Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘diário’

– Bom dia, prefere janela ou corredor? Devemos reservar lugar para mala ou mochila? Pretende incluir bagagem de porão?

Viagens exigem muitas decisões. Para quem tem dificuldade de escolher, o aeroporto pode se tornar um gabarito infernal.

– Fechadura tradicional ou cartão magnético? Qual é o valor aceitável para um transfer? Deseja que o seguro inclua cobertura contra acidentes nucleares?

Escolher um destino geralmente é simples, o mundo é cheio de lugares maravilhosos. Mas aí começa a sabatina. A escolha do transporte, do número de dias, da época do ano. Mas acho que escolher hospedagem é especialmente difícil. Hospedagens espelham o nosso momento de vida.

Eu mesma sempre gostei de hospedagens exóticas, não entendia por que as pessoas renunciavam a perambular por cidades multiculturais para se sedentarizar em ambientes pasteurizados, tipo um navio ou um resort. Mas, vejam só, eu era jovem. Hoje, a ideia de peregrinar por metrópoles caóticas carregando crianças e brinquedos me parece exaustiva. E também me pergunto se gostaria de transitá-las na terceira idade – só de imaginar as montanhas russas girando e piscando sob música eletrônica já me causa labirintite. A verdade é que passei a gostar de locais distantes e paradisíacos. Refúgios que só seriam viáveis para mim se tivessem, pelo menos, um parquinho infantil. E um posto médico. E janelas com telas de segurança. E atributos que, vejam só, me fazem lembrar um resort. 

Outra questão é o número de viajantes. Descobri que, quanto maior o grupo, menor a liberdade. Numa equipe de 10 pessoas, a vontade de cada uma irá vigorar em 10% do tempo. Imagino que ninguém parcelou as suas férias em 12x para ter autonomia sobre apenas 10% do roteiro. Menos gente, mais autonomia.

E a época do ano? Alta estação ou baixa estação, verão ou inverno. E as festividades locais? Época das monções, das turbulências políticas, da temporada de ski, promoções da companhia aérea, atrações que só funcionam em uma parte do ano. É um quiz infinito.

Deixo as malas no saguão ou encaminho para o quarto? Café da manhã incluído ou abatimento de 10% na diária? – às vezes, eu gosto de ouvir relatos de viagem de outros viajantes. São reveladores, narram muitas escolhas acumuladas em poucos dias, são como abrir um diário. 

Por exemplo, eu nunca fui à Argentina. E sempre pergunto às pessoas: como é a Argentina? Há o viajante que fala da gastronomia, outro que fala sobre a organização do trânsito, outro sobre as pessoas de olhos azuis. Há quem fale sobre a paz das vinícolas, do terrível derretimento das geleiras ou das vantagens de câmbio inacreditáveis. Existe quem economizou a vida inteira para conhecer e quem só viajou para lá por que o euro estava caro demais. Freud diz que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais sobre Pedro do que sobre Paulo”. E talvez a minha pergunta nunca tenha sido sobre a Argentina. 

Talvez viagens nunca sejam sobre destinos, mas sobre escolhas. Acho que é por isso que eu tenho aflição de blogueiro dizendo que viajar é simples e acessível – não é – e medo de parecer idiota para quem tem dinheiro, mas outras prioridades – insira aqui o consumo classe média da sua preferência. Mas meu pior pesadelo é conversar com quem confunde vivência com consumo. Quem hierarquiza cidades pelo valor de ostentação. “O valor de uma cidade é a resposta que ela dá às nossas perguntas” (Ítalo Calvino).

A gente viaja para poder escolher, viagem é o paraíso do livre-arbítrio. Você pode incorporar o banhista empolgado que anoitece na praia ou o aventureiro escalando cachoeiras ou o sedentário que só levanta para não perder o café da manhã do hotel. Pode ser o crítico de arte de todos os museus ou o flanêur que senta na calçada para ver as pessoas passarem. Não há certo nem errado. Quando for planejar a sua próxima viagem, não pense no lugar, só pense em quem você quer ser. 

Deus criou destinos lindíssimos. Você pode escolher a Argentina que quiser.

.

.

.

Read Full Post »

Décimo segundo dia da quarentena. Ontem ficamos sem energia – sem internet, sem rádio, sem celular – e, hoje, deve faltar água. Mais um dia assim e vão me encontrar conversando com uma bola de vôlei. Tenho feito registros só para marcar este episódio histórico, mas, hoje, esse negócio de escrever sobre os bastidores de uma tragédia pública me pareceu meio macabro, tipo Diário de Anne Frank ou O Paciente Inglês. Dessas narrativas despretensiosas que as pessoas fazem quando acham que tudo vai ficar bem, quando ainda não entenderam que aquele cenário confuso diante delas é apenas. o fim. da linha.

A comida está acabando. Não estoquei nada – empatia social, mores – e não sabia que o mercado levaria sete dias para fazer a entrega, então o jantar de hoje foi gelatina com aveia. As crianças gostaram. Tenho mantido a casa entretida mesmo dentro da calamidade, um perfeito roteiro de A Vida é Bela. Quando fui procurar na dispensa algo para o café de manhã, entre potes de chá, orégano e mais gelatina, encontrei algo que me fez lembrar o ano de 2010. Meu Deus, que fase.

(Caro leitor, se você também viveu alguma coisa bizarra há 10 anos atrás, abrace seu Buda: esse é um ciclo que vai se fechar agora. Diria Bukowski: você só cai de um mesmo cavalo uma vez por década).

Voltemos a 2010. Devo lembrar que, naquela fase do período cretáceo, possuíamos poucas redes sociais, os celulares dispunham de fotos com baixíssima resolução e nenhuma internet móvel. Época horrível. Eu estava vivendo momentos de altos e baixos financeiros que, quando altos, tocavam as nuvens, quando baixos, mergulhavam no magma da Terra. Atribuo esta turbulência monetária ao fato de ter uma personalidade otimista – irresponsavelmente otimista – somada à certa ingenuidade juvenil. Até então, eu desconhecia esse abismo cognitivo que existe entre pessoas com menos de 30 anos e as que possuem mais de 30, esse portal que só se revela depois que você atravessa para o lado de cá e te faz rever os filmes da sua adolescência apenas para descobrir que os pais do mocinho estavam com razão o tempo todo. Eu era muito ingênua. Essa iluminação ainda não havia chegado a mim. Só lembro de, em junho de 2010, estar bem feliz vestida de vermelho na Champs-Elysees, jantando numa esplanada à luz de velas. Em julho, de ter levado um calote memorável. Em agosto, de estar vendendo os meus móveis na feira para pagar o aluguel.

Final trágico para uma bancarrota épica, sim?

na verdade, não. Era só o começo.

Infelizmente, os móveis não valiam tanto e, no fim do verão, fomos despejados. Pensei em desistir de tudo, mas eu estava obstinada por um projeto pessoal importante, era a chance da minha vida. Consegui alugar um porão num prédio histórico caindo aos pedaços, um depósito subterrâneo sem janelas, uma única lâmpada. Eu não sabia como seria o inverno ali. Ter vendido o tapete foi uma decisão errada, por que o piso foi ficando mais gelado a cada dia. A lareira não funcionava, muito mofo. As chuvas foram chegando, as infiltrações inundavam tudo e não dava mais para dormir no chão. Mas eu ainda estava otimista. Irresponsavelmente otimista. Eu achava que ia passar.

Não passou.

Meses depois, fomos despejados de lá também e embarcamos para a África – pela terceira vez – porém a África estava em guerra – de novo – e isso representou problemas ainda piores, mas o episódio que eu quero narrar foi um pouco antes. Foi naquele dia. O momento exato em que eu entendi que não dava mais para ser otimista. Aquilo não ia passar.

Era uma dessas tardes tristíssimas em que eu estava chegando do trabalho. Eu me perguntava o que ia acontecer com a gente naquele inverno. Me curvei para entrar no porão, tranquei a porta, tirei o casaco, acendi o fogareiro e fui ver o que restava na dispensa. Eu administrava as compras e percebi que havia algo errado. Os biscoitos tinham acabado, mas ainda havia arroz e sardinha. Enumerei os itens de novo e me dei conta do que estava acontecendo:

Meu namorado estava, há semanas, ALMOÇANDO BISCOITO DE COCO para que eu tivesse o que comer.

GENTE.

MEU MUNDO CAIU.

Eu estava causando problemas a outra pessoa. Eu fiquei paralisada com essa informação.

Eu não havia percebido antes. Entre todas as aquelas privações, por algum motivo, essa mudou tudo. Por que eu percebi que a culpa era minha. Do meu projeto de vida, da minha obsessão, do meu otimismo. Não falei nada sobre o assunto. Mas este dia marcou uma série de mudanças: eu entendi que precisava fazer algo, que aquela fase ruim não ia, magicamente, passar.

E devo dizer que nunca mais na vida eu comi biscoito de coco. Tomei horror. Arroz com sardinha também passou a me causar aflição. Enfim.

Depois de uma labuta colossal, finalmente, os meus planos deram certo. E tudo se ajeitou. Hoje, seria elegante concluir que todos estes episódios mudaram completamente a minha maneira de ser e que eu me tornei uma pessoa madura e ponderada, que não alimenta quaisquer projetos aventureiros irresponsáveis – mas a quem estamos tentando enganar, não é mesmo??? EU NÃO ME IMPORTO. Provavelmente ainda passarei por perrengues incríveis nesta vida, mas aprendi que não posso arrastar ninguém comigo para o fundo do poço. Meu coraçãozinho é bem Saint-Exupéry: a gente é responsável pelo que cativa.

Final feliz, vejam só. E dez verões e invernos sucederam-se no calendário gregoriano.

Em março deste ano, quando começou a quarentena, eu fui uma cidadã exemplar. Mantive uma calma celestial desde o início, ajudei a todos. Vai parecer louco o que eu vou dizer, mas, ao menos, foi apaziguador estar diante de uma crise que não fui eu quem criou. E não sou eu quem precisa administrar, conduzir, solucionar. Estamos vivendo uma pandemia, é um problema mundial. A dispensa está vazia de novo, mas é um alívio saber que a culpa não é minha.

Então, hoje à noite, em episódio não relacionado, fui resgatar uns alimentos no armário e encontrei algo surpreendente. BISCOITO DE COCO. Socorro! Ninguém sabe de onde veio. Concluí que ele foi trazido pelo Bukowski em pessoa, que levantou da cova catando os próprios pedaços e dirigiu-se pessoalmente à minha cozinha só para me lembrar que uma década já se passou. Que está começando outra. E que eu não posso deixar aquele cavalo me derrubar de novo.

Por absoluta falta de opção, o café de amanhã será esse mesmo, biscoito de coco. No almoço, teremos um cardápio sofisticado composto por salsichas em cubos acompanhadas de milho em lata. No mais, seguirei tocando violino no convés do Titanic, escrevendo diários sobre um futuro melhor. Vendendo otimismo nesta quarentena.

Isso vai passar. É claro que vai.

Read Full Post »

– Em 2009, li sobre um artista plástico do Recife que montou uma exposição inspirada num diário que ele encontrou no lixo. O dono do diário nunca foi encontrado.
– Como era?
– Ah, eram as desventuras do cidadão. Dava pra ler o diário todo, até hoje está na internet.
– Meu Deus, coitado!
– Como assim?
– Nunca mais jogo nada no lixo. NUNCA. MAIS.
– Por quê?
– Imagina ter o seu próprio diário publicado na rede mundial de computadores?
– Mariana, você TEM um diário publicado na rede mundial de computadores.
– Eu?? Ah, é.

Read Full Post »