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Posts Tagged ‘literatura’

“Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”

(pág. 16-17)

“Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, por que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui?”

(pág. 58)

“O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação. Quando se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. Todas as histórias antigas chamam a terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem da deusa grega da prosperidade, que tem a cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe essa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.”

(pág. 60-61)

“Não tem fim de mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um mundo do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo. Isso é um abismo, uma queda. Então a pergunta a fazer seria: “Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?”.

(pág. 62)

“(…) no ciclo das navegações, quando se deram as saídas daqui para a Ásia, a África e a América -, é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação para eliminar aqueles povos. O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era um peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI.”

(pág. 70-71)

“(…) na frase célebre de Lévi-Stauss, “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

(pág. 84)

(Ailton Krenak / Ideias para adiar o fim do mundo, 2019)

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“Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração.”

(pág. 100)          

“Nessa horas eu, que tomei raiva de homem, que nunca mais quis deitar ou casar com homem, talvez deitasse de novo só para ter filhos, para ter com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez lhes desse uma pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da chuva, ou roído de traças, para que lessem e pudessem entender do que somos feitos.”

(pág. 170-171)

“Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, dos sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, de desagradar, medo de existir. Medo que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, da sua cor.” 

(pág. 178)

(Itamar Vieira Júnior \ Torto Arado)

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“Raramente penso em ti.
Teu destino pouco me interessa.

Mas de minha alma ainda não se apagou
o brevíssimo encontro que tivemos.

Evito, de propósito, tua casinha vermelha,
tua casinha vermelha junto ao rio lamacento;
mas bem sei com que amargura
perturbo a tua ensolarada quietude.

Embora não te tenhas inclinado sobre mim
suplicando-me que te amasse,
embora não tenhas imortalizado
o meu desejo em versos dourados,
secretamente lanço encantamentos para o futuro,
sempre que as noites são de um azul profundo,
e tenho a premonição de um segundo encontro,
um inevitável segundo encontro contigo.”

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(da russa Anna Akhmátova, no poema “Raramente Penso em Ti”, de 1913, tradução de Lauro Machado Coelho)

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“Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotógrafa-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotógrafa-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos dos pais um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável.” (pg. 46)

“Com a máquina fotográfica pendurada no pescoço, afundado numa poltrona, disparava compulsivamente com o olhar no vazio. Fotografava a ausência de Bice.” (pg. 56)

“Quem entende os deuses? – disse a mulher.” (pg. 111)

“Percebo que ao correr para Y o que mais desejo não é encontrar Y ao fim da minha corrida: quero que seja Y que esteja correndo para mim, esta é a resposta que preciso, ou seja, preciso que ela saiba que estou correndo para ela, mas ao mesmo tempo, preciso saber que ela está correndo para mim.”  (pg. 126-127)

“…essa cozinha era ainda mais maltratada que o meu quarto: o encerado da mesa gasto e manchado, xícaras sujas em cima do aparador, os ladrilhos desconjuntados e enegrecidos. E eu ficava sem voz, por que entendia que a cozinha era o único lugar da casa inteira onde aquela mulher realmente vivia, e o resto, as salas enfeitadas e continuamente varridas e enceradas eram uma espécie de obra de arte na qual ela derramava todos os seus sonhos de beleza, e para cultivar a perfeição daquelas salas se condena a não viver nelas, a nunca entrar nelas como dona da casa mas só como faxineira, e a passar o resto do dia no meio da gordura e da poeira.” (pg. 180)

“Eu a amava, em suma. E era infeliz. Mas como poderia ela algum dia entender essa minha infelicidade? Há aqueles que se condenam ao cinzento da vida mais medíocre por que tiveram alguma dor, alguma desgraça; mas há também aqueles que o fazem por que tiveram mais sorte do que podiam suportar.” (pg. 190)

“Será que os santos mudariam de vida se soubessem que o paraíso não existe?” (pg. 212)

(Ítalo Calvino/ Os Amores Difíceis, 1970)

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(Ana Martins Marques / O Livro das Semelhanças)

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“Era um desses dias em que tudo corre bem.

Tinha limpado a casa e escrito 

dois ou três poemas que me agradavam.

Não pedia mais nada.

Então saí pelo corredor para retirar o lixo

e, atrás de mim, com um pé-de-vento,

a porta se fechou.

Fiquei sem chaves e às escuras

sentindo as vozes de meus vizinhos

através de suas portas.

É transitório, disse a mim mesmo;

porém assim também podia ser a morte:

um corredor escuro,

uma porta fechada com a chave para dentro.

O lixo nas mãos.”

.

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(do poeta argentino Fábián Casas / Sem chaves e às escuras)

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“Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.”

(Caio Fernando Abreu / Além do Ponto)

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“E ouviria você recitar o poema por dez ou doze vezes. acho que te pediria para recitar durante a noite inteira. a sua voz, você, o poema. já é noite. te peço: recita o poema. daqui eu te escuto. diria-te que tua voz soa como barulho de mar que acalma, mas soaria clichê. digo-te apenas que te escuto, sabes bem que te escuto. a noite até ficou mais bela. posso ver e ouvir você recitar o poema. você, a noite, a voz. te peço: recita o poema.”

(Janiele Marinho / Azul Ausente)

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“Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.

Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva.”

(Bertolt Brecht / Para Ler de Manhã e à Noite, no livro Poemas 1913 – 1956, pág. 143)

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“Liberdade também era isso, não voltar. O amor existia em todas as direções. Ela pressentia isso. Que o amor estava para lá de qualquer direção.”

(pág. 23)

“Os livros são objetos cardíacos. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. (…) Era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tanto tempo. A morte não importa muito para os livros.”

(págs. 58 e 59)

“Uma menina do colégio perguntava-me sempre se queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda noturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.”

(pág. 59)

“Puseram sobre o parapeito da janela principal uma fotografia da igreja nos tempos antigos. Quando alguém pensasse no que ia lá fora, veria a igreja na sua melhor multidão e pensaria que estava ali tudo. Tudo ali, como se, através das pessoas, todos os lugares do mundo estivessem juntos.”

(pág. 76)

“Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ver as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.”

(pág. 85)

(Valter Hugo Mãe / Contos de Cães e Maus Lobos, 2019)

  

Neste livro, houve um conto que me tocou profundamente. Vou contar de cabeça, não sei se correto. Fala de um casal de idosos que mora numa pequena aldeia e que é amigo de um outro casal de idosos há muitos anos. Os primeiros moram numa casa na fronteira da cidade, ao pé da montanha, à beira de um precipício. O segundo casal mora no alto, no centro da cidade. Um dia, os que moram embaixo propõem que a festa de fim de ano fosse feita na casa deles. O casal do alto não aceita bem a ideia e acaba havendo um desentendimento na noite de Natal. No dia seguinte, o casal de baixo sobe até a cidade para cumprimentar o casal amigo e desfazer aquela briga desimportante. Mas são ignorados pelos dois, que fingem estar ocupados. Decepcionados, os dois velhinhos descem a ladeira e voltam para casa pensativos. Sentados na varanda, ficam olhando o despenhadeiro. E, de repente, sentem o chão se mover como num terremoto. Como se a cidade aumentasse de altura atrás deles e acentuasse o declive da ladeira, inclinando a casa para o precipício. Eles se assustam. Seguram-se um no outro e abraçam o cachorro. E o conto acaba.

Achei comovente. Imagino que qualquer pessoa que, em algum momento da vida, tenha habitado a fronteira das relações, entende a delicadeza desta metáfora. Foi a coisa mais singela que eu li este ano.

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