei Salvador de mim. Doando miçangas, perdendo o sotaque – me esvaziando, abrindo caminho, deixando a mala mais leve e a alma mais livre – tudo isso, meu Deus, pra quê? Pra quê?
Salvador sempre volta. E eu sinto um elevador de gelo subindo por todos os meus andares cada vez que eu ouço falar. E um ciúme louco de todo mundo que a transita mais do que eu. Quando há uma foto na rua, uma notícia no jornal, uma música ao longe – “Eu sou o cheiro dos livros desesperados…” – e, então, fugir e mentir e negar esse laço mal acabado sempre me parece a coisa mais covarde que eu poderia fazer.
Salvador me dói. Animal cabeceando as grades da jaula, mesmo quando a porta está aberta. Como se eu fosse um saquinho de gudes de metal que se desintegram em mil partículas pelo mundo afora, para serem surpreendidas por um ímã repentino e retornarem autônomas, teleguiadas, derrubando tudo pelo caminho e se amontoando outra vez sobre o mesmo ponto, sem conseguir se rearrumarem na posição anterior. Salvador me desorganiza. Refazenda. Reconvexo.
Mas alguma coisa se quebrou e, não, eu não moro mais lá. Mesmo estando em Salvador, eu sou alguém que está de passagem, que está voltando continuamente, sem chegar nunca. Numa esteira rolante, no fluxo contrário, andando, andando, sem avançar. Dentro do táxi, com o coração aos pulos. Na direção errada. Cada vez mais distante.
Eu espero por Salvador em quartos de hotéis de qualquer outro lugar. E Salvador me chega, às vezes, assim, pelas ondas do rádio. Em frases soltas, palavras dispersas – Meca, Zion, Itabira, Macondo. Sombra da voz da matriarca da Roma Negra. Aonde o mar arrebenta em mim. Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando. Oh, bruta flor do querer.
Eu nunca saí de lá.
Lindo mesmo.
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Êta Saudade!?!? “…trago a minha banda, só quem sabe onde é…, saberá me dar valor…”
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Perfeito amiga. Tá mto lindo esse texto.
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