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Archive for the ‘moleskine’ Category

irma dulce mariana miranda

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“Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão.

Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta, nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. (…) Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos, pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. (…) No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela, com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam.

Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.”

 

(Tentação / Clarice Lispector)

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Não era pra ser ela. Era pra ser uma senhora grande, negra, poderosa, com uma história de vida sofrida num subúrbio do Brooklin e, pelo menos, uns 20 anos de jazz numa garagem suja antes do estrelato. Mas a dona da voz no rádio nem era americana, nem era negra, nem era nada do que a gente imaginava, do que a gente queria. Uma inadequada.

Acho que a gente só deu alguma atenção depois, por que ela chorava de amor no chão da cozinha. Por que era a garota que esperava num quarto de hotel a visita que nunca chegava, por que não aceitava ajuda dizendo que não, não, não queria se salvar. Você já conheceu alguém assim? Eu também conheço. Também tenho uma dessas morando lá em casa.

E o que era só uma personagem de tabloide estrangeiro foi ficando próxima, foi se materializando numa figura problemática, devotada e interessantíssima (redundância tripla?) que a gente tem vontade de abraçar, levar pra casa, botar colo e ninar dizendo – ah, eu sei que dói, querida, eu te entendo. Como ela mesma, levando torradas com queijo para os fotógrafos que pernoitavam na sua porta, aguardando pelo próximo escândalo. Ou, durante o concerto no Brasil, quando não conseguia acompanhar as músicas e, entre frases desconexas, repetia: oh, me desculpem por esta pequena interrupção…

Eu fico feliz em saber que, na minha geração, houve Amy Winehouse. Num mundo de Sandys, Britneys e Beyoncés meigas e bregas, mais objetos que sujeitos, mais vulgares que ousadas, houve alguém pra fazer música de qualidade e imortalizar uma das melhores frases do pop – you know, I’m no good. Por que a gente nunca foi mesmo, Amy. Mas faltava quem dissesse isso num microfone a sério, sem gritinhos histéricos nem rebolados contorcionistas. Ah, como faltava.

Acho que tudo era tão bom por que era espontâneo – e o que não é programado, às vezes, foge do controle. Já vejo a sua morte sair nos jornais, pais de família bradando “era uma drogada, onde o mundo vai parar com jovens como esses?”, todos com o controle remoto numa mão e o copo de uísque na outra. Deve ser difícil ser o purgatório de toda a loucura humana. Você não era a pessoa certa, não era a negra grande e poderosa que a gente esperava, mas vai fazer tanta falta. O que me consola é que, dessa vez, os fotógrafos vão ficar sem torradas. E você nem vai precisar pedir desculpas a tanta gente besta e sem talento por mais esta pequena interrupção.

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A sua loja não ficava no meu caminho. Quer dizer, durante aquele primeiro mês, a verdade é que eu não tinha bem um caminho. Eu tinha um punhado de horas vagas entre o trabalho e o estudo com o qual eu não sabia exatamente o que fazer – a cidade nova, a falta de amizades estabelecidas, família ou assuntos a resolver tornavam-se fatais ao fim de trinta dias – por quê um mês é tempo suficiente para você deixar de se sentir como um turista e tempo insuficiente para você passar a se sentir como qualquer outra coisa. Entrei numa rua ao acaso onde havia um bar vazio, um estacionamento e a sua loja. Nesta ordem de importância.

Era inverno. E eu me lembro disso por causa da praça do outro lado da rua: os pinheiros iluminados, os casais patinando no gelo e aqueles grupos de crianças em corais cantando nos tablados, tudo atraente o suficiente para me levar intuitivamente para o lado de lá da calçada, mas eu continuei indo em frente, onde havia a sua vitrine. Era a vitrine de uma loja minúscula. Chapéus antigos, peças de brechó, artigos para colecionadores e uma infinidade de esquisitices que me transportaram para uma dimensão interessantíssima. Eu abri a porta devagar. E ali, dentro de um colete dourado e um par de sapatos roxos, eu descobri que você era uma velhinha.

Não sei quanto tempo durou aquela visita entre cabides de fantasias orientais, pôsters de desenhos animados, postais  em preto e branco e vinis que você colocou para tocar e estavam impecáveis. A conversa fluía tão animada que levei algum tempo para perceber que você não falava português, nem eu falava chinês. E toda a comunicação acontecia entre apontar de objetos, risadinhas e interjeições aleatórias, você me mostrando uma miniatura de roda-gigante – ohhhh! – depois, um dragão fosforescente – uauuu! – e uma série de produtos improváveis que pareciam o cenário de uma ficção. Às vezes, quando eu queria saber para que servia determinado objeto, você erguia os ombros com a expressão impagável de “eu não tenho a menor idéia!”, tinha um acesso de riso e era preciso ligar para os filhos em casa, descrever a peça e perguntar o que se fazia com aquilo. Sempre acenando com os olhos puxados e com um sorriso largo de quem gosta sinceramente das coisas, até de uma estranha que entrou pela porta da loja e nem parecia querer comprar nada. Antes que eu fosse embora, você acenou algo como “volte sempre”. E eu voltei.

Várias vezes. E você me recebia com exclamações de palavras incompreensíveis, abria caixas e apontava as novidades, rindo o tempo todo. E eu me sentia menos deslocada no mundo. Meses depois, no dia em que eu fui me despedir avisando que ia embora para longe, muito longe, você fez uma pausa, foi até os fundos e me trouxe um latinha pequena, contendo algo que parecia ser chocolate. E fez uns gestos com a mão que interpretei como “isso é bom!”. E eu acreditei. Viajei com o embrulho, guardei aqui comigo e o tempo passou. E agora, tão distante, às vezes eu me tranco no quarto, abro sorrateiramente a latinha de metal e, mesmo sem ter idéia do que estou mastigando, guardo esse gosto na boca toda vez em que tudo dá errado. Cada vez em que o acaso falha, cada vez em que as pessoas se desencontram por razões idiotas e definha um pouco mais a minha crença na humanidade. Cada vez em que eu deixo de supor que o universo conspire mesmo ao meu favor, eu lembro que a sua loja nem ficava no meu caminho. Nem os seus sapatinhos roxos, nem as rodas-gigantes, nem os dragões fosforescentes, nem o conto infantil de onde você certamente saiu. E eu me sinto melhor.

Achei que você gostaria de saber, Mrs. Wei.

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“Yo adivino el parpadeo
De las luces que a lo lejos
Van marcando mi retorno.”
(Carlos Gardel / Volver)

Portugal, 26 de março de 2009,

Faz tanto tempo, mas eu me lembro. No início do ginásio, eu era a única aluna da minha classe que sabia andar de ônibus. Em parte por que eu gostava, em parte por força das diferenças econômicas mesmo: a maioria dos colegas tinha motorista, um luxo que eu, definitivamente, não dispunha. Mas dispunha daquela liberdade rara. Como esquecer o olhar dos colegas, nariz contra o vidro, cada um dentro do seu carro. Todos seguindo-me de longe pegar o meu próprio ônibus, com o meu próprio arbítrio, com as minhas próprias pernas. Se, aos 11 anos, eu tinha alguma vaidade na vida, era esta. Mochila nas costas, passe no bolso e um ar de quem sabe como, onde e de que jeito. Dona da rua e dona do mundo. Até que chegou o inverno.

Um dilúvio bíblico. Eu não esperava. As meias encharcadas dentro do tênis, o uniforme cheio de barro e eu escorregando sobre as poças enquanto veículos caros levantavam ondas de lama. Ensopada e suja, a dona da rua era agora um pavão molhado, uma criatura miúda com jeito de cachorro sem dono procurando abrigo sob qualquer marquise. Enquanto os colegas passavam mudos, nariz contra o vidro, cada um dentro do seu carro.

Lembro de entrar revoltada na cozinha do velho edifício Lisboa, casa de minha avó materna, preguejando contra tudo: a meteorologia louca do Nordeste, o transporte público lotado, as ruas sem calçamento, sem esgoto, sem guarida, e, principalmente, contra a minha infeliz condição de proletária andarilha naquela maldita cidade tropical onde eu precisava andar trezentos milhões de metros para chegar a qualquer lugar. E minha avó, serena, trazendo uma toalha e perguntando – mas, minha filha, me diga, isso não era tudo o que você queria?

E era. Eu havia passado as férias inteiras pedindo, suplicando, usando todo tipo de argumento emocional e financeiro para convencer minha mãe a me deixar andar sozinha de ônibus. Dizendo que era a ordem natural das coisas, um degrau, uma sina biológica e inevitável, uma casca de ovo quebrada. E lá estava agora, um semestre depois, tentando remendar os pedacinhos daquela cápsula onde eu, certamente, já não caberia mais.

Não sei se por isso ou por alguma outra razão – há tantas razões possíveis para o inexplicável – mas, desde então, a cada dia de chuva me invade um sentimento ancestral de desamparo. Uma certeza dura e corrosiva de ser a responsável por mim mesma, por cada degrau vencido, por cada queda na lama. Bicho adulto andando sozinho, mesmo que perdido, mesmo que ensopado. É quando chove que me vem essa vontade urgente de entrar pela mesma cozinha, de praguejar de novo, de pedir abrigo. De ouvir outra vez qualquer coisa que me acalme o peito ainda machucado. De não ter crescido. De voltar.

Agora chove. E eu acho que, no fundo, eu sempre soube que voltaria para Lisboa.

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Não que fosse consumista. Muito pelo contrário: a família do interior nunca lhe incutira devaneios econômicos, só um pouco distinção no vestir e pronto.  “Por que uma aparência bem cuidada é sinal de respeito”, diziam. Nunca esquecera. Sapatos limpos, meias alvas, unhas curtas, tudo nela era tão natural que tinha sua graça, o charme tímido da cara lavada sem malícia. E era fácil ser assim, simples. Até conhecer o vestido da vitrine.

Um luxo. Um luxo antes só imaginado, por que, naquela época, roupas assim não circulavam na cidade de onde veio, só existiam em ilustrações de contos infantis. Cinderela, talvez. Traje de gala dourado, longo, suntuoso, exuberante demais para a vida real. Ou para a vida dela. Aquela peça era seu oposto extremo, seu antônimo, seu convexo. Era a outra metade.

Reinando sozinho na vitrine, devia ser caríssimo, pensou. E era. Quanto do seu ordenado? Calculou só por curiosidade: metade do aluguel ou metade da mensalidade ou o custo das compras de supermercado e da conta de energia somados. Tudo por um vestido? Absurdo, absurdo, resmungou baixinho, quem daria isso tudo por uma roupa? Absurdo. Refez o cálculo, afinal, ele tinha saias sobrepostas, majestoso em tudo. Onde usaria um traje desses? Como ela mesma, sua rotina era simples. Não precisava de tanto. Ou precisava? Talvez fosse um caro possível, poderia dividir o pagamento – relativizou sem segurança, procurando outros parâmetros. Sim, poderia fazer aquela compra, com algum sacrifício. Mas, a troco de quê? Era custo demais por um vestido esplendoroso demais. Tudo nele era demais para aquela mulher sem excessos. Encolheu-se, resignada. Deixou a loja, tomou a rua.  Dissipou-se.

Na volta pra casa, a chuva rala de um inverno urbano, cinza, cinza. O guarda-chuva preto, as botas de borracha. O asfalto, o cimento, os edifícios de concreto, o cair da noite escura. Um mundo opaco – como nunca havia notado. Da janela, ruminou sozinha pensamentos dispersos: seu quarto apagado. Depois, o desbotado do quarto ofuscado pelo dourado do vestido. Depois, tudo mais que ele traria consigo: o vermelho do batom, o brilho dos anéis, a pérola dos brincos, pingentes, pulseiras, unhas escarlate, o colorido das festividades que poderia vir a freqüentar só para merecê-lo. Sim, precisava merecê-lo. Precisava de salões amplos, escadarias, lustres barrocos. Precisava de valsa. Orquestra, violino, essas coisas. E também de um cavalheiro de fraque para acompanhá-la na dança, as anáguas balançariam lentas, perfeitas, foram feitas para isso. Eles deslizariam entre os casais e já era possível imaginar o reflexo dos dois multiplicando-se nos espelhos emoldurados, nas taças de cristal, na prata dos castiçais. Dentro de um vestido dourado mulher nenhuma é despretensiosa, riu-se involuntária, irônica – todo grande sonho beira mesmo o ridículo. Descobriu-se perplexa. Riu-se novamente. Abriu os olhos, o quarto escuro à sua volta, impassível. Já não pertencia àquele lugar.

Anda, anda, anda. A manhã fria na cidade louca e a velha bolsa apertada contra o corpo, ela atravessando as ruas apressada, a loja a três quarteirões. As folhas de cheque num envelope pardo, era muito, era demais e sua fome pedia enormidades. Ofegava. Na contra-mão do mar de pedestres sonolentos, ela abria caminho. Eram os primeiros passos na direção contrária das coisas. Sabia que iniciara algo irreversível e corria, corria, por que, às vezes, não há mais volta e só nos resta mesmo seguir em frente até o fim. Ela estava pronta.

Enfim, a rua. A loja, a vitrine, o vestido sozinho em seu reinado, em sua espera. Sob a luz do sol tudo era mais belo e mesmo o manequim de madeira perecia lhe sorrir estático. Sorriu também. O reflexo da própria imagem no vidro sobreposto à do tecido, visão da sua pele matizada em seda dourada. Era o princípio das cores. Aproximou-se com a cerimônia dos grandes encontros e, então, reconheceu nele um detalhe novo. Uma etiqueta discreta: vendido.

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A gente não devia estar tão perto. Devia? Estamos conversando faz tanto tempo, eu não tenho mais nenhuma noção de por quantos labirintos já passou o nosso assunto – literatura, história, comportamento, urbanidades, impressões, a minha vida, a sua vida e até sobre este céu enorme em cima da gente numa composição de astros que não acontecerá amanhã, porque uma noite nunca é igual à outra, sabia? Li num romance europeu. Você sorri numa compreensão fluida, momento nenhum se repete, eu sei, você sabe, aperto de leve os olhos antes que o instante se perca ou que nenhum dos dois saiba reconhecer o dia em que estaremos prontos, mesmo sem fazer idéia do que queira dizer ‘estarmos prontos’. Movimento-me lento para não quebrar a fina aura de vidro do agora, sua mão inerte ao lado da minha, qualquer movimento casual e o risco do toque, respiro fundo, denso demais, perto demais. Por favor, não faça nada. Se você soltar seus cabelos agora eu desmorono. Se você sorrir outra vez eu confesso tudo. Pronto, você sorriu de novo – eu todo imóvel, pássaro empalhado antes do vôo, é claro que eu não vou dizer nada, eu sei, você sabe. E, como toda mulher, talvez adivinhe mais – minhas madrugadas abrindo e fechando a geladeira, telefonando para números imaginários, carregando contra o peito correspondências de contas de luz como se fossem cartas suas. Bobo que arde sem se ver, queimando sozinho eu sou todo setembro antes da primavera e quase esqueço que não devia, que não devíamos, que somos adultos o suficiente para a inconseqüência completa e justamente isso tornaria qualquer transgressão banal e clichê. Não me movo. Ancestrais, petrificados, somos dois fósseis sorridentes sentados sobre o mesmo muro aguardando a invenção das portas. Sozinhos nesta noite alta, nesta conversa sem fim, neste paraíso sem Dante. É, a gente é meio antigo mesmo…

Antes que amanheça, me conta de novo a sua história. Me fala outra vez do circo da sua cidade, das suas tranças cortadas, das velhas bibliotecas de cedro. Me fala dos clássicos. Repete e repete de novo os teus casos até eu confundir as suas lembranças às minhas, até reconhecer no meu corpo as suas cicatrizes mais antigas. Este encontro bem agora, profecia pura, conta-gotas de sertão que será mar. Talvez se houvesse festa, talvez se houvesse brinde, talvez se houvesse mentiras fosse mais fácil diluir da boca este veneno doce de impossibilidade, esta fome de maçã vermelha. Por que tudo dói mais quando só há nós dois e é necessário fingir – fingir pra quem mesmo? – que não faz diferença, que eu não faria qualquer coisa para continuarmos dividindo os mesmos metros quadrados de chão e de prosa enquanto o resto do mundo, enfim, o resto do mundo não importa. Viver não é preciso. Cantarola qualquer coisa antes que eu prefira a morte a esta espera por outro destino, outra salvação para Romeu que não morreu de amor. Haverá? Somos só duas pessoas e o planeta está repleto delas, as pessoas. Helena palaciana, não se perca de mim. Ruído de passos ao longe, tudo parece mesmo tão distante. Você me olha, me pesquisa, ronda a concha fechada e não pergunta o por quê do meu silêncio, eu sei, você sabe, ser ou não ser nem é mais a questão. Como quem foge das tragédias inglesas, como quem nega todas as líricas do norte, a gente sobrevive. E o dia ameaça nascer lento sobre nossas cabeças. Sobre os meus dedos imóveis, frios, nenhum toque – só as linhas da minha mão, obstinadas, entrelaçam forte as linhas da sua.  Promessa improvável, estanque e latente, quase nós, ah, quase nada. Só há um prefácio traçado e você não se afasta de mim – por quê?

Talvez este final – felizes para quando? – antiquadamente espere pela gente.

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Ele tinha momentos eventuais de silêncio que tornavam sua conversa um prazer. Não que sua atenção se perdesse num ponto qualquer ou ensimesmasse em introspecção – não era um homem de fugas. Quando falava sobre determinado assunto, desmanchava-se em adjetivos até não lhe sobrar nenhum, para, então, deixar-se estar reticente, como se o discurso continuasse em cavalgada própria, sem as suas palavras.
– As casas de Lisboa são sabiamente firmes, de uma engenharia robusta, altiva, arrojada… – silenciava fixo nela, libertando o subtexto para prosseguir mudo, paralelo, infinito. Como se seus olhos, então, pudessem guiá-la pelas muralhas seculares da cidade, pelas escadarias sinuosas esmaltadas com óleo de baleia, pelas ruas místicas e ruidosas ou por tantos outros pormenores que não seriam compreendidos pela cognição. Até onde iriam? Não há centímetro no mundo que não seja interessante – concluía.
Ele que, por ironia, nunca havia saído da terra onde nasceu, oferecia a ela o que não possuía: as lembranças de suas viagens futuras que, de fato, talvez nunca chegassem a atravessar a rua. Sem saber, entregava o mapa de um tesouro difícil, uma beleza que ela não reconheceria em lugar nenhum. Mas o roteiro já estava traçado. E ela cruzaria trópicos, continentes e oceanos, percorreria ilhas, campos e metrópoles, mas lugar nenhum lhe bastaria e ela sabia disso. Por que ouvi-lo falar de Lisboa era melhor do que Lisboa. Por que o mundo era ainda mais belo pelos olhos dele.

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Sim, cansei. Não adianta. Ainda mais depois de sábado. Convenhamos, a gente leva anos para se tornar uma pessoa interessante. Decora poema de Vinícius, usa roupa da moda, aprende tudo sobre astronomia, política externa e o raio que o parta. Tudo para atrair dois ou três olhares entre os próximos mais próximos. E até alcança o intento. Até aparecer alguém como a minha amiga Vera.

Implacável. Inclemente. Acabando com a festa de todas as damas do recinto. Alguém capaz de reunir as atenções e os elogios masculinos sem nenhuma fraternidade pela nossa existência. Uma afronta.

Se Vera é bonita? Na verdade, não. Aliás, desde menina, Verinha sempre foi especialmente feia. Mas, bastava ela aparecer em qualquer evento com sua camisa da seleção e seu violãozinho debaixo do braço, que a roda se abria. Incrível isso. E era só dedilhar duas ou três notas para despertar a comoção geral: era o hino do Ypiranga Futebol Clube. E a tragédia estava instalada. Depois do terceiro hino de torcida organizada, a criatura já era preferência nacional, diva, unanimidade – e viva a Verinhaaaa!!! Os rapazes não se continham. À volta da privilegiada crescia o coro de “uma vez flamengo, sempre flamengo” ou “sou fluminense de coraçãããooo” que seguia sempre até alta madrugada sem dó nem piedade de nós, espalhadas pelo salão, indignadas. Já disse que a Verinha era feia feito a fome? Este mundo não é justo.

Era uma cantoria sem fim. E, no final da noite, lá estava ela bem acompanhada com um dos convivas, sempre cuidadosamente selecionado, enquanto os outros disputavam sua atenção contando, emocionadíssimos, as proezas de Sócrates, Pelé, Garrincha e outros indispensáveis do campo. Todos gesticulando muito por comoção e saudades de um futebol do qual, infelizmente, não foram contemporâneos – ah, não se faz mais um time como aquele, Verinha, não se faz não… – lamentavam juntos, doloridos, órfãos, pedintes. E nós, abandonadas em algum sofá de canto, já descalças e sem maquiagem, só lamentávamos a Nasa ter levado apenas um homem para a lua. Ao invés de ter levado to-dos.

Mas a melhor foi neste sábado. Era uma reunião na beira da piscina, música, tudo ótimo. E, como sempre, no melhor da festa, chega ela, para nosso susto, pânico, terror e desespero. Já disse que a Verinha era feia feito a guerra? Mas nem preciso contar o que aconteceu o resto da madrugada. Já na saída, arrasada, esbarrei com a própria no estacionamento. Engoli meu orgulho e a cumprimentei, puxando qualquer assunto só por puxar: e aí, Verinha, tem jogo no estádio amanhã, você vai? – e a contemplada responde distraída, sincera – Para o estádio? Fazer o que lá?

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Tudo que não nos mata nos torna mais fortes. Quase sempre é assim. Mas há também o que nos mate aos poucos, lentamente, feito ferrugem consumindo os dedos das estátuas. A gente sabe que está morrendo um pouco mais e se conforma. E se entrega. Abandona-se como num banho de chuva envenenada, deixando-se encharcar por todos os poros, pressentindo o mal infiltrando-se no corpo inteiro. Para, um dia, deixá-lo escapar assim, de repente, pelo canto dos olhos.

A gente morre um pouco quando viaja calado, olhando a paisagem, completamente distante. Ou no caminho solitário para o trabalho. Ou no silêncio da TV desligada. Toda vez em que corpo e alma não ocupam o mesmo lugar a gente morre um pouco – por saudade.

Se lembrança é uma fotografia que guardamos num álbum empoeirado, saudade é uma 3×4 que carregamos no bolso da camisa todos os dias. Faz as horas e os espaços maiores, intermináveis. Deixa-nos vazios, feito um pátio de escola durante as férias de verão. Saudade é quando não encontramos em nosso próprio vocabulário palavras maiores que o silêncio. E, por isso, mantemos o silêncio.

Ela está no desamparo que nos abate quando temos tempo livre e não sabemos o que fazer com o fim de tarde ocioso. Está na chuva fazendo desenhos estranhos no vidro da janela. Na tecla repeat do seu aparelho de som. No saguão dos aeroportos. Na sua caixa de e-mails cheia de mensagens inúteis. Na solidão costumeira do seu dia-a-dia, em qualquer espaço vazio dentro da sua alma – a saudade vai estar lá.

Nestes momentos, sem querer, você vai se pegar imaginando a sua vida se você não tivesse tomado o rumo que tomou. E vai se perguntar como foi parar no lugar onde está. E vai fazer de conta que não se importa em colecionar sonhos desfeitos, que não se perfuma todos os dias para este encontro com o passado. Que, às vezes, não se sente de pé, estendendo um presente enfeitado entre as mãos sem ter a que entregá-lo, por que o amor ficou, mas a pessoa amada não.

Depois, em alguns momentos, você irá se pressionar a decidir se continua sofrendo, se esquece tudo pra tentar ser feliz ou se compra uma bicicleta. E acabará sofrendo um pouco mais, por causa da dúvida. Sem opção, vai tocar a vida pra frente. Sim, você construirá novos sonhos, fará planos, até se sentir seguro e confiante. Para, um dia, ouvir certa música tocar novamente. E estremecer. E descobrir que não passou.

Saudade é uma promessa que não dá mais pra cumprir. É o inferno de quem não aprendeu a esquecer. É esta vontade louca de morar dentro daquela fotografia, é não saber se somos lembrados e, mesmo assim, não conseguir acomodar a lembrança do outro dentro do baú. Saudade é morrer um pouco a semana inteira e, no final, não saber se vivemos sete dias ou o mesmo dia sete vezes. É morrer vagarosamente, e, ainda assim, permanecer sólido. E grande, como as estátuas. Por que morrer de saudade também é uma forma de morrer por amor.

Pensando bem, aquilo que nos mata também pode nos tornar mais fortes.

 

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