Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘mariana miranda’

Sobre a bancada, há um vidro de perfume e um frasco de shampoo, já faz um tempo que estão ali. Deitada na cama, olho para a porta aberta do banheiro e posso ver os produtos de sempre sobre a pia e esse é o meu momento presente. Um vidro com metade do perfume e uma embalagem plástica de shampoo.

Dizem que, neste século, o tempo médio de vida de um ser humano é de 80 anos. Nesta lógica, acredito que eu estou, hoje, mais ou menos na metade do meu tempo. Talvez eu tenha oportunidade de aproveitar o meu perfume até a última gota, talvez algum imprevisto faça o vidro cair por acidente, perfumando inutilmente o chão do banheiro, o vidro é tão quebrável. Diferente da embalagem de shampoo, que é plástica. Hoje, o mundo possui mais de oito bilhões de habitantes, que terão seus filhos e netos e todos morrerão antes desta embalagem deixar de existir. O plástico, em sua banalidade barata, é quase eterno, é um semideus. Já a a minha existência é breve e encontra-se quase na sua metade, sou tão mais frágil que este frasco de shampoo.

Já são sete da manhã. Minha geração, como todas as outras, possui preocupações próprias: a minha está assombrada com a gestão do tempo. Dizem que a melancolia seria o excesso de passado e a ansiedade seria o excesso de futuro e que o nosso desafio é viver o momento presente. Deitada, me pergunto o que o instante de agora tem para me oferecer: a visão da bancada do banheiro. Respiro fundo e pisco os olhos, como só um animal vivo poderia fazer. A bancada e seus objetos seguem imóveis. Existir, mesmo que seja por mil anos, é diferente de estar vivo. Não invejo mais a perenidade da embalagem de shampoo.

Deitada, tento me conectar ao instante sem pensar em nada de antes ou de depois. É difícil. Olho para a porta do banheiro como alguém que se deslocou para o futuro e se lembra de uma época, de um quarto, de uma manhã distante em que ficou observando uma bancada de banheiro. Depois, me desloco para o passado, reprisando dias aleatórios, fixo em um, meses atrás, em que estava sozinha num consultório médico. Após exames de rotina com bons resultados, a médica encerrou a consulta e perguntou: como é a sensação de ir embora sabendo que você não está doente? Eu fiquei sem entender e ela insistiu: os pacientes diagnosticados costumam narrar os impactos da descoberta da doença, seus pensamentos e emoções. Mas não sei nada sobre os outros: como é, para um paciente, receber a notícia de que continuará vivo? E eu não soube responder.

Tento me concentrar no agora, o que o dia de hoje pode me oferecer? A água quente do banho, a água fria da pia. O café doce, o pão salgado. Cheiro, toque, som – privilégios de um animal vivo. Pisco os olhos, vejo o outro lado do quarto, a janela aberta. Numa fachada vizinha há uma estátua de pedra – simétrica, perfeita. Ela não está envelhecendo e jamais ficará doente. Mas também jamais sairá dali.

Hoje, eu gosto de ser quem eu sou, o animal que respira. Que caminha, envelhece e morre. Não almejo a perfeição da pedra, nem a imortalidade do plástico. Talvez eu deseje apenas mais tempo, tempo suficiente para, um dia, ser a pessoa do futuro que recorda uma época, lembra de um quarto, de uma manhã distante em que ficou deitada sentindo uma inexplicável satisfação em poder respirar. Sem melancolia, sem ansiedade: completamente presente. Da janela, vejo a estátua que vai durar mais do que eu, penso no planeta, que vai continuar sem mim. E mesmo a bancada do banheiro, que é de cerâmica e eu não sei quanto tempo vai durar, ela me parece perfeitamente adequada às necessidades de hoje. E isso basta.

O que o momento presente tem para oferecer me agrada. É bom ainda estar por aqui.

Read Full Post »

É uma cidade pequena, de uma ilha pequena, perdida num mar enorme.

(Ruivo, 2021, p. 62)

(Açores, maio e junho de 2025, 22 graus)

Read Full Post »

(Luca Guadagnino \ Os Rivais)

Read Full Post »

Acho que Salvador, Lisboa e Havana têm algo em comum: uma certa austeridade histórica, tipo um charme decadente. São cidades eternas. Enquanto outras metrópoles seguem tendências, disputam vitrines, agitam-se em museus de grandes novidades, estas varrem a calçada sem pressa. Estendem o varal. Não precisam inventar nada.

Elas são o antônimo da Flórida, de Florianópolis ou de Dubai, onde tudo cheira a plástico, whey e dinheiro. A maior roda gigante do mundo, o maior arranha-céu, a maior praia artificial – quem quer ir a uma praia de mentira? Parecem jovens aflitos tentando impressionar.

Nas cidades eternas tudo é meio antigo e meio gasto e tão orgulhoso de si mesmo. Estão do lado oposto da moda. O verdadeiro ponto turístico é observar como as pessoas dali vivem. É sentar na calçada e não querer mais ir embora.

Eu nasci numa cidade atemporal e acho que nunca me contentaria com menos. Há lugares que estão ansiosos por se tornarem algo. E há cidades que, há séculos, já chegaram aonde queriam estar.

E olha que são apenas 476 anos. Feliz eternidade para você, Salvador

Read Full Post »

(07 de março de 2025)

Read Full Post »

Read Full Post »

Você sonhará em comprar flores

Esse ano, num almoço, estava calor e eu sentei numa poltrona perto da janela, derretendo. Fiquei folheando uma coletânea de poemas que reunia uns 60 autores nacionais. Um poema de 1979 me chamou a atenção:


Hoje você vai me pedir em casamento
E vai me achar bonita
cabelos, olhos, sorriso.
Vai, inseguro,
como todo noivo que se preza,
pensar em como será a vida a dois.

Você hoje vai me pedir em casamento
e vai me achar ideal.
Você pensará que será responsável
pela feira, mercado, filhos, família.
E como sobreviver você se preocupará
com nós dois a sós,
somente, sozinhamente, sexualmente,
menos na fragilidade
diante do dia a dia.

(…)

Hoje você vai me pedir em casamento
e sonhar com o meu corpo provisório
sem saber disso.
Vai sonhar com o grande sentimento que nos une
sem saber que ele correrá risco a cada dia.
Você sonhará em comprar flores
sem saber que estas são uma necessidade
são prioridade para manter o sonho do casamento.
Você vai até pensar na grande família que terá
sem antes pensar na pequena família de dois.
Você sonhará com a futura realidade
sem saber que a realidade
precisa ser como um sonho.

(…)

Você vai me pedir em casamento
e pensará no quanto é amado
e ingenuamente dirá:
com isso, pelo menos, eu não preciso me preocupar!
Sem saber o quanto custa
manter um grande amor.

Você hoje vai me pedir em casamento
e ouvirá um entusiasmado “sim” – não duvido
Sem saber que para manter a resposta
é preciso manter o pedido.

.

(Antologia Alvorecer, Pétalas e Lâminas, Org. Carmem Camuso)

Os poemas eram numerados e o nome dos autores ficava num sumário. Dos 60 poemas, eu só procurei a autoria deste. A autora era minha mãe, aos 19 anos, no ano em que noivou com meu pai.

Read Full Post »

Meu único medo era parecer idiota

Tenho boa memória geográfica. Mas, outro dia, esqueci a cor do edifício onde morei, não lembrava muito bem da aparência do prédio, já morei em tantos lugares depois dele. Então comprei um caderno bonito, a ideia era fazer um diário narrando as últimas experiências – sinto que elas precisam estar catalogadas antes de evaporarem da minha cabeça – porém, a mágica não aconteceu. Acho que a intimidade com a caneta se perdeu em algum momento da adolescência. Digitar e arquivar textos no Drive também não funcionou, me sentia conversando com uma bola de vôlei. A verdade é que o pouco que sei sobre narrativa pessoal ainda é muito referenciado no mundo dos blogs – o que envolve, no mínimo, um interlocutor. Precede sentar diante deste confessionário imaginário para contar meus pecados mesmo sem adivinhar o rosto do ouvinte atrás da treliça. Quem sabe esse bondoso anônimo me absolveria recomendando três Pai Nossos, quem sabe não perdoaria nada, mas a adrenalina do convencimento pela argumentação era o encanto da coisa.

Porém, na época em que cheguei aqui (era tudo mato?), a internet era um ambiente bem menos espinhoso – nunca me ocorreu que o blog poderia me expor a algum golpe financeiro ou processo jurídico ou a ofensas violentas. Meu único medo era parecer idiota.

(Houve vezes em que fui idiota e alguém reclamou. Mas ninguém me ameaçava de morte na esquina da minha casa, por exemplo. Eu diria que a internet já me rendeu alguns estresses desnecessários, sabe).

Aí eu tive que encontrar outros caminhos e, hoje, ainda exercito essa tal “adrenalina do convencimento pela argumentação” escrevendo artigos científicos diariamente – e acredito que, se não me pagassem para fazer isso, eu provavelmente faria de graça. Como uma espécie de deformação viciosa que virou profissão, como nos filmes em que o vilão harker é capturado pela polícia e passa a colaborar voluntariamente com o FBI. Não sei fazer outra coisa. Mas o ofício não resolveu tudo – se eu incluísse a cor do prédio em que morei num artigo científico seria bem esquisito.

Eu não pensava em voltar para cá porque, infelizmente, ainda tenho medo da internet, é tipo voltar para uma casa decorada que perdeu o telhado e foi ficando irreconhecível. Mas, por outro lado, o caderno bonito que comprei segue imaculadíssimo dentro da mochila, nunca escrevi uma única página, mas sei que sou capaz de escrever dez posts de blog mesmo se estivesse pendurada de cabeça para baixo com as duas mãos amarradas nas costas, digitando com o nariz. Sinto que não vai ter outro jeito, é voltar para cá ou esquecer de vez dos lugares de onde eu vim.

Por isso, prezado leitor, te convido a fazer as pazes. Vamos conciliar nossas expectativas, ok? É fato que, às vezes, eu vou ser idiota: vou cometer erros de ortografia, defender agroecologia, falar de restaurantes e outras atrocidades. Sinta-se à vontade para discordar, dar um chilique e seguir em paz. Deselegante ficar tentando estourar meus miolos, sabe? Eu acho.

Você pode só vir aqui e recomendar três Pai Nossos, ou apenas encomendar minha alma para o inferno, tudo bem – já era um inferno ter que conversar com uma bola de vôlei. Eu só queria me sentar ali do outro lado da treliça, respirar fundo e contar uma historinha, entende? Não parece difícil. Vamos recomeçar.

Hello, stranger! Seja bem-vindo.

Hoje eu quero te contar a cor do prédio onde eu morei.

Read Full Post »

(Memórias Póstumas de Brás Cubas / Machado de Assis)

Read Full Post »

Read Full Post »

Older Posts »