“Talvez pela primeira vez em minha curta vida, senti, quase até o limiar da minha compreensão e da consciência, como tão indizivelmente duas criaturas humanas bem intencionadas uma com a outra podem desentender-se, atormentar-se e torturar-se reciprocamente.” (pág. 37)
“Goethe disse em Egmont: o homem pensa que dirige a sua vida, que se conduz. Mas o seu íntimo é arrastado irreversivelmente na direção do seu destino.” (pág. 64)
“Ela não resistiu ao convite, nem ao sorriso jovem que brilhou por um momento no rosto triste do homem, conferindo-lhe uma estranha beleza, como um papel de parede vistoso que alegra a última parede de uma casa incendiada e em ruínas.” (pág. 94)
“Nunca se era mais completamente abandonado por uma pessoa íntima do que quando essa pessoa dormia. E, como tantas vezes antes, veio a ideia da imagem de Jesus a sofrer no Jardim das Oliveiras sufocado pela angústia da morte, enquanto os discípulos dormiam e mais dormiam.” (pág. 104)
“Se olhares muito tempo para o espelho, acabas por ver um macaco.” (pág. 25)
“Atravessei os mares, deixei cidades ficar para trás e subi os rios ou penetrei pelas florestas e buscava sempre outras cidades. Possuí mulheres e joguei à pancada com os homens. E nunca podia volta atrás, como um disco não pode girar ao contrário. E tudo isso me leva aonde? A este minuto, a este acento, a esta bolha de claridade sussurrante de música: and when you leave me.” (pág. 32)
“Deve ser uma transformação tão grande. Se, um dia, eu fosse fazer uma viagem, acho que tentaria, antes de partir, notar por escrito os menores traços do meu caráter… e, à volta, compararia o que era antes com o que fosse depois. Li que há viajantes que mudam tanto que, ao regressarem, os seus parentes mais próximos não os reconhecem.” (pág. 43)
“Quando se vive, não sucede nada. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem. Nunca há princípios. Os dias sucedem aos dias, sem tom nem som, é um alinhamento interminável e monótono. De vez em quando tira-se uma nota parcial, diz-se: há três anos que ando a viajar, há três anos que estou em Bouville. E fins também não há: nunca se deixa uma mulher de uma só vez, nem um amigo, nem uma cidade. E, depois, tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de quinze dias, é tudo o mesmo. Em certos momentos – raras vezes – deitam-se contas à vida, percebe-se que estamos ligados a uma mulher, que nos metemos uma boa confusão. Como um clarão, o momento passa. Então o desfile recomeça, voltamos a alinhar as horas e os dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926. Viver é isto.” (pág. 49)
“Dentro de quatro dias voltarei a ver Anny: esta é, por agora, a minha única razão para viver. E depois? Quando Anny me tiver deixado? Vejo bem que, pela calada, vou esperando: vou esperando que ela nunca mais me deixe. Devia saber muito bem, entretanto, que Anny nunca se sujeitará a envelhecer diante de mim. Sou fraco, tenho precisão dela. Gostaria de estar em forma quando a vir: Anny não tem piedade dos destroços.” (pág. 118)
“Tudo o que existe nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto.” (pág. 151)
“Tu és um marco – diz ela – um marco à beira duma estrada. Explicas impertubavelmente e explicarás toda a vida que Melun fica a vinte e sete quilômetros e, Montargis, a quarenta e dois. É por isso que preciso de ti. (…) Preciso que existas e que não mudes.” (pág. 155)
“Impossível ordenar o mundo dos valores. Ninguém coloca ordem na casa do capeta.” (Pág. 55)
“O povo é só e será sempre, a massa dos governados; diz inclusive tolices, que você enaltece, sem se dar conta de que o povo fala e pensa, em geral, segundo a anuência de quem o domina.” (Pág. 60)
“Te digo somente que ninguém dirige aquele que Deus extravia!” (Pág. 61)
“A desordem também privilegia, a começar pela força bruta.” (Pág. 62)
“Se não posso ser amado, me contento fartamente em ser odiado.” (Pág. 63)
“Fácil concluir que dois e dois são quatro à sombra de uma figueira, queria ver alguém puxar linhas e outros segmentos, fechar rigorosamente um círculo, demonstrar enfim um teorema em plena fogueira do inferno.” (Pág. 68)
“Eu fiz de conta que esqueci de tudo e que o mundo agora só tinha aquele apertado metro de diâmetro.” (Pág. 71)
“A culpa melhora o homem. A culpa é um dos motores do mundo!” (Pág. 80)
“As palavras – impregnadas de valores – cada uma trazia, sim, no seu bojo, um pecado original, assim como atrás de cada gesto sempre se escondia uma paixão, me ocorrendo que nem a banheira do Pacífico teria água bastante para lavar e serenar o vocabulário.” (Pág. 80)
Ex-freira inglesa, uma das maiores historiadoras do nosso tempo, estuda a raiz dos conflitos religiosos entre os povos do mundo inteiro. Minha aposta para o Nobel da Paz de 2016.
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“Deus, Brahma, Nirvana. Não importa quais sejam as nossas opiniões teológicas, todos experimentamos algo semelhante quando ouvimos uma grande peça musical ou lemos um belo poema, e nos sentimos tocados por dentro, guindados para cima de nós mesmos. Tendemos a procurar esta experiência e, se não a encontramos em um local – numa igreja, por exemplo, ou numa sinagoga – buscamos em outro.” Pág. 14
“Isso se deve, em parte, a nossa visão do mundo como um vale de lágrimas. Somos vítimas de desastres naturais, mortalidade, extinção, injustiça, crueldade. A busca religiosa geralmente começa com a constatação de que, como disse Buda, ‘a existência é errônea’. (…) Esta sensação de perda já foi expressa de muitas maneiras, evidencia-se na imagem platônica da alma gêmea da qual fomos separados ao nascer e no mito universal do paraíso perdido.” Pág. 15
“Essa busca pelo sagrado e o culto a um local santo se relacionava com a nostalgia do paraíso. Quase todas as culturas possuem o mito da Idade de Ouro no começo dos tempos, quando a comunicação com os deuses era fácil e íntima.” Pág. 32
“A história das religiões mostra que, em épocas de crise ou se convulsão social, as pessoas se voltam mais prontamente para o mito do que para as formas mais racionais de fé. Como uma espécie de psicologia, o mito consegue penetrar mais fundo que o discurso cerebral e tocar a causa obscura do sofrimento nas esferas íntimas do nosso ser. Mesmo hoje, vemos que o exílio vai além da simples mudança de endereço. É também um deslocamento espiritual. Tendo perdido seu lugar no mundo, os exilados podem sentir-se à deriva num mundo que, de repente, se tornou estranho. Sem o ponto fixo da ‘pátria’, uma desorientação fundamental faz tudo parecer relativo e sem sentido.” Pág. 114
“Quando vemos um lugar onde ocorreu alguma coisa importante para nós, desaparece a lacuna entre o passado e o presente, que as simples informações verbais não conseguem eliminar.” Pág. 232
“O processo de cavar o solo e chegar a uma santidade enterrada, então inacessível, constituía em si mesmo um importante símbolo de busca de cura psíquica. (…) Freud logo percebeu a relação entre a Arqueologia e a Psicanálise.” Pág. 490
“Todavia, como demonstra a longa e trágica história de Jerusalém, nada é permanente ou garantido. As sociedades que sobreviveram por mais tempo foram as que se dispuseram a algum tipo de tolerância.” Pág. 514
Na introdução de O Jogo da Amarelinha, Cortázar oferece um roteiro de leitura informando os capítulos que devem ser saltados para, depois, serem lidos em retrospectiva. Uma dinâmica de digressões que lembra mesmo um jogo de amarelinha. Aqui, alguns trechos do livro:
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“E repare que acabávamos de travar conhecimento e a vida já tramava o necessário para que nos desencontrássemos minuciosamente.” Pág. 14
“Assim, tinham começado a andar por uma Paris fabulosa, deixando-se levar pelos signos da noite, adotando itinerários sugeridos por uma frase de chockard, por uma água furtada iluminada numa rua escura, detendo-se nas pracinhas muito íntimas para beijarem-se nos bancos, ou para olharem o jogo da amarelinha, os rituais infantis da pedrinha e o salto sobre um pé para entrar no céu.” Pág. 33
“Em Milão, em Buenos Aires, em Genebra, no mundo inteiro, é inevitável, é a chuva e o pão e o sal, algo absolutamente indiferente aos ritos nacionais, às tradições invioláveis, ao idioma e ao folclore: uma nuvem sem fronteiras, um espião do ar e da água, uma forma arquetípica, algo de antigamente, de baixo, que reconcilia mexicanos e noruegueses e russos e espanhóis, que nos reincorpora ao obscuro fogo central já esquecido, que os devolve mal e precariamente a uma origem atraiçoada, indicando-lhe que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheram não era o único.” Pág. 87
“Depois dos quarenta anos nós temos o verdadeiro rosto na nunca, olhando desesperadamente para trás.” Pág. 112
“Eram contatos de galhos e folhas que se cruzam e acariciam de árvore para árvore, enquanto os troncos erguem desdenhosos as suas paralelas inconciliáveis.” Pág. 121
“Em Paris, qualquer menção a alguma coisa que esteja além de Viena soa a literatura.” Pág. 176
“Eu não me dei conta, fiquei para trás como os velhos que ouvem falar de cibernética e sacodem devagarzinho a cabeça, pensando que já está na hora da sopa de massinha.” Pág. 324
“Tudo o que se escreve atualmente, e que vale a pena ler, está voltado para a nostalgia. Complexo de Arcádia, regresso ao grande útero, volta a Adão, o bom selvagem.” Pág. 429
“Sinto, no máximo, a melancolia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas. A falta de experiência é inevitável, quando estou lendo Joyce, estou sacrificando automaticamente outro livro e vice-versa.” Pág. 459
“Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Como se pudesse escolher no amor, como se o amor não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio.” Pág. 483
“Quando nos despedimos, éramos como duas crianças que tinham se tornado estrepitosamente amigas numa festa de aniversário e que continuavam olhando uma para a outra enquanto os pais as puxavam pela mão, arrastando-as para a rua.” Pág. 485
(Julio Cortázar / O Jogo da Amarelinha)
Por fim, uma canção da banda Gotan Project lançada em homenagem ao romance. Letra da música feita com trechos do livro + tango eletrônico com coral de crianças = o melhor dos dois mundos.
“Quando você chegar em um lugar apertado e tudo for contra você, mesmo quando parecer que não pode aguentar nem mais um minuto, não desista. Então, essa será a hora e o lugar em que a maré vai virar.”
. (Harriet Beecher Stowe, abolicionista americana no livro Life Hack, 1851)
“Já viu alguma vez essas viúvas nesses bancos solitários, essas viúvas pobres? De luto ou não, é fácil reconhecê-las. Aliás, há sempre no luto do pobre algo que falta, uma ausência de harmonia que o torna mais pungente. É obrigado a economizar na dor. O rico ostenta a sua em grande estilo.” (pág. 44)
“Diga-me, minha alma, pobre alma arrefecida, que acharia de morar em Lisboa?” (pág. 48)
“Aquele que olha de fora através de uma janela aberta não vê nunca tantas coisas quanto aquele que olha uma janela fechada. Não há objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais radiante do que uma janela iluminada por uma vela. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos interessante do que o que se passa por detrás de uma vidraça. Neste buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.” (pág. 115)
Eles são jovens, belos e mimados, estão vivendo o auge da popularidade e, em algum momento entre os 20 e os 30 anos, vão tomar alguma decisão por capricho que arruinará suas vidas. Algum contemporâneo não se reconhece nesta descrição? Alguém aqui nunca teve a sensação inevitável de, nos últimos anos, ter morrido na praia? É difícil acreditar que não estamos falando de nós mesmos, hoje, agora: impulsivos, perdidos numa virada de século mal explicada, adiando uma vida adulta que já passou da hora, levando até o fim as obsessões mais desbaratadas.
Pretensiosos. Todos os protagonistas de F. Scott Fitzgerald são assim. O autor descreve os jovens americanos dos anos 20 de uma forma tão mordaz que faz essas teorias recentes sobre a geração Y parecerem um museu de grandes novidades. Toda juventude é antiga: a adolescência tardia, as farras mais ousadas, a euforia por um futuro brilhante que, no final das contas, nunca chega, “Destinados a um daqueles momentos imortais que acontecem de forma tão radiante que sua luz é suficiente para iluminar anos” (1922, p. 125). As ruas ainda estão cheias de Anthonys, Glorias e Amorys irresponsáveis, vivendo de festas, jazz, vazio e amores obcecados. Metade do mundo desaprova. A outra metade morre de inveja.
Os romances de F. Scott Fitzgerald sempre surpreendem, mesmo que, no fundo, todos os protagonistas sejam ele e que todas as protagonistas sejam Zelda, em todos os livros. Mesmo depois da briga e da separação, dela adoecer sozinha na Europa: toda a bibliografia dele reescreve mil vezes a mesma história atormentada, interrompida, “uma presteza romântica como jamais encontrei em qualquer outra pessoa e que, provavelmente, jamais tornarei a encontrar” (1925, p.05). Lamentei quando, no ano passado, divulgaram que a canção do filme O Grande Gatsby foi desclassificada às vésperas do Oscar – ironicamente, morreu na praia. A letra era triste, desesperançada, repetia e repetia:
Você ainda vai me amar
Quando eu não for mais jovem e belo?
Você ainda vai me amar
Quando eu só tiver a minha alma amargurada para ofertar?
Em algum momento, todos aqueles personagens se perguntam isso. Quando a festa termina, quando o dinheiro acaba, quando os anos varrem quase tudo e a decadência se aproxima como se duas pessoas estivessem conversando e, no chão, suas sombras se alongassem uma sobre a outra. O que vai acontecer quando não formos mais jovens e belos? O que acontece depois dos bailes, dos diplomas, das conquistas, das vaidades? Essa pergunta já faz quase cem anos, há cem anos ela espera encadernada sobre a prateleira. Outros jovens vão deixando de ser jovens. E, até hoje, ninguém sabe a resposta exata.
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Artigo publicado no jornal Público, de Portugal. Confira aqui.