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Posts Tagged ‘mariana miranda’

Para mim, este tem sido um ano de tragédias pessoais devastadoras. Tenho recebido o apoio de parentes e amigos. E, estranhamente, em meio ao luto, esse também tem sido um ano de ânimo produtivo. Estou cheia de coragem. Uma situação contraditória que eu não sei bem como explicar.

Aqui, pensando nisso enquanto arrumo gavetas, encontrei as fotos de uma cidade que conheci superficialmente há uns anos atrás, da janela do trem, e que me pareceu bem diferente das imagens que eu tinha visto nos livros de história. O nome da cidade é Manchester, ela fica no interior da Inglaterra.

Uma cidade que viveu dois períodos distintos. Um de prosperidade, quando tornou-se um pólo têxtil e exportava para o mundo todo, na década de 70. Era comum, na maioria das famílias, que todos os adultos trabalhassem nas fábricas de tecidos, que todos os barcos estivessem carregados de tecidos, que a educação fosse voltada para a compreensão das técnicas têxteis. Mas, de repente, a Índia e a China passaram a também produzir tecidos e era impossível competir com elas. 

E ninguém dominava outro ofício. Legiões de desempregados ficaram vagando pelas ruas, os prédios foram ficando sujos e tudo culminou em drogas e criminalidade. A cidade entrou em lenta decadência por duas décadas e, nos livros de história, as imagens eram de abandono.

Mas, acreditem, não há nada tão ruim que não possa piorar. 

Em 1997, houve um ataque terrorista que destruiu um quarteirão inteiro. O mundo ficou estarrecido. E confuso, já que a escolha do alvo não fazia sentido, Manchester não era mais uma cidade relevante para o Reino Unido. Ela estava novamente na capa dos jornais – pelo pior dos motivos – e a repentina solidariedade do mundo motivou os moradores a reconstruirem aquele quarteirão fumegante e destroçado. 

E eles reconstruíram três quarteirões. Depois o bairro. Depois a cidade inteira.

A Manchester que eu vi da janela do trem era de um oásis colorido – escolas, parques, ruas cheias de turistas. Avenidas que jamais lembrariam a indústria abandonada de 20 anos atrás. Imagino que eles não devem se sentir gratos pela bomba, aquilo foi um horror, mas talvez sintam que, às vezes, a vida tem uma maneira meio drástica de nos obrigar a fazer aquilo que a gente precisa fazer. Ou talvez pensem em como uma tragédia lenta pode passar despercebida. Ou em como o olhar repentino de todos, em comoção e expectativa pela recuperação da cidade, teve um poder renovador.

Mais do que nunca, acredito que foi esse olhar de força e incentivo quem conseguiu empoderar as pessoas. Fortalecer a comunidade. E mudar, para sempre, a vida de Manchester. 

Este ano, esse olhar transformou a minha vida.

Quem sabe o seu olhar também possa transformar a vida de alguém. 

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“Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”

(pág. 16-17)

“Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, por que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui?”

(pág. 58)

“O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação. Quando se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. Todas as histórias antigas chamam a terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem da deusa grega da prosperidade, que tem a cornucópia que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe essa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.”

(pág. 60-61)

“Não tem fim de mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um mundo do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo. Isso é um abismo, uma queda. Então a pergunta a fazer seria: “Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?”.

(pág. 62)

“(…) no ciclo das navegações, quando se deram as saídas daqui para a Ásia, a África e a América -, é importante lembrar que grande parte daqueles mundos desapareceu sem que fosse pensada uma ação para eliminar aqueles povos. O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era um peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI.”

(pág. 70-71)

“(…) na frase célebre de Lévi-Stauss, “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

(pág. 84)

(Ailton Krenak / Ideias para adiar o fim do mundo, 2019)

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“Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração.”

(pág. 100)          

“Nessa horas eu, que tomei raiva de homem, que nunca mais quis deitar ou casar com homem, talvez deitasse de novo só para ter filhos, para ter com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez lhes desse uma pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da chuva, ou roído de traças, para que lessem e pudessem entender do que somos feitos.”

(pág. 170-171)

“Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, dos sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, de desagradar, medo de existir. Medo que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, da sua cor.” 

(pág. 178)

(Itamar Vieira Júnior \ Torto Arado)

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Falar de amor

como se fala de uma cidade

como se fala de um inseto

que apareceu no meio da noite.

Como se fala

de um sonho

de uma mentira

de um gato preto no telhado

do vizinho

de uma rede de pesca

de uma gota de chuva

do sofá da casa da minha avó.

Falar de amor como se fosse algo casual como contar um dois três cantar parabéns em aniversários dizer saúde depois de um espirro e bom dia depois de acordar e boa noite antes de dormir como se fala oi tudo bem e se responde tudo e como você e se diz quanto tempo passe em casa que saudade vamos nos falando.

Então continuar a falar de amor

como se esse fosse

o único assunto possível.

Por que é.

(Clarissa Sabino / Nada disso é para você)

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Eu

quando olho nos olhos

sei quando uma pessoa

está por dentro

ou está por fora.

Quem está por fora

não segura

um olhar que demora. 

De dentro de meu centro

este poema me olha.

(Paulo Leminski / Caprichos)

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(Sítio, fevereiro de 2021, 28 graus)

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As pessoas se sentem privilegiadas pela presença dele. Com um faixo de luz que iluminasse a sala de repente, a sua chegada quase sempre é anunciada pelos comentários que vão abrindo portas antecipadamente. Dessas personalidades excêntricas que parecem colocar o resto do mundo em marca d’água, cooptando adeptos para um modo de ver a vida aberto a infinitas possibilidades – que, se ainda não se concretizaram, seria apenas por uma questão de tempo ou por causa dos invejosos que não podem suportar as qualidades que você certamente possui. Perto dele, todos são gênios incompreendidos, mentes superiores prestes a serem aclamadas pelo reconhecimento inevitável. 

Todos sentem prazer no sentido grandioso que ele traz para suas vidas e acabam tornando-se dependentes disso, como de uma droga poderosa capaz de lhes fazer levantar da cama todos os dias. E, em troca, cedem aos seus caprichos mais desbaratados e lhe perdoam faltas imperdoáveis, começando aí um ciclo doloroso. Por que ele podia fazer alguém sentir-se extraordinário por algumas horas, mas, no dia seguinte, lembraria vagamente o nome do interlocutor. Enquanto restaria ao outro esforçar-se para atrair sua atenção novamente, oferecer-lhe favores, ávido por outra oportunidade de se sentir especial. 

Contam uma história, não sei se é verdade. Quando ele se tornou professor de História, não estava preparado para a função. Ainda assim, os alunos o adoravam. Se lhe faziam uma pergunta difícil, ele simplesmente inventava a resposta. Criava enredos fantásticos sobre Napoleão, Cleópatra, Getúlio, ficções completamente descabidas. Sempre imaginei aquele homem enorme, cabelos longos e olhos verdes, narrando qualquer absurdo com uma oratória impecável. Contando qualquer maluquice com um carisma indefectível. Dizem que nenhum dos alunos jamais contestou a verdade. Naturalmente. Eu também não contestaria.

Ele fez parte da minha vida desde sempre, mas lembro de uma noite específica em que ele me explicava a diferença entre o Washington Olivetto e eu: a única diferença é que você é mais jovem, vai poder fazer tudo que ele fez, só que muito antes. Eu não concordava, mas não conseguia rebater o argumento. Depois, ele começava a planejar um futuro fabuloso para nós – um chalé na montanha, um barco, uma piscina do tamanho de um campo de futebol, o que acha? Já que eu era muito inteligente e seria, obviamente, milionária, teríamos tranquilidade dentro de um oásis exótico. Os projetos eram megalomaníacos, algo entre o completamente doido e o simplesmente adorável. Era maravilhoso estar com ele. Quando eu conseguia estar com ele. 

Porque, dias depois de projetar uma vida perfeita para nós, ele era capaz de marcar um jantar comigo e não aparecer. Ou de me deixar esperando na porta do dentista ou na janela de casa ou de cometer qualquer vacilo terrível de forma que nem adiantava ficar com raiva, por que nada parecia proposital. Minha vida oscilava entre me sentir especial iluminada a framboesa de ouro escolhida pelos deuses ou me sentir um verme abandonado na sarjeta da desimportância. E eu passei muito tempo me esforçando para ser lembrada. Sendo a mais inteligente, a mais bem-sucedida, a mais brilhante, a mais inesquecível. Observe que loucura. Existe ambição mais inútil que tentar ser inesquecível?

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“Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.”

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Parece óbvio, mas a verdade é que algumas pessoas nos viciam. A gente vicia no elogio grandioso, mesmo que não seja real. Nos projetos fantásticos que nunca vão se realizar. A gente vicia ineditismo, na aventura empolgante, em qualquer coisa que faça-nos sentir únicos e potentes, mesmo que isso custe a nossa sanidade. Como tantas outras pessoas, eu estava viciada nas hipérboles de meu pai. E vivia uma abstinência de cortar o coração. Estava viciada nele invadindo o pátio da escola com caixas de presentes, matando meus colegas de inveja. Nele colocando um ônibus particular na porta do colégio para eu levar quem eu quisesse para a festa. Nele chegando no aniversário com um cavalo de verdade para mim, igual aos dos contos de fadas. Quando ele trouxe um lote de 200 coelhos brancos para animar a nossa Páscoa, meus primos disseram que eu tinha sorte de ter um pai tão fantástico. E eu admitia. Mas também percebia a sorte deles. Por que era ótimo ter um tio excêntrico capaz de surpresas inacreditáveis quando já se tem um pai como os outros, que lembra a dose do remédio e a hora de buscar no dentista.

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“Faço promessas malucas,

tão curtas

quanto um sonho bom.”

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Eu já estava adulta, perdida e exausta quando decidi renunciar. À extravagância, à instabilidade. Acho que passei metade da minha vida nesse processo de desintoxicação. Tentando não me sentir fracassada por não ter tido um destino excepcional, tentando não me sentir miserável cada vez que alguém me ignorava – que terrível a ideia de ser esquecida outra vez. Recuando do fascínio das pessoas emocionalmente irresponsáveis, dos que fomentavam expectativas que não podiam cumprir. Mas, principalmente, recuando da minha própria vocação para me tornar a cópia do meu pai. Se você olha muito para o abismo, o abismo olha para você.

(Entre os heróis de gibi, sempre há alguém que nasce com um superpoder destrutivo e faz o juramento de não utilizá-lo para o bem de todos. Eu sou boa com elogios. E eu evito elogiar as pessoas. Sei que posso fazê-las ascender às nuvens, mas não posso evitar que despenquem de lá). 

Na época da faculdade, eu estava dirigindo e tinha um carro na minha frente indo muito devagar. Eu fiquei fazendo sinal e perdendo a paciência por uns dez minutos. Quando ultrapassei, o motorista era ninguém menos que meu pai. Ele estava rindo, tinha feito de propósito: “Por que ficou passando raiva atrás de mim? Por que não tomou logo a outra pista?”. Eu gargalhei, gritando um palavrão. Mas nunca soube responder a essa pergunta.

Certa vez, eu tive um dia ruim e ele disse: venha dar uma volta comigo, você está precisando fazer algo interessante. Ele me levou à casa de um amigo dele que tinha vinte cachorros e um jacaré na piscina – Olha, preciso reconhecer, você me levou a um lugar interessante – Mas o interessante era passar a tarde comigo, jacaré na piscina qualquer um pode ter!

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“Meu pai tem Alzheimer
e todo dia me pergunta
que dia é hoje.
Eu digo que é Dia dos Pais
e tasco-lhe mais um abraço.”

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– Pai, tava lembrando de uma viagem que fiz, nem sei mais o nome do lugar. Senti um magnetismo estranho, até chorei quando fui embora. Não faça piada disso.

– Não vou fazer piada. Na verdade, eu senti isso uma vez, você não era nascida. Era uma praia que parecia querer que eu ficasse.

– Uma praia?

Era o mesmo lugar.

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Na década de 70, ele estava viajando com um amigo e o velho fusca estancou na ladeira. Um carro de luxo ficou buzinando atrás e meu pai simplesmente engatou a ré. Esmagou um carro no outro, depois acelerou e foi embora. Anos depois, ele se casou, o amigo também e cada um teve uma filha. Nós duas costumávamos viajar juntas e só eu não conhecia essa história. Quando meu primeiro Fiat estancou na ladeira, um carro de luxo buzinou atrás. Antes que eu engatasse a ré, ela pulou do carro gritando – mas que Édipo filho da puta!

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“Ela não podia olhar para seu pai quando ele tinha uma alegria. Porque ele, o forte e amargo, ficava nessas horas todo inocente. E tão desarmado. Oh, Deus, ele esquecia que era mortal. E obrigava ela, uma criança, a arcar com o peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e mais animais também morrem. Nesses instantes em que ele esquecia que ia morrer, ele a tornava a Pietà, a mãe do homem.”

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Hamlet é a história de um filho que tenta vingar a morte do pai. E sempre me intrigou o fato de ambos terem o mesmo nome: Hamlet é o patriarca ausente e Hamlet é o filho solitário. Hamlet é o fantasma que atormenta Hamlet. Como se os dois fossem indissociáveis! Talvez fosse essa a verdadeira tragédia.

Os livros de Kafka têm algo em comum, todos tratam de problemas sem solução. Menos um, que ele não quis publicar, o Carta ao Pai. É uma correspondência de mais de cem páginas que nunca foi enviada: “Pai, (…) minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”.

Meu pai só chorou quando Bob morreu. Bob era o vira-latas que alegrava a casa, achado na rua, feio feito a fome. De um jeito que eu nunca tinha visto, ele lamentou não ter cuidado mais, tratado antes, feito melhor. Chorou por Bob de todo coração. Eu, adulta, assistia ao drama e não entendia. Parecia o remorso de uma vida inteira.

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“Dizem que embaixo do sarcasmo

Existe uma segunda camada mais viscosa de sarcasmo

Mas na quarta ou quinta você descobre 

Uma vontade desesperada de amar

Tem que descascar”

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Eu herdei as grandes sobrancelhas. Herdei a inclinação ao exótico, a vida social agitada, o gosto pelo microfone. Herdei o deboche espinhoso, o egocentrismo e a personalidade hedonista. Mais do que tudo da infância, meu Deus, eu levei um coração partido. Que desconfia de promessas, que é insensível a romantismos. Senhoras e senhores, é bem difícil me impressionar. Só acredito em quem lembra da hora do remédio e o dia de buscar no dentista.

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“Eu compro o que a infância sonhou

Se errar, eu não confesso

Eu sei bem quem eu sou

Eu nunca me dou.”

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Sempre achei graça das camisas coloridas. E da pizza requentada três vezes ao dia. Amei as sandálias havaianas em restaurante de luxo e o paletó italiano no acarajé da esquina, ganhar brinquedo até os trinta, amei ir de Salvador ao Rio a 50km por hora só para irritar os outros na estrada. Mas odiei ter pego três aviões para te encontrar no Natal e ter ouvido apenas que estava atrasada. E sempre que o dia dos pais perdeu para outro evento que te pareceu mais importante. E a camisa de presente que cansou de esperar no armário e coube perfeitamente no porteiro. Eu sabia que merecia mais. Justo de quem dizia que eu nunca deveria aceitar menos. 

Meu pai é o Cavalo de Troia que alegrou a minha infância e fez uma algazarra com a minha vida adulta. É o Sinatra estourando champagne, é o Rei do Gado, é o meu Malvado Favorito. É o Bukowski brigando com o seu pássaro azul. Como numa parábola às avessas, em que é o pai pródigo quem retorna arrependido, às vezes ele me pergunta se eu gosto do Raul Seixas. Se curto o maluco beleza da mosca da sopa que não quer tirar onda de herói. E eu olho bem nos olhos dele – pai, e quem não ama o Raul?

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“Uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; (…) na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido.”

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A primeira imagem de pai na mitologia é Urano, o pai ausente. Que foi destronado por Saturno, o pai dominador. Que foi destronado por Zeus, o pai zeloso. E faz séculos que a humanidade aprimora modelos de paternidade moderna, mas eu resumiria a epopéia num único mandamento: nunca esqueça sua filha de pé, na porta de casa, no dia do aniversário dela.

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“Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina.”

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Um dia desses, eu estava dirigindo e havia um carro muito lento na minha frente. Eu sabia que era ele, mas ele não tinha me visto. Esperei quieta, como quem toma coragem. Ultrapassei devagar, ele me viu e eu acenei tranquila. E essa foi uma das coisas mais difíceis que eu já fiz na vida: ter seguido em frente.

É isso.

Eu te amo muito, pai. Mas, finalmente, eu tomei a outra pista.

Obs: respondendo às mensagens, está tudo ótimo comigo e com meu pai! Foi só o meu psicanalista que mandou escrever sobre episódios do passado e eu estou humildemente obedecendo 🙂

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“Raramente penso em ti.
Teu destino pouco me interessa.

Mas de minha alma ainda não se apagou
o brevíssimo encontro que tivemos.

Evito, de propósito, tua casinha vermelha,
tua casinha vermelha junto ao rio lamacento;
mas bem sei com que amargura
perturbo a tua ensolarada quietude.

Embora não te tenhas inclinado sobre mim
suplicando-me que te amasse,
embora não tenhas imortalizado
o meu desejo em versos dourados,
secretamente lanço encantamentos para o futuro,
sempre que as noites são de um azul profundo,
e tenho a premonição de um segundo encontro,
um inevitável segundo encontro contigo.”

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(da russa Anna Akhmátova, no poema “Raramente Penso em Ti”, de 1913, tradução de Lauro Machado Coelho)

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