Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘brasil’

brasilia-em-sobrevoo-por-carlos-mendes-de-sousa

“Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas te digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, a criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. (…) Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. (…) Se tirassem meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para pessoas. (…) Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá.(…) Esta cidade foi conseguida pela prece. Dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento – Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. – Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a idéia que faço da eternidade. Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna.”

(Clarice Lispector / A Legião Estrangeira, 1964, p. 162-167)

Read Full Post »

Read Full Post »

Ironicamente, tudo o que eu sei hoje sobre política começou na escola, numa aula sobre as crueldades da ditadura militar. Eu fiquei impressionada. Meu avô foi me buscar no colégio e eu fui logo perguntando sobre onde ele esteve em 64: como eram as passeatas, se ele também correu da polícia, se algum amigo dele tinha desaparecido. Mas meu avô sorriu e explicou que tinha sido um simpatizante dos militares: naquela época, a economia prosperava. O Brasil era o país do futuro. Que tinha sido um tempo bom.

Eu fiquei perplexa como só uma criança poderia ficar.

Meu avô era uma boa pessoa. Ele pensava como a maioria das pessoas da geração dele. Ele não percebeu que a geração dele estava errada.

A gente precisa desconfiar o tempo inteiro de tudo o que é considerado normal pela nossa geração.

Hoje, acho que eu faço política só por quê, daqui a 50 anos, as crianças podem me perguntar se eu participei de algum movimento de vanguarda. Se eu lutei por algo, se perdi amigos. Se eu corri da polícia em alguma passeata. Talvez elas perguntem se eu fiz campanha pela igualdade racial ou aonde eu estava no dia do Orgulho Gay. Podem perguntar se eu também fui chamada de feminazi na internet, se também me mandaram pilotar fogão, se eu conheci o spray pimenta ou se só assisti pela televisão. Vão querer saber se eu fazia coleta seletiva, se andava de bicicleta, se apoiei o movimento antimanicomial, se tive amigos travestis. Talvez questionem se fui contra a criminalização do aborto, se fui doadora de sangue, se apoiei o estado laico, se namorei algum cadeirante. Vão perguntar se eu sabia da escravidão na China, no Estado Islâmico, aonde eu estava nos dias de guerra. Se alguém se tornou meu inimigo por causa disso. Em quem eu votei em 2018.

As crianças vão perguntar por conquistas que parecerão óbvias para a geração delas, mas que não parecem óbvias agora.

É bom estar preparada. Não basta ser uma boa pessoa.

tumblr_nkp63c40PR1rte5gyo1_1280-1074x909-575x322

Read Full Post »