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Tereza (Juliette Binoche) e Tomas (Daniel Day Lewis) em A Insustentável Leveza do Ser, 1988.

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.

Tereza acompanha seu rebanho de novilhas, toca-as para a frente, mas há sempre uma a ser repreendida, pois as vacas jovens têm bom humor e se afastam do caminho para passear no campo. Karenin está com ela. Já faz dois anos que a acompanha no pasto. Em geral, se diverte muito sendo severa com as novilhas, latindo e ralhando com elas (seu Deus encarregou-a de reinar sobre as vacas e disso ela se orgulha). Mas hoje está andando com muita dificuldade, saltando sobre três patas; na quarta tem uma ferida que sangra. A cada dois minutos Tereza se curva e lhe acaricia o pêlo. Quinze dias depois da operação torna-se evidente que o câncer não foi debelado e que Karenin irá de mal a pior.

No caminho encontram uma vizinha que está indo para o estábulo, calçada com botas de borracha. A vizinha pára: – O que aconteceu com o seu cachorro? Parece que ele está mancando! Tereza responde: – Está com câncer. Está condenado – e sente a garganta apertar, quase não pode falar. A vizinha percebe as lágrimas de Tereza e fica indignada: – Pelo amor de Deus, não vai chorar por causa de um cachorro! – Não disse isso por maldade, é uma boa mulher, foi mais para consolar Tereza. Tereza sabe disso, mora no lugar há tempo suficiente para compreender que se os camponeses gostassem de seus coelhos como ela gosta de Karenin não poderiam matá-los e acabariam morrendo de fome no meio dos bichos. No entanto a observação da vizinha lhe parece hostil. – Sei – responde sem protestar, mas se apressa em dar-lhe as costas e continuar seu caminho. Sente-se sozinha em seu amor pelo cão. Pensa com um sorriso triste que deve escondê-lo mais secretamente do que escondesse uma infidelidade. O amor que se tem por um cachorro escandaliza.

Segue seu caminho com as novilhas que se esfregam umas nas outras, dizendo a si mesma que são bichos muito simpáticos. Pacíficos, sem malícia, às vezes de uma alegria pueril: parecem mulheres gordas, cinqüentonas, que fingissem ter catorze anos. Não existe nada mais comovente do que vacas brincando. Tereza as olha com ternura, e diz para si mesma (é uma idéia que lhe ocorre sem cessar há dois anos) que a humanidade é parasita da vaca, assim como a tênia é parasita do homem: agarrou-se à sua teta como uma sanguessuga. O homem é o parasita da vaca, essa é, sem dúvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem em sua zoologia.

Pode-se tomar essa definição como um simples gracejo e sorrir com indulgência. Tereza porém a leva a sério, e fica numa posição arriscada: essas idéias são perigosas e a distanciam da humanidade. Já no Gênese, Deus encarregou o homem de reinar sobre os animais, mas podemos explicar isso dizendo que ele apenas emprestou ao homem esse poder. O homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem “maître et propriétarie de la nature”. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.

As novilhas pastam no prado, Tereza está sentada sobre um tronco de árvore e Karenin estendida a seus pés, a cabeça recostada em seus joelhos. Tereza lembra-se de uma notícia de duas linhas que lera no jornal há uns dez anos: dizia que numa cidade da Rússia todos os cachorros haviam sido mortos. Essa notícia discreta e aparentemente sem importância tinha-lhe feito sentir pela primeira vez o horror que emanava desse imenso vizinho.

Era uma antecipação de tudo que viria depois: nos dois primeiros anos que se seguiram à invasão russa, não se podia ainda falar em terror. Já que toda nação desaprovava o regime de ocupação, era preciso que os russos encontrassem entre os tchecos homens novos e os levassem ao poder. Mas onde encontrá-los, uma vez que a fé no comunismo e o amor pela Rússia eram coisa morta? Foram procurar entre aqueles que alimentavam intimamente o desejo de se vingar da vida. Era preciso soldar, alimentar, manter alerta a agressividade deles. Era preciso primeiro treiná-los contra um alvo provisório. Esse alvo foram os animais.

Os jornais começaram então a publicar uma série de artigos e a organizar campanhas sob a forma de cartas de leitores. Exigia-se, por exemplo, o extermínio dos pombos numa cidade. Os pombos foram exterminados. Mas a campanha visava sobretudo aos cachorros. As pessoas estavam ainda traumatizadas com a catástrofe da ocupação, mas os jornais, o rádio, a televisão, só falavam nos cachorros que sujavam as calçadas e os jardins públicos, ameaçando a saúde das crianças, cachorros que não serviam para nada e ainda tinham que ser alimentados. Fabricou-se uma verdadeira psicose, e Tereza teve medo de que a população excitada se voltasse contra Karenin. Um ano mais tarde, o ódio acumulado (ensaiado primeiro sobre os animais), foi apontado para o seu verdadeiro alvo: o homem. As demissões, as prisões, os processos, começaram. Os animais puderam enfim respirar.

Tereza acaricia a cabeça de Karenin que descansa tranqüilamente em seus joelhos. Faz mais ou menos esse raciocínio: não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros moradores da aldeia, ou não poderia viver ali; e, mesmo com Tomas, é obrigada a se portar como mulher amorosa, pois precisa dele. Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos.

A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.

Uma novilha se aproxima de Tereza, pára, e olha para ela longamente com grandes olhos castanhos. Tereza a conhece. Chama-se Marketa. Gostaria de ter dado um nome a cada uma das novilhas mas não pode, são muitas. Há uns trinta anos certamente teria sido assim, todas as vacas do lugar teriam um nome (se o nome é o sinal da alma, posso dizer que elas tinham uma, apesar de desagradar a Descartes). Mas a aldeia tornou-se uma grande usina cooperativa e as vacas passam a vida em dois metros quadrados de estábulo.

Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça de Karenin, e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços.

Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo.

É este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastam do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da natureza”, prossegue sua marcha para a frente.”

 

(Milan Kundera / A Insustentável Leveza do Ser, 1982)

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Estou do lado de fora da sala de aula. O professor já entrou. Eu perdi na avaliação desta disciplina por que enviei um documento errado. Não bastava estar apanhando miseravelmente da bibliografia em francês, eu mandei o documento errado. Fui reprovada. Todo mundo soube. Eu não quero entrar.

Sei que constrangimento é uma forma de vaidade e fico aqui pensando em um episódio de Machado de Assis, que li há muitos anos. É quando o pai de Capitu, o Sr. Pádua, empregado numa repartição, assume temporariamente o cargo do seu superior. O chefe precisava ir para a Europa e, naquela época, esta era uma odisseia que durava meses. Enquanto administrador interino, ele passou a ganhar o salário do diretor. Comprou carro, roupas, joias, incorporou um novo estilo de vida para a família, passou a ser reconhecido nos lugares. Vinte e dois meses depois, com o retorno no chefe, o Sr. Pádua entra em desespero:

– Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?

– Que público, Sr. Pádua?

Na época, este diálogo, tão periférico na trama, me fez rir muito. Acho que foi de nervoso.

Houve um dia, ano passado, em que eu acordei num lugar desconhecido. Não conseguia levantar. Apalpando as coisas no escuro, entendi que estava numa maca e que talvez aquilo fosse um ambulatório. Ao invés de chamar alguém e fazer perguntas, eu simplesmente me deixei ficar ali. Era a primeira vez em meses em que eu estava completamente sozinha. Achei inacreditável aquele silêncio.

(Eu tive um problema no cérebro causado por exaustão).

Mais do que nunca, imagino que mudanças importantes desenrolam-se em hiatos. Casulos, cascas de ovo, ritos de passagem que transcorrem nos bastidores. Veja só, pela tradição, o que é um casamento? Os noivos fazem uma celebração, viajam em lua de mel e retornam à sociedade como pessoas casadas. Se alguém que perde o cônjuge, fecha-se em luto e retorna como viúvo. Um casal engravida, tira uma licença e retorna como família. Se até o Divino precisou de 40 dias no deserto para se preparar para uma vida nova, quem sou eu para desmerecer uma fuga? Apenas reservem. Meu lugar. Nesse foguete.

Estou na porta da sala. Cansada e constrangida. Estou lembrando de um filme de James Bond, quando o informam que a cabeça dele estava valendo uma recompensa de um milhão de dólares. Antes de fugir, ele duvida da informação: um milhão? Ninguém vale tudo isso.

Constrangimento é vaidade. Que público, Sr. Pádua? Ninguém vale tudo isso.

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“E então tudo – livros, velhas cartas, bustos de barro, quadros usuais do canto mais seguro – te parece à beira do mesmo abismo estéril. E a indiferença envenena o tempo e mente ao presente com esse falso futuro que já vem e nunca chega.
E nada voltou a ser o que fora.”

(José Mateos)

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“Todo o meu nascer

foi prematuro.

 

Agora,

em meus filhos

me vou dando às luzes.

 

Descendo, sim,

dos que hão de vir.”

 

(Mia Couto / Biografia)

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“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir, com quase quarenta anos de atraso, os privilégios da simplicidade.”

(Gabriel García Márquez / Cem Anos de Solidão, primeiro parágrafo)

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“Da ilha mesmo, o que ficou foram os desenhos variados de pedras portuguesas nas calçadas, o mar distante batendo nas rochas vulcânicas, os amigos poetas, os turistas alemães e ingleses vestidos de safari procurando alguma coisa que nunca vão encontrar, o teleférico que passa sobre a cidade e sobe até lá no alto das montanhas, tão altas que até neve têm. O que veio da ilha, além de algumas frutas exóticas, de umas garrafas de vinho e de um bom livro de Valério Romão, foi a certeza de que o primeiro encontro com nossos filhos não acontece neste mundo, no dia em que eles nascem, mas milhões de anos atrás, além de todas as estrelas, em algum lugar do infinito.”

(Edgar Duvivier / Carnet de Voyage)

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“- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?

– Depende – responde o português.

– O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?

– Sim.

– Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.

O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda dos sentidos.

– Me receite um remédio para eu desmaiar.

O português rir-se. Também a ele apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.

– Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.

Riem-se. Rir juntos é melhor do que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.”

(Mia Couto / Venenos de Deus, Remédios do Diabo)

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“Não te rendas, por favor, não cedas:
mesmo que o frio queime,
mesmo que o medo morda,
mesmo que o sol se ponha e se cale o vento, ainda há fogo na tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, por que eu te amo.”

(Trecho do poema Não Te Rendas, do uruguaio Mário Benedetti)

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