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Archive for the ‘raspas e restos (crônicas)’ Category

Eu estou esperando pela minha irmã mais velha. Olho a rua pela janela e resisto ao impulso de ligar para alguém no meio da noite só por que estou sozinha em casa. Em dias assim, sou capaz de desorganizar um apartamento como se ele abrigasse mais 38 pessoas: acendo luzes, abro armários, aumento o volume, disfarço solidão com baderna. Me encontrar sozinha em casa é sempre chegar a uma grande festa um minuto depois dela acabar. Faz um tempo que estou só no apartamento – sozinha na cidade, no país, no planeta – minha irmã caçula está morando fora, o outro irmão estudando em Madrid, meu pai no Rio, minha mãe em Istambul – minha casa é um parque de diversões desativado e vazio. E eu não sei lidar com isso. Manejo sem habilidade esse deserto mobiliado.

Talvez por isso, hoje, eu decidi esperar por ela na janela. E, na verdade, eu nem tenho uma irmã mais velha. Sem nenhum motivo aparente (maluco não precisa de motivo), escrevo uma carta para ela avisando que a casa está um bagunça e que eu estou dormindo no tapete desde segunda-feira. Que ela vai se irritar com isso, mas que eu comi todos os biscoitos da dispensa. E que joguei fora papéis, extratos, tanta coisa guardada.

Escrevo, escrevo, escrevo. Carta, bilhete, diário. Tudo por que, talvez, um dia, as minhas memórias venham a simplesmente desaparecer. Aquelas miúdas, que pai e mãe desconhecem. Eu sou a filha mais velha e lembro de cada brinquedo de meus irmãos, do medo de palhaços, das coisas engraçadas que eles fizeram no recreio da escola, mas, sobre a minha primeira infância, como eles iriam saber? Eu preciso contar para que alguém saiba. Do meu amiguinho da creche, do desenho animado, da lancheira que se abriu e derramou tudo no meio da rua. Eu preciso registrar, guardar, documentar – e eu me conto, me escrevo, me narro, me repito. É isso mesmo, meus caros. Se minha irmã mais velha estivesse aqui, eu estaria ocupada em viver e não em escrever essas bobagens.

Eu queria ter alguém que contasse para mim todas as maravilhas e desgraças de ser quem eu sou desde o começo. Alguém que teve tudo o que eu tive, só que um pouco antes – seria tão mais fácil repetir do que abrir caminho. Eu tenho muitos amigos, eu tenho tios e primos, mas a primeira criança de uma casa sempre chega sozinha ao mundo. E, não adianta, eu sou ridiculamente sozinha nessa vida. Minha memória não tem backup. Eu só queria ter essa infância segura em outro coração.

Obviamente, minha irmã mais velha seria mais forte e mais esperta do que eu. Contaria mentiras mirabolantes, histórias de terror com uma lanterna na cara, faria troça dos meus medos. Talvez seja essa a dor de todo primogênito, sem ninguém que lhe proteja, sem ninguém que lhe faça justiça no recreio dos moleques, aos bofetes e pontapés. Quem vai defender o irmão mais velho? Quem vai consolar o irmão mais velho? Eu, que aprendi a brigar e arrancar com os dentes tudo o que me fosse de direito, hoje penso na irmã que não tive e me inclino indefesa como se me faltasse um braço, uma perna, um colo, um ombro. Alguém que me salvasse do mundo cão. Que me pegasse pela mão e me levasse de volta pra casa.

Se ela estivesse aqui agora, eu iria lhe contar como foi o meu dia. Ia dizer que eu ando com o coração apertado, com um pouco de medo da vida adulta, ia perguntar a ela como é a vida adulta. Talvez eu confessasse que, no fundo, meu sangue ainda ferve de amor e ódio pelos mesmos motivos, mas que eu cresci e me tornei uma mulher bacana, que já não resolve os desafetos na porrada. Que aprendi a jogar outros jogos, mas que algumas coisas nunca mudam. E que já sei administrar quase tudo – o dinheiro, a raiva, o tempo, a dúvida. Quase tudo nessa vida. Só não sei mesmo como lidar com essa casa desabitada.

Eu diria isso a ela, se ela estivesse aqui. Se eu tivesse uma irmã mais velha. Sobrou pra você, caro leitor.

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No dia em que eu decidi ir embora de Salvador, passava na tv um programa sobre as ondas de rádio. Falava que os sinais de celular, de aviões, programas de tv, tudo transita por ondas invisíveis que, muitas vezes, se perdem do curso e ficam pairando no ar. E que, no futuro, com uma antena, será possível captar dados eletrônicos do passado que ficaram perdidos no tempo e no espaço. Imaginei a arqueologia do futuro tentando colar este quebra-cabeça de átomos: palavras soltas, notícias, canções, frases ditas há anos atrás, assim, voltando no meio de expediente. Num futuro longínquo, que nem imaginamos ainda, o passado ecoando de novo e de novo e de novo.

Hoje, talvez seja exatamente essa a nossa relação, Salvador. O contato de uma antena distante, sem nenhuma sintonia. Aguda, incompreendida, replicando mensagens loucas – buzinas, britadeiras, sirenes, estampidos. Um grande desencontro. Vozes do passado, que vêm e vão, aos berros.

Oh, minha terra, céu azul da minha infância. Meu amor despedaçado, repisado e dolorido. Quantas vezes eu te odiei um pouco, Salvador. Você que me faz igual a todo mundo, por que eu também sou de algum lugar e levo esse lugar comigo. O que fazer desta linha cruzada, dessa relação mal resolvida com uma cidade como se ela fosse um mal elemento a quem já se amou muito e, um dia, se decide abandonar por que, céus, o que mais eu poderia fazer? Eu, que nunca a preferi por causa das suas belezas. Nem pela sua pele de asfalto gasto, nem pela sua tez de muro sujo, tampouco a amei turística e enquadrada por Verger, mas sim como se ama a um filho feio ou a um pai triste, alguém que é bom o suficiente só por ser o seu igual, sangue do mesmo sangue. Mas Salvador pisou demais, forçou demais, abusou. Me comprimindo até o limite, dura, difícil. Cuspindo fuligem e gás carbônico, eu arranquei Salvador de mim. Doando miçangas, perdendo o sotaque – me esvaziando, abrindo caminho, deixando a mala mais leve e a alma mais livre – tudo isso, meu Deus, pra quê? Pra quê?

Salvador sempre volta. E eu sinto um elevador de gelo subindo por todos os meus andares cada vez que eu ouço falar. E um ciúme louco de todo mundo que a transita mais do que eu. Quando há uma foto na rua, uma notícia no jornal, uma música ao longe – “Eu sou o cheiro dos livros desesperados…” – e, então, fugir e mentir e negar esse laço mal acabado sempre me parece a coisa mais covarde que eu poderia fazer.

Salvador me dói. Animal cabeceando as grades da jaula, mesmo quando a porta está aberta. Como se eu fosse um saquinho de gudes de metal que se desintegram em mil partículas pelo mundo afora, para serem surpreendidas por um ímã repentino e retornarem autônomas, teleguiadas, derrubando tudo pelo caminho e se amontoando outra vez sobre o mesmo ponto, sem conseguir se rearrumarem na posição anterior. Salvador me desorganiza. Refazenda. Reconvexo.

Mas alguma coisa se quebrou e, não, eu não moro mais lá. Mesmo estando em Salvador, eu sou alguém que está de passagem, que está voltando continuamente, sem chegar nunca. Numa esteira rolante, no fluxo contrário, andando, andando, sem avançar. Dentro do táxi, com o coração aos pulos. Na direção errada. Cada vez mais distante.

Eu espero por Salvador em quartos de hotéis de qualquer outro lugar. E Salvador me chega, às vezes, assim, pelas ondas do rádio. Em frases soltas, palavras dispersas – Meca, Zion, Itabira, Macondo. Sombra da voz da matriarca da Roma Negra. Aonde o mar arrebenta em mim. Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando. Oh, bruta flor do querer.

Eu nunca saí de lá.

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– Olá, Mariana. Infelizmente, nosso projeto terá que ser revisto. Te explico detalhes. Até lá.

Hoje, esse e-mail me fez lembrar uma história muito, muito antiga. Quando eu era criança, meu pai tinha um sítio. O lugar era a coisa que ele mais gostava nesse mundo. A área era simples: um casarão, um jardim, umas mangueiras – e, mesmo assim, entre construir uma piscina para uso próprio ou transformá-lo numa grande pousada, o fato é que todos os planos que ele tinha pra o futuro incluíam, de alguma forma, o tal sítio.

A gente gostava de lá. Mesmo assim, às vezes, ele repetia que, dentro de alguns anos, nenhum dos filhos ia querer mais ir ao casarão. Quando surgissem as primeiras birras da adolescência, quando seria um tortura se afastar das festas, dos amigos e dos primeiros namoros, ninguém ia querer saber mais da casa na árvore, nem do jardim, nem de nada – ele se ressentia por antecipação, como se o sítio fosse uma extensão de si mesmo. Mesmo assim, o lugar ia crescendo e cada metro quadrado foi sendo ocupado com um pouco mais de atenção. Tudo corria bem. Até que chegou o verão.

Então, um grupo estrangeiro propôs a ele comprar o terreno. Proposta que, é claro, foi negada de imediato e aos berros – Imagina! De jeito nenhum! Essa gente é louca??? – de forma que o grupo precisou dobrar a oferta e ficou de voltar dias depois para fechar negócio, mesmo ele insistindo em antecipar a resposta – O que essa gente queeer?? Por que essa corja não volta pra terra deles, pá???

Ele estava irredutível. Mesmo sendo a proposta financeira, digamos, irrecusável. Era uma quantia que estava totalmente fora da nossa realidade. Não que estivéssemos passando por alguma dificuldade econômica mais séria, mas era dinheiro demais. O problema é que, neste caso, cogitar a venda do sítio não era uma questão de grana, era um ofensa à dignidade do proprietário. Não havia diálogo. E não se falava mais nisso.

O assunto foi esquecido e se passaram semanas. Um dia, na volta para casa, ele observou que o motor do carro estava dando estalos. No outro, comentou que o apartamento estava ficando pequeno para acomodar todo mundo – as panelas empilhadas na cozinha, as camisas amarrotadas nas gavetas. Numa noite, enquanto esticava a rede na varanda do casarão, meu pai começou a olhar em volta com uma tristeza inconformada, falando dos coqueiros que ele mesmo havia plantado e já estavam crescidos, dos cães que já estavam adestrados. Talvez fosse um mal necessário. Se vendesse o sítio, poderia ter uma vida mais confortável. Quem sabe fosse melhor para todo mundo, concluiu.

Como qualquer decisão sempre pesa menos que a dúvida, na segunda-feira ele parecia mais apaziguado. Conversou com um corretor sobre os imóveis disponíveis no centro da cidade e com o gerente do banco sobre como fazer uma aplicação. A venda do lote seria um processo simples. Com o rendimento mensal, poderia investir em qualquer coisa – abrir um negócio, associar-se a um clube, viajar. Precisaria de roupas mais adequadas, se quisesse fazer isso. Poderia enviar os filhos para estudar fora do estado quando estivessem maiores, se eles desejassem. Depois, poderia visitá-los no Rio de Janeiro. Ou alugar um apartamento no Leblon ou perto da Urca. Talvez no Leblon mesmo, por causa da vista. Ou Copacabana. Sim, Copacabana.

Este processo de desapego durou quase um mês – e imagino que, para quem passou tantos anos projetando o futuro dentro daquele pedaço de chão encantado, a mudança até correu bem. Aos poucos, o oásis de tranquilidade foi sendo substituído por um projeto de vida mais urbano e sofisticado. E a gente sabe quando alguém está se dissociando emocionalmente de algo quando a pessoa deixa de investir energia naquilo. Mesmo indo ao sítio com a mesma frequência, ele já não encontrava tempo para comprar as pedras para a reforma do jardim e considerava o preço das sementes, repentinamente, caro demais. Mesmo problemas antigos tornaram-se mais visíveis – a tubulação desgastada do casarão causando vazamentos, a estrada de barro que danificava o amortecedor do carro, aquela nuvem de mosquitos infernais que atormentavam a noite de quem tentava descansar naquele descampado de mato e lama. Loucura mesmo seria envelhecer ali, ora.

Na data marcada, quando o grupo comprador chegou, pairou no ar um certo constrangimento, claro – já que, na última visita, eles foram escorraçados. Como explicar que, de repente, meu pai havia mudado de ideia? Antes de iniciar uma retratação desajeitada, ele foi interrompido por um dos homens: a empresa queria retirar a proposta. Devido a mudanças de mercado, iriam investir no sul do país. Agradeceram a nossa hospitalidade e foram embora.

Até hoje, eu não sei descrever o silêncio que ficou na sala. Desolador. Depois daquele dia, ninguém nunca mais tocou no assunto. Nenhuma palavra. Só uma vez, anos depois, como quem resmunga sozinho, meu pai deixou escapar – “o problema é que, depois daquele dia, eu venderia o sítio por qualquer maldito centavo”.

E o tempo passou. Anos depois, mesmo sem o dinheiro da venda do terreno, todos aqueles projetos, de alguma forma, se concretizaram – o carro foi trocado, o apartamento foi ampliado. O casarão continuou existindo e, durante a adolescência, a gente detestava perder as festas com os amigos para ir para lá – como já estava previsto. Na faculdade, fomos estudar fora da cidade em apartamentos alugados e tudo parecia seguir um fluxo tão natural que ninguém nunca se perguntou sobre o que teria acontecido se os estrangeiros tivessem comprado o lote. Teria sido melhor? Talvez aquilo não precisasse mesmo acontecer.

E eu nunca mais havia pensado neste episódio, que só me veio à mente hoje, depois de um e-mail banal. Por que eu senti o silêncio daquela sala de volta, como se ele nunca tivesse sido interrompido. Acho que toda vez em que alguém me convencer longamente a abandonar a minha rotina para embarcar num projeto-fantástico-que-vai-mudar-a-minha-vida e, depois, me disser que ele não será mais possível, eu vou me bater contra a porta fechada. Por que eu também não consigo mais voltar para o sítio. Eu não caibo mais ali dentro. Mesmo sendo tudo o que eu tenho na vida, meu Deus, eu venderia ele por qualquer maldito centavo.

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E, então, eu decidi tomar aulas particulares de inglês. Mesmo me gabando de conseguir me comunicar com todo e qualquer bípede com polegar opositor, já era hora de sair do amadorismo e levar esta vocação para a tagarelice mais a sério. Minha amiga indicou um professor:

– E ele é paciente?
– Um monge.

Não demorou mais que algumas semanas para o monge perceber que eu não sabia nada. Que só conseguia me comunicar por que falava absolutamente tudo no tempo presente, como um índio – mariana gostar de praia e andar de bicicleta – e substituía a falta de vocabulário por analogias insólitas – eu ter uma moldura redonda e outra do formato do Bob Esponja.

Juro que tentei acompanhar o áudio das lições – narradas na velocidade 5 do créu – mas Jesus não concedeu. Ficava bovinamente olhando para o papel, balançando a cabeça e ele perguntando:

– Que expressão melhor completa a frase abaixo?
– Help me, God.

E este anjo de doçura e serenidade, em posição de yoga, pedindo reforço aos céus, orando à Nossa Senhora das Portas, questionava:

– Mas, Mariana, a gente já não estudou estes verbos na lição passada?
– Defina estudar.
– Esse conteúdo foi visto na apostila oito…
– Que apostila oito?

Disfarço burrice com Alzamier.

Até que, semana passada, ele perdeu a paciência. No fundo, eu já esperava – como não acredito em aperfeiçoamento, apenas em trocas cármicas de habilidade, fico esperando a hora em que as coisas vão, simplesmente, degringolar. Corrigindo meu exercício, com uma expressão de absoluto descrédito na humanidade, ele aponta para uma das minhas respostas erradas e pergunta: por quê?? E tudo nele me lembrou um daqueles cientistas obcecados que passam anos desenvolvendo um sistema complexo e aprimorado, onde falta apenas colocar o ratinho no labirinto e bicho faz o caminho errado, sempre errado, 548 vezes errado e o cientista sai desesperado, puxando os cabelos, batendo com a testa na parede – por quêêê, meu Deus, por quêêê? – por quê eu não escolhi ser advogado, pasteleiro, adestrador de pulgas, em vez de desperdiçar a minha vida com uma merda de rato estúpido que não consegue entrar no maldito túnel certo nem quando esse é o único caminho possível, hein? Por que raios? Por quêêê?

E eu fiquei olhando para a página do exercício – “complete as lacunas com os verbos” – com aquela cara plácida de about:blank perpétuo e pensando em responder – I don’t know – ou – I’m a creep, I’m a weirdo – ou – Defina completar.

Mas nem respondo nada. E ele respira fundo. Com aquela alma dele de cientista sério, metódico, que coloca o maldito ratinho de volta na gaiola, detendo o impulso natural de esganar o bicho e arrancar a cabeça fora. E recomeça o experimento todo de novo. Assim, com uma paciência oriental. Einstein ficaria comovido. Nilton, segura a minha mão.

Eu realmente não sei por quanto tempo ele vai persistir nisso, mas, por hora, eu certamente tô valendo um Nobel. Ou um diploma de yoga. Ou um lugar no céu.

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Digamos que era uma sexta-feira à noite. Digamos que você foi a uma festa. Ou foi fazer supermercado, ou visitar um amigo, ou resolver algum assunto banal. Agora imagine que você está voltando para casa e descobre que construíram um enorme muro dividindo a cidade no meio. Bem no caminho para a sua casa. E que você ficou do lado errado.

Foi isso o que aconteceu com milhares de pessoas depois da construção do muro de Berlim, em 1961. Ele foi feito em uma noite. Todo de cimento pré-moldado, como um jogo de armar, subiu em poucas horas, ninguém viu. E dividiu a cidade por 28 anos. Famílias foram fragmentadas, casais separados, gente desaparecida. Alguns tentaram de tudo – túneis, balões, uma corda amarrada entre um edifício e outro. Muitos foram fuzilados. Se, por acaso, você estivesse do lado oposto, não havia como voltar.

Muro de Berlim, Muralha da China, Muro das Lamentações – eu nunca entendi direito a diferença entre uma coisa e outra, talvez você também não saiba. Para começar, o de Berlim não dividia a cidade por igual: ele tinha quatro lados e ilhava a Berlim Oriental no meio. Hoje, existe até um monumento para explicar melhor esta sensação de isolamento – numa praça, há quatro paredes altas formando um quadrado fechado, sem nada no centro. Vazio. Os turistas procuram uma entrada, não encontram, andam em volta, ficam olhando e não entendem nada. E a ideia é essa mesmo.

Hoje, o muro em si quase não existe mais. O povo fez questão de derrubar boa parte dos vestígios do exílio, apagar um passado relativamente recente (30 anos?) e construir uma cidade nova (o que, historicamente, é uma pena, seria como se os baianos demolissem o Pelourinho). De certa forma, conseguiram. A nova Berlim é grande, bela e refinada. O muro caiu, o tempo passou e a Alemanha se tornou o país mais rico da Europa. Mas não pôde evitar um curioso impasse de imagem pública – apesar dos modernos edifícios, parques e praças, a maioria dos pontos de interesse históricos da cidade foram erguidos pelo nazismo ou pela Guerra Fria. O desconforto é inevitável. Depois de tantos fuzilamentos, deve-se ou não convidar os visitantes a conhecer o muro? E o belo cemitério de judeus? E o monumento a Hitler? As câmeras de gás entram ou não nos guias? Um dilema que eles chamam de “constrangimento turístico”.

Bem, podemos dizer que os souvenirs alemães são inusitados – pedaços do muro, postais dos bombardeios, chapéus com máscaras de gás – e que, por enquanto, a maioria das agências de viagens preferem encaminhar a turba romântica de turistas do mundo para a Torre Eiffel, Veneza ou Disneylândia. Berlim é para poucos. Mesmo rica e linda, a capital ainda não sabe o que divulgar para o turismo de massa e vive uma autêntica crise de identidade que nem um dos maiores PIBs do mundo pôde resolver. As vítimas do muro ainda estão vivas. Tudo é recente e denso demais para chamarem de passado. Em vários pontos da cidade, seria impossível a um visitante mais sensível não perceber a cicatriz alemã desenhada no chão – a linha de cimento pré-moldado que eles não deixam apagar – e não se perguntar sobre tantos outros muros cotidianos – a morte, a perda, a separação. Sobre tudo o que é repentino e irreversível, inesperado e inevitável. Berlim é uma cidade desconcertante. Olhar para o chão riscado convida o visitante a olhar um pouco para os próprios passos – num passeio banal, na festa de sexta à noite, na ida ao supermercado – e induz esta desconfiança histórica a um dos nossos receios mais íntimos e humanos – o de, um dia, ser surpreendido do lado errado.

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Inspirado em A Cabeça de Calcário, de Fernando Monteiro.

 

Era 2009. Fim de tarde, um dia banal, quarta, quinta-feira. Já havia uma cidade definhando – uma Lisboa de casarões abandonados e estátuas cobertas de limo, num luxo saudosista onde as casas envelheciam numa decadência adiada de quem ainda preferia pisar os trapos de veludo do tapete do que experimentar a realidade de um chão completamente nú. As guerras coloniais estavam perdidas, os navios já haviam voltado com seus combatentes mutilados e alguns ainda esperavam pela volta do salazarismo. Tudo era ausência à beira do Tejo. E foi num dias desses que eu conheci um homem chamado Baltazar.

(…)

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(Tem conto novo neste post aqui).

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Não era pra ser ela. Era pra ser uma senhora grande, negra, poderosa, com uma história de vida sofrida num subúrbio do Brooklin e, pelo menos, uns 20 anos de jazz numa garagem suja antes do estrelato. Mas a dona da voz no rádio nem era americana, nem era negra, nem era nada do que a gente imaginava, do que a gente queria. Uma inadequada.

Acho que a gente só deu alguma atenção depois, por que ela chorava de amor no chão da cozinha. Por que era a garota que esperava num quarto de hotel a visita que nunca chegava, por que não aceitava ajuda dizendo que não, não, não queria se salvar. Você já conheceu alguém assim? Eu também conheço. Também tenho uma dessas morando lá em casa.

E o que era só uma personagem de tabloide estrangeiro foi ficando próxima, foi se materializando numa figura problemática, devotada e interessantíssima (redundância tripla?) que a gente tem vontade de abraçar, levar pra casa, botar colo e ninar dizendo – ah, eu sei que dói, querida, eu te entendo. Como ela mesma, levando torradas com queijo para os fotógrafos que pernoitavam na sua porta, aguardando pelo próximo escândalo. Ou, durante o concerto no Brasil, quando não conseguia acompanhar as músicas e, entre frases desconexas, repetia: oh, me desculpem por esta pequena interrupção…

Eu fico feliz em saber que, na minha geração, houve Amy Winehouse. Num mundo de Sandys, Britneys e Beyoncés meigas e bregas, mais objetos que sujeitos, mais vulgares que ousadas, houve alguém pra fazer música de qualidade e imortalizar uma das melhores frases do pop – you know, I’m no good. Por que a gente nunca foi mesmo, Amy. Mas faltava quem dissesse isso num microfone a sério, sem gritinhos histéricos nem rebolados contorcionistas. Ah, como faltava.

Acho que tudo era tão bom por que era espontâneo – e o que não é programado, às vezes, foge do controle. Já vejo a sua morte sair nos jornais, pais de família bradando “era uma drogada, onde o mundo vai parar com jovens como esses?”, todos com o controle remoto numa mão e o copo de uísque na outra. Deve ser difícil ser o purgatório de toda a loucura humana. Você não era a pessoa certa, não era a negra grande e poderosa que a gente esperava, mas vai fazer tanta falta. O que me consola é que, dessa vez, os fotógrafos vão ficar sem torradas. E você nem vai precisar pedir desculpas a tanta gente besta e sem talento por mais esta pequena interrupção.

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Eu me lembro do dia em que o Antônio Granado, que era professor de Jornalismo Digital – e nada tinha sobre Literatura em sua grade curricular – resolveu falar sobre romances literários numa das primeiras aulas do mestrado de Jornalismo. Ele disse que, infelizmente, o mundo contemporâneo estava exercendo uma seleção natural sobre a indústria das publicações: ninguém tinha tempo pra ler e, num universo incontável de títulos, as pessoas tendiam a dedicar-se a uma dúzia de livros necessários e insubstituíveis. E renunciar a todo o resto.

E acrescentou que, só depois de ler a primeira página, é que o leitor decide se vai prosseguir pelas próximas 99, 199 ou 599 folhas. Que a primeira página teria que ser, necessariamente, a mais interessante. E que os jornalistas teriam mais vantagens neste particular: estavam acostumados e fazer o lead (resumo da matéria no primeiro parágrafo) e a lidar com a falta de tempo dos leitores.

Bem, Granado, além de professor, já era um dos nomes mais atuantes da maior rede televisiva de Portugal. Um cara que dedicou a carreira a descobrir do que as pessoas gostam – oquê, como, onde, quanto e quando. E ele continuou argumentando, projetando no telão os primeiros parágrafos de vários romances famosos escritos por jornalistas, parágrafos que eram iscas irresistíveis para que, mesmo o leitor mais distraído e desinteressado, fosse seduzindo e levado por telepatia às livrarias do mundo inteiro. Como, em muitos casos, aconteceu.

Na tela, os primeiros parágrafos de Crônica de uma Casa Assassinada, Medo e Delírio em Las Vegas, Cem Anos de Solidão, dentre outros. Fiquei convencida.

Na noite do mesmo dia, eu tinha aula do mestrado de Edição de Texto – na época, eu ainda estava cursando os dois – com o professor Rui Zink, que é crítico de arte da FNAC. E ele afirmava que as pessoas não compram livros pelo enredo ou pela primeira página, mas pelo nome do autor. Assim como as pessoas não foram ao cinema assistir Volver ou Abrazos Rotos, foram assistir Almodóvar. Ou Hitchcock ou Woody Allen. Tanto faz se compram A Metamorfose ou O Processo, portanto que seja Kafka. Ou seja, o nome do escritor era uma espécie de grife literária e a editora que quisesse vender best sellers deveria gastar mais tempo criando mitos sobre o autor do que corrigindo e reelaborando seus textos. Afinal, todo mundo sabe Paulo Coelho é um bruxo, Oscar Wilde era um dândi e que Camões era caolho. Mesmo quem numa folheou um livro deles.

Depois, professor Rui acrescentou que a segunda coisa mais importante num livro era o título. E que, não por acaso, eram esses dois elementos que constavam na capa: o nome do autor e o título. Que um título instigante era um elemento tão decisivo no ato da compra que não deveria ser escolhido pelo próprio escritor, mas por um publicitário – afirmação que, é claro, escandalizou os meus coleguinhas e causou discórdia entre os alunos, redefinindo um novo conceito de fim do mundo – assim como seria responsabilidade do publicitário a diagramação da capa, a editoração do conteúdo e tudo mais.

Enfim*.

O fato é que eu voltei pra casa pensando nos dois argumentos. E, mesmo eles sendo tão diametralmente opostos, eu achei que, de alguma forma, os dois estavam corretos.

Desde então, passei a guardar o texto de primeira página dos romances que andei lendo, como quem tenta refazer o caminho do anzol até a isca – deu trabalho, sou presa fácil, leio coisas aleatórias – e continuo não fazendo ideia de que critério utilizei para decidir por cada um deles. Uma pena. Às vezes, acho que passar a vida crendo em conceitos como coincidência, sorte e destino pode ser, de alguma forma, como acreditar que os livros saíram das livrarias e foram flutuando sozinhos até a nossa estante. Um dia, a gente acorda, olha para a própria biblioteca e tenta reconhecer os títulos – e acha os autores tão distantes, os enredos tão complexos. A gente sabe que escolheu cada um deles. E não sabe dizer por quê.

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*Enfim, enfim. Acho que eu sempre utilizo a palavra “enfim” quando eu sei que poderia passar algumas horas discorrendo empolgadamente sobre determinado assunto, mas mataria as pessoas de sono. Como diria professor Granado, existem assuntos interessantíssimos que, infelizmente, só interessam a nós mesmos. Se você encontrou um “enfim” neste post, sorte sua! Você foi poupado, caro leitor.

** Sou capaz de publicar aqui estas “primeiras páginas” só para dar uma função prática a esta coleção inútil e diletante. Se alguém tiver algo semelhante, envia por e-mail, posto em anonimato. Juro.

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Remédios

Tem sempre um momento no ano em que recai sobre mim uma aura fatalista e eu me convenço de que estou perdendo a razão. Assim, ficando louca. E, antes de procurar um acompanhamento psicológico a sério, é claro que eu sempre faço o caminho mais complicado, longo e difícil, percorrendo todas as entidades filantrópicas, universidades, ongs de psicologia e alternativas para lunáticos sem renda que conversam com caixas de sapato no meio da rua – por quê nem quando fico doida eu tiro o escorpião do bolso – e, este ano, acabei conseguindo uma vaga no serviço de psicologia de um hospital público.

Visualize.

Pois bem. Era até um lugar muito tranquilo. Na sala de espera, três ou quatro pessoas também aguardavam, tocava música clássica no radinho e eu fiquei sentadinha mexendo no celular. Muito pacificada por quê, no fundo, eu já sabia o que tinha de fazer: esperar ser chamada, sentar numa cadeirinha e contar meus problemas para a psicóloga. Só isso. Até que veio uma moça lá de dentro:

– Você está esperando por remédios?

E eu, com minha cara de Monalisa, levanto as sobrancelhas e respondo que não. Acho que não, né? Suponho. Será que eu preciso de remédios? Não que esta fosse uma alternativa completamente descartada, mas é que eu nunca havia cogitado – achava que química só era usada nos casos em que o paciente era perigoso, sei lá, eu sempre fui uma insana inofensiva. E eles nem haviam me consultado ainda, por quê já estavam oferecendo medicamento?

E a moça foi embora. Do meu lado, um senhor fumava na janela, muito sério. Devia estar aguardando por remédios também. Vai ver todo mundo ali tomava algum tipo de tarja preta, né, talvez só atendessem os casos graves. Que tipo de patologia devia ter o cara? Careca, camisa de botão, cara de funcionário público, devia ser um daqueles velhinhos que surtam no escritório e esfaqueiam o colega de trabalho com a espátula de abrir envelope. Ele olhou pra mim. Desviei para o celular. Do outro lado da sala tinha uma mulher toda maquiada, de salto alto, com uma sacola de criança. Mas sem a criança. Talvez depressão pós-parto. Matou o bebê, fugiu do hospital e agora vaga desorientada carregando a tal sacola pelas maternidades afora – não dava pra saber. Ela estava falando alguma coisa para um rapaz que sentou na última cadeira, cabelo espetado, gordinho, cara de bobo. Vítima de bullying, sem dúvidas. Coitado. Acabou viciado em carboidratos. Passou um tempo desaparecido, a família fazendo buscas, os amigos nunca mais ouviram falar, foi encontrado todo esfarrapado morando na Cracolândia com um estoque Negresco debaixo do braço.

Aí, de repente, a moça voltou. Dessa vez nem me perguntou nada e foi me encaminhando para o corredor. E eu fui atrás meio cabisbaixa por que, meu Deus, qual seria o meu destino agora? Receitariam antidepressivos? Estimulantes? Hormônios? Quanto tempo iria levar até me encontrarem babando, revirando os olhos e batendo a cabeça na parede do Ana Nery? Eu só queria uma psicóloga. Uma doutora doce e paciente que me deixasse falar sobre a minha vidinha durante 50 minutos de consulta, anotasse umas coisinhas num bloquinho e me dispensasse dizendo: muito bem, Mariana, você está progredindo. Mesmo que fosse mentira. A verdade é que, até hoje, ninguém nunca tinha sido sincero o bastante pra dizer que eu precisava me dopar. Gente, eu só queria um ombro amigo! Adiantava explicar isso para os médicos? Adiantaria alguma coisa? Quem iria escutar uma louca?

No fim do corredor, o consultório. A moça foi abrindo a porta pra mim, muito educada. E havia uma placa de acrílico no alto na porta onde estava escrito:

“Médica plantonista: Dra. Ana Paula Remédios.”

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Atualmente, devido a deveres profissionais, sou obrigada a ler superficialmente uns dez jornais toda manhã. O que não é grande coisa, se a gente levar em conta que vários publicam mais ou menos os mesmos assuntos e que, depois de algum tempo, é possível identificar certa repetição diária de fatos – acidentes, inaugurações, crimes, descobertas científicas – que me fazem pensar sobre a irrelevância da existência humana sobre a terra. Enfim. É o mundo se repetindo, assim como a minha vida pessoal se repete: saio para o horário de almoço, sendo na poltrona do café Grão de Ouro, abro o jornal e fico rabiscando notícias aleatórias todo santo dia. Às vezes, com alguma empolgação. Quase sempre, sofrendo de um misto de tédio e solidão devastadores.

Nesta quinta chovia canivetes em Salvador, eu afundava numa das poltronas do café, girava a colherinha dentro da xícara e aguardava. Nada, nada. O peito apertado, apertado, doía tão fundo. Ainda que, objetivamente, não houvesse motivo para isso, visto que a minha vida, nos aspectos mais diversos, caminhe lentamente numa direção aceitável, numa marcha branda de êxitos pequenos de quem só pode viver um dia de cada vez. Tudo ia bem, nada de novo sob o sol. E aquilo ainda ardendo, ardendo louco dentro do peito.

Foi então que eu arrastei os olhos desinteressados sobre a página do Estadão e um título falava de Atlântida, o continente perdido. A notícia contava que, depois do terremoto no Japão e das mudanças geológicas que ele causou, está emergindo do fundo do mar o território de Atlântida. Reza a lenda, confirmada por Platão, de que este foi um lugar paradísíaco aonde uma civilização muitíssimo avançada viveu até o século 9000 a.C., quando a ilha foi engolida por um maremoto. Assim, como se, por exemplo, esse último abalo tivesse liquidado todo o Japão. Ninguém sobreviveu. Desde então, no mundo inteiro, viajantes descendentes enlutaram pela pátria perdida, obras de arte homenagearam a sua prosperidade, foram construídos mapas para reencontrar os tesouros perdidos no mar e, vários séculos depois, ninguém sabia mais a localização exata do continente. Pior: já não se sabia se o continente realmente existiu ou se era fruto da imaginação dos antepassados, tão dados a mitologias.

E Atlântida foi virando ficção. Virou nome de filme em Hollywood, de boite em Milão, de parque aquático em Fortaleza. Virou tema de festa à fantasia. Virou piada.

Até esta quinta-feira. E eu me emocionei lendo sobre o continente redescoberto, depois de quase três mil anos de descrédito. Estava ali, há alguns quilômetros do sul da Espanha, sempre esteve ali. Nas fotos no jornal – escadarias debaixo d’água, pontes submersas – estava a ilha de prosperidade, o paraíso perdido, a pátria que deixou órfãos no mundo inteiro, em embarcações sem ter para onde voltar. E me comoveu a alegria dos geógrafos e dos cientistas dizendo – I’ve always believed, always believed!

Foi, então, que eu recostei enrolada no moleton, respirando fundo depois da chuva. E fechei o jornal. E, fosse o que fosse aquele nó no peito, – aperto, dor, sede – ele ia se desfazendo como um laço frouxo, pronto para desatar. Por um momento, sabe-se lá por quê – já que tudo que vem sem motivo, também vai sem razão – eu fiquei bem. Repetindo a frase dos cientistas, pensando no povo de Atlântida, nos viajantes regressos, em tanta gente que já tentou voltar para um lugar que não existia mais. Naquela gente que navegou, navegou à deriva, buscando na memória o caminho de casa, mas não havia nada lá. E ficou esfregando os olhos, duvidando da própria sanidade. Por que, às vezes, a resposta certa é a mais absurda – meu Deus, as escadarias debaixo d’água! – eles estavam no lugar exato, mas bússula nenhuma poderia mostrar.

E aquela notícia me acalmou o peito. Pelas tantas vezes em que olhei em volta e não havia nada, nada, nada. Por que era preciso mergulhar mais fundo. A resposta existia. Ela sempre esteve lá.

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